Estes não são os típicos balanços de festival. Com graus de envolvimento distintos, Carlos Natálio, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa fizeram parte da estrutura IndieLisboa 2014, acompanhando, muitas vezes em pleno backstage, o trabalho que fez erguer um dos maiores festivais de cinema do país. Não é o típico balanço também porque nenhum dos três queria que assim fosse. Entre desabafos, apontamentos pessoais e elogios ao cinema, os três textos abaixo procuram levantar o véu sobre o íntimo de um festival que, como todas as organizações humanas, é feito de forças e fraquezas.
Para quem, como eu, viu doze ou treze filmes num universo de quase 250 que compuseram esta 11ª Edição do Indielisboa, não faz muito sentido falar da qualidade das obras, da programação, da justeza dos prémios. Por isso apenas notas em jeito telegráfico. Um. Se há um tema recorrente no festival, ele foi a continuação do percurso de esbatimento entre ficção/documentário. Do lado da ficção isso corresponde a uma necessidade de desformatação do universo polidinho em que se tornou a produção independente. O curioso é que o documentarismo mais tradicional também se tem vindo ele a encostar à ficção. Penso então que, tal qual dois grandes grandes continentes que, ao contrário de se afastar, se aproximam, talvez no futuro Indielisboa e Doclisboa não se consigam diferenciar bem pelo conteúdo das obras. Mas talvez isso seja apenas num tempo far far away.
Dois. Desde o seu início sem a pretensão de lantejoulas e glamour, o Indielisboa talvez seja o festival que melhor consegue disfarçar uma certa apatia do público português no contexto de contracção e crise. Porventura com menos pessoas, mas a descontracção que rodeia o público e a organização, no fundo, a ligação afectiva ao cinema, sente-se com a mesma intensidade. Três. Havia muitas crianças pelo festival. E isso é bom. Não apenas porque o IndieJúnior fazia uma década mas sobretudo porque é de pequenino que se abre o olhar, que se aprende que as recentes palavras de pessoas como Manuela Moura Guedes sobre o cinema português são de uma indignidade de quem tem os olhos abertos mas não consegue ver. Quatro. Não vou escrever sobre o episódio Mauvais sang (Má Raça, 1986) pois em breve alguém o fará, e melhor do que eu. Cinco. Foi difícil suportar a sopeirice de Carolina Torres, mas certamente não voltará.
E filmes, ele não fala de filmes? Falo, estejam descansadinhos. Seis. Que bom que era Quand je serai dictateur (2013) de Yaël André. Estava em competição, saiu de mãos a abanar. É normalmente o que acontece com os grandes filmes. Uma catrefada de horas de filmes em 8 mm e super 8, remontados, por sobre um episódio real da vida da belga. Uma arqueologia dos home movies, num movimento que era ao mesmo tempo catártico e prospectivo de um mundo ou mundos, ou vidas alternativas que o cinema permite vislumbrar. Bom exemplo de como fazer psicanálise a si próprio, manipulando a sua arte e sem a tragédia que é fazer um pastel onanista [ver o camarada Lameira a dissertar sobre o dito onanismo aqui, a propósito do peganhento Belleville Baby (2014), de Mia Engberg]. Sete. Denis Côté vai fazer um filme sobre Lisboa. Esta foi a quinta vez no Indielisboa. Ele adora Lisboa. Não vou repetir mais a palavra Lisboa. Fala pelos cotovelos o canadiano que meses depois de estrear nas salas de … portuguesas Vic + Flo on vu un ours (Vic + Flo viram um Urso, 2013), veio apresentar um “filme sexy sobre o trabalho”. Que ta joie demeure (2014) é outro documentário armado em ficção, em que os trabalhadores se unem às suas máquinas, a câmara apanha a repetição erótica dos movimentos fabris, os homens repetem: “le travail n’a jamais tué personne. Mais pourquoi prendre le risque?”. Côté não quis fazer um filme activista mas estão lá as etiquetas das embalagens de café que dizem “working to wake up the world”. Talvez importe menos tudo isso, talvez seja mesmo o “fim do trabalho” aquilo que permite a Côté abrir o espaço da fábrica como espaço sexual, de manutenção de um misticismo quase religioso que se extingue. Fala-se de felicidade aqui, já não de alienação.
Oito. Jean-François Caissy é um bom cineasta. La marche à suivre (2014) é o filme do meio de uma trilogia sobre a idade. Um ano a filmar a sua antiga escola secundária e resolve fechar os planos dentro dela e negar o reverse shot às cenas em que os jovens adolescentes estão a ser repreendidos por fumarem ganzas ou baterem no colega. A autoridade sem corpo é a que mais apoquenta e faz pensar. Lá fora, ao ar livre, há o widescreen, há o espírito de Elephant (Elefante, 20003), há fumo que se ergue da floresta ao som de Brahms. Realista e fantástico, esta marcha é para seguir. Nove. Estranho mas interessante ver o Hitchcock a 3D. Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954) não precisa das três dimensões que lhe estavam destinadas, é demasiado poderoso o enredo de magicação e antecipação mentais. Mas sendo este um filme sobre objectos, a dimensão adicional permite convocá-los para o bailado coreográfico dos interiores do filme. Saudosista ou não, não é a profundidade do quarto, nem o omnipresente abajur aquilo que engrandece o filme. Fico a imaginar um mundo em que o cinema narrativo se desenvolveu paredes meias com as três dimensões e há uma proximidade entre o olho e o ecrã que me parece anular a própria noção de proximidade. Devaneios. Dez. E foi bom conhecer a Claire Simon.
Carlos Natálio
Queria aproveitar este post-scriptum para agradecer à organização do IndieLisboa a criação do júri Blogues de Cinema para a atribuição do Prémio Distribuição TVCine. Este prémio vem promover a comunidade de críticos online a um novo patamar de reconhecimento, de prestígio, mas também de exigência e responsabilidade. Essa comunidade esteve este ano representada por mim e pelos meus dois amigos e colegas de júri, o walshiano Francisco Valente e Pedro Miguel Fernandes do Shut Up and Watch the Movies [o vencedor, por decisão unânime, foi Les Apaches (2013) de Thierry de Peretti]. Fomos nós, mas podiam ser – e poderão vir a ser! – muitos outros que ao longo dos anos se dedicam, livre e desinteressadamente, a esta causa chamada cinema, uma causa perdida não fossem as conquistas de Abril. Que conquistas? Por exemplo, os direitos à diversidade e à crítica.
Lamento, por isso, muitíssimo que alguns filmes da secção Director’s Cut não tenham sido exibidos como estava previsto, porque Paulo Branco (Leopardo Filmes), nome histórico do cinema português, pediu que a sua exibição não acontecesse. A propósito da não passagem de Ansiktet (O Rosto, 1958) de Ingmar Bergman, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema emitiu o seguinte comunicado: “Correspondendo ao pedido expresso do distribuidor português para que, tendo em conta o contexto de exploração comercial deste filme, não o exibamos nesta data, ‘Ansiktet / O Rosto’ de Ingmar Bergman é substituído por ‘Vargtimmen / A Hora do Lobo'” (leia tudo aqui).
Não sei o que lamentar mais: se o pedido de Paulo Branco, se a aceitação deste pedido por parte da Cinemateca Portuguesa e do próprio IndieLisboa, que transmitem, assim, “cá para fora” a ideia de que estas situações são normais e admissíveis – serão? Deverão ser? Poderão ser? De qualquer maneira, mesmo sendo este o lamento genérico de um cinéfilo, penso que alguém tem de dar um passo em frente e reprovar qualquer tentativa de impedir que o cinema seja visto e que uma instituição como a Cinemateca Portuguesa não possa prosseguir a sua missão de altíssimo e inegociável interesse público. Este é um dos direitos conquistados por Abril. Aliás, no dia 26 de Abril, portanto, um dia depois de se celebrar os quarenta anos da Revolução dos Cravos, a Cinemateca Portuguesa anuiu ao pedido do mesmo distribuidor de não passar Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945). É importante recordar as palavras escritas por João Bénard da Costa a propósito da passagem no grande auditório da Gulbenkian, em 1973, desta obra-prima intemporal de Rossellini sobre a Resistência ao fascismo. A sala enchia de tal modo que o convidado especial Henri Langlois terá prenunciado, após a sessão, a revolução que estava para vir. Que revolução é essa que está agora aí, a bater à porta?
Num festival onde se celebram as decisões independentes, o espírito livre e alternativo, pergunto como pode haver democracia, nomeadamente pensamento crítico, se programar cinema deixa de ser um acto de liberdade para passar a ser um gesto condicionado por interesses completamente estranhos a, por exemplo, aquilo que nos fez acompanhar os 11 dias de cinema entre o Campo Pequeno e a Avenida da Liberdade? Esperemos que o recentemente criado Prémio Distribuição TVCine dos Blogues de Cinema possa contribuir para a missão essencial de qualquer “amador” do cinema: DAR A VER CINEMA. Alerta: escusam de enviar emails ameaçadores – prática corrente neste meio do cinema tantas vezes sob o regime do terror – ou envolver-me em guerras pequeninas que não me dizem respeito. Já disse e repito: não tenciono ser mais rapidamente do cinema que pelo cinema.
Luís Mendonça
É costume avisar-se os incautos descobridores de que nem todas as descobertas trazem alegria. Conselho esse que pode originar de alguém calejado pela experiência de infortunas descobertas ou por alguém que, nunca tendo querido ou conseguido descobrir, acautela os outros no sentido de os prender ao seu próprio temor pelo novo – os ditos velhos do Restelo que vêm atazanando as gentes. Dizem eles que se passa melhor sem saber como são feitas as salsichas, que a ignorância é uma bênção, que não saber traz felicidade. Eu gosto de salsichas e, se souber o que levam, fico feliz por conhecer a origem de tão saborosa criação – quem diria que algo tão improvável poderia originar um resultado tão apaladado… Nos últimos meses estive na fábrica das salsichas, conheci os seus ingredientes, provei as versões de teste e o produto acabado e não posso deixar de gostar das ditas: sumarentas e carnudas como devem ser, enroladas em couve ou grelhadas na brasa. Salsicha é bom. Eu gosto de salsicha.
Isto para dizer que no passado Agosto fui convidado a integrar o comité de selecção de curtas metragens do IndieLisboa. Um numa equipa de oito, metade estreante nestas andanças de ver e escolher filmes – outra metade já sabida e acostumada. Desde Setembro até ao final de Fevereiro vi mais de 750 curtas cuja duração variou entre alguns segundos e 59 minutos. Tive o que parecem ser agora dezenas de reuniões, algumas a terminar a meio da noite (acompanhadas de comidas e bebidas), com pessoas que não tive que aprender a gostar, já que o seu afecto e carinho foi imediato. Pessoas que agora posso chamar amigas. Ver tantos filmes apura o gosto, produz conhecimento – nem que seja por contradição -, promove reflexões novas e raciocínios imprevistos, discutir filmes durante horas permite conhecer e absorver diferentes opiniões e experiências, engrandece o espírito e nem por isso torna mais fácil a tarefa. Como quando se conhece a feitura salsicha, fazer parte da programação de um festival é um misto de desilusão e aprendizagem. Percebe-se que o lema é o melhor possível – não necessariamente o melhor – como em tudo… que não só de motivos artísticos se reveste a escolha de cada filme – também a política, as boas relações, o dinheiro e a exaustão tomam parte importante na selecção. Mas cada filme (curto) é discutido, debatido, avaliado e votado pelo comité, só entra se tiver uma maioria simples e essa votação é pessoal e completamente independente. Um processo tão justo quanto possível, em que – pela minha parte – tentei dar lugar à maior diversidade de filmes.
Mas como se diz, casa de ferreiro, espeto de pau. Para quem está dentro de um festival, não consegui desfrutar do festival como espectador. Em vários anos de IndieLisboa este é, paradoxalmente, aquele em que assisti a menos sessões (três ao todo) e aquele em que tive mais vezes na sala de cinema. Entre apresentar algumas das sessões de curtas (dez apresentações, algumas agradáveis, outras desgraçadas pela maleita do nervosismo) e fazer perto de trinta pequenas entrevistas para o canal do YouTube do Indie, andei numa roda-viva só atenuada pelas pessoas simpáticas que fui conhecendo, pelas festas a que fui assistindo e pelo álcool que fui ingerindo.
Sinto-me pois como um mineiro que trabalhando no escuro da mina meses e meses, lidando apenas com os diamantes em bruto, se vê gorado de conhecer o produto final do seu trabalho, neste caso, ver os filmes no grande ecrã, sentir a surpresa de um objecto estranho, deslumbrar-se com o desconhecido, partilhar a experiência com uma sala inteira. Talvez os velhos do Restelo tivessem razão, talvez o conteúdo da salsicha saiba melhor se mantido no obscurantismo gastronómico, mas como evitar querer saber? Impossível! Ter feito parte do IndieLisboa 2014 foi uma experiência que guardo com felicidade, nem que seja pela felicidade dos realizadores que conheci por verem o seu filme acarinhado, nem que seja pelo prazer de encontrar na leitura do autor a própria, nem que seja pelo sorriso no final de uma conversa ou pelas palmas no final de uma sessão. Nem tudo correu bem, nem adoro todos os filmes que seleccionámos, nem tudo foram rosas – também houve desilusões -, mas a noção de que o esforço compensou, essa, nada nem ninguém ma tira. Cinema é bom. Eu gosto de cinema.
Ricardo Vieira Lisboa