No final da sessão um amigo meu comentava, embora este filme tente seguir a via do original, preferindo o filme-catástrofe ao filme de monstros, onde o primeiro era solene este é simplesmente pomposo. Concordando, não posso deixar de refrasear, o filme de Gareth Edwards vive de facto desse ajuste de olhares, isto é, a câmara não está ao nível da besta (filme de monstro), está sim ao nosso nível (filme-catástrofe). Isso produz um discurso – ainda que provavelmente involuntário – sobre três problemáticas da limitação do olhar humano: já só olhamos para uma realidade mediada, essa mediação dilui o horror dos acontecimentos e esse horror já só acontece realmente se houver quem o medeie. Três problemáticas, três planos que as espelham.
Primeiro. Uma besta atravessa a cidade de Las Vegas, estamos no interior de um casino (mas já fomos informados do que se passa no exterior – mas os que por lá andam ainda nada sabem), a câmara desliza sobre um televisor perdido por entre slot machines que interrompe o que estava a exibir para um especial noticioso sobre o que se passa do lado de fora. A luz falha (o monstro tem o poder de enviar fortes impulsos electromagnéticos que aniquilam temporariamente todos os aparelhos eléctricos) e o casino fica completamente às escuras, ouvem-se gritos aflitos, e de repente um grande estrondo abre uma enorme cratera no edifício que nos permite ver o monstro de facto, arrasando tudo à sua passagem. Assim, sem aviso algum, o espectador vê-se assaltado pela questão, porque estão eles a assistir a um especial televisivo sobre a bisarma se podem simplesmente olhar pela janela? Eis senão quando a interrogação se vira contra nós, porque estamos nós a assistir a cataclismos vários no grande ecrã se para isso basta clicarmos num vídeo amador do youtube? Gareth Edwards coloca a catástrofe às nossas portas e no processo deixa-nos inquietos sobre se pode o holocausto bestiário ser também matéria de entretenimento.
Segundo. Há um outro plano, um travelling lateral em que ao longo de uma enorme vidraça de um aeroporto nós, espectadores, e eles, os incautos transeuntes, assistimos à sucessiva explosão de enormes aviões de passageiros. O espectador sabe que assiste a show de luzes e pirotecnia (não de propósito reflectindo a largueza do ecrã de cinema na largueza da vidraça) mas os transeuntes – os habitantes desse mundo imaginário que existe do outro lado da tela e se parece tanto com o nosso – não estão cientes disso, no entanto assistem como nós, abismados, ao espectáculo que rebenta entre o sanguinário e o estonteante. Eles como nós (e nós como eles) não nos podemos deixar de maravilhar com o horror.
Terceiro. Quando finalmente Godzilla se digladia com as outras criaturas em pleno centro de São Francisco, os assustados cidadãos procuram refúgio numa estrutura subterrânea. O caminho que a câmara opta por seguir é – como sempre é ao longo do filme – o do homem, o que provoca um delicioso anti-clímax, já que no exacto momento em que uma besta salta sobre a outra os humanos fecham-se em segurança no abrigo, cerrando as portas que davam a ver a épica batalha e por isso deixando-nos no escuro. De novo, se não há quem assista é porque não aconteceu. Queriam pancadaria entre seres portentosos e cobertos por escamas, tivessem tido tomates para ficar lá fora a assistir. (Aliás, vários desses momentos “épicos” são elididos no filme num constante adiar da acção necessária a um filme como este – apenas recuperados pelos eternos especiais televisivos que vão servindo de pano de fundo.)
Não de propósito só temos direito a uma dose digna de cachaporra quando uma força especial de militares é enviada para tentar resolver a situação por eles criada (não é sempre assim?), ou seja, só temos acção quando há público – e só há público se há acção…
Tudo isto não melhora nem prejudica o filme (“muito pelo contrário”). Saúda-se simplesmente a existência de um objecto de consumo alargado que – e repito-me, de forma provavelmente involuntária – se ofereça a leituras como esta. Mas a verdade é que talvez haja mais cinema em objectos destes – e quem diz involuntário diz também caído do céu – do que em muito do cinema de autor. Pode-se então dizer que em Gareth Edwards o autorismo é uma convulsão.