A proximidade microscópica que caracteriza o close no filme pornográfico, ao invés de despertar o prazer no espectador, se traduz em um distanciamento do mesmo, sua exclusão de facto: o fantasma do sujeito é eliminado.
Yann Lardeau, O sexo frio: Do pornô e para além
Le mouvement charnel est singulièrement étranger à la vie humaine: il se déchaine en dehors d’elle, à la condition qu’elle se taise, à la condition qu’elle s’absente.
Georges Bataille, O erotismo
“No quarto dia, eu estava deitada sobre o meu cobertor”. Inventário da noite branca, découpage neurótico do corpo ensimesmado, valências intensivas da água forte e do nanquim na figuração deste espaço estriado por sombras, onde deriva um torso assombrado… Teremos de esperar meia hora até que Julie nos receba, frontal, franca e solar num plano médio alvissareiro; ela finalmente sorri. Até então, esgueira-se, desgarra-se, entrincheira-se: o mimetismo do corpo e do décor a um grau de entropia máxima. E recita… Monocordicamente (a rima com o monocromático spleen deste branco saturado de cinza?). Exaustivamente. Sincopada como um riff de jazz, a sua recitação consiste em recortar, da duração contínua e uniforme, nacos (cristais?) de descontínua, obstinada resistência: “No quarto dia, eu estava deitada sobre o meu cobertor”. O present tense plano e indiferenciado da ação reiterada sofre um corte fatal: ele agora é capturado pelo pretérito imperfeito; destina-se a uma narrativa, no preciso momento em que advém. As cartas que escreve são o escrínio do gesto: a escritura desde sempre foi um invólucro, onde a flor rara e frágil se encapsula. O espírito é algo muito delicado, quebradiço; precisa de máscaras para sobreviver. A máscara de Kafka foi o burocrata, a de Proust o esnobe. (Adorno). Qual a máscara de Julie, nestes primeiros dias em sursis pelo menos? A sobrevivente; o campo evacuado, os arrimos e esteios da comunidade dispersos, restam os deficientes (handicapés, como a língua fraturada me sugere melhor), aqueles que foram atropelados pelos devires da vida. Então, se resguardam e aguardam… Arregimentam-se forças, amealham-se táticas, experimentam-se dispositivos de defesa: sob os auspícios da escritura (protegida, encastelada por ela), um aríete se forja. Nesta primeira parte, o plano é uma grande bolha amniótica, onde a taciturnidade e a apatia se tornam meios (mises en scène) de reserva do indivíduo, de conservação (a anti-part maudite)… Repetição, fixidez do plano testemunhal, lentidão e pose: um adestramento de dandy para os iminentes embates gregários; mas quando virão? Tudo parece assinalar um grande mas estático (paranóico, dolorido) tablado de jogo, onde a peça do xadrez também faz as vezes de enxadrista experimentada? Como nota Narboni em seu texto sobre o filme, esta câmara obscura onde se testam novas modalidades de figuração do corpo (absorvido, amalgamado, finalmente erodido pelo décor) tende a uma “ordem da sedução, definida pelo segredo, pelo recuo e pela retração do visível.” Não por acaso, temos a reivindicação de um tropo pictórico – o dorso semi-nu de vestal boticceliana, de costas para a câmera, rente ao chão: nesta contraposição e retração do corpo à frontalidade inquisitiva da câmera, o “meu Segredo” se preserva. Igualmente na erosão da figura pelo chiaroscuro: nada deve aparecer plena, expositivamente; reservam-se para a inspeção do espectador frestas, rastros de presença – no exibicionismo radical em aparência (corpo nu, masturbação, conciliábulo dos corpos frementes sobre a cama), infiltram-se nichos de opacidade, de No trespassing. Qual o melhor invólucro para o Segredo senão a “pornográfica” visibilidade? Ao mostrar e mostrar – mostrar tudo, pelo menos daquilo que pode ser visto -, acabamos por reter o essencial, por torná-lo inviolável. Desviamos a atenção daquilo que nos é realmente caro e único; Deleuze: “Perversão consiste em um desvio dos fins.” Cena paradigmática: ao masturbar o caminhoneiro, Julie permanece na espreita e à margem, fora do quadro; talvez a punheta seja a forma mais segura de garantir a sua integridade e reserva; a forma perversa de sua oclusão consiste em ceder em pontos estratégicos “para o Outro”, e manter-ser fiel ao seu Segredo. Sabemos que só confessamos ou concedemos aquilo que nos é inessencial; o núcleo da Verdade permanece intacto e impermeável, sob a “cortina de fumaça” dos corpos em combustão; também do sorriso tímido e expectante, da escuta vampiresca “que se faz” de atenta e devota. Je, tu é um filme que se traveste constantemente, que se nega e se furta na exata e obscena medida em que se manifesta: filme da fresta e do escaninho, mas infiltrados no seio da clareira lumièriana do aqui e agora; a adstringência do grão cinéma vérité é uma espessa e opaca camada de transparência, e o paradoxo é fecundo e justo: um filme clandestino, uma mulher esfíngica, um mundo impenetrável são filtrados para nós pela intercessão do registro documental, “rough”. O Segredo é afinal revelado, mas enquanto Segredo – manifesto em sua natureza de veio inacessível e imarcescível, soterrado sob a obscura cristalinidade pelicular.
Narboni ainda: Os filmes que nos interessam hoje são justamente estes onde se pode captar in loco este trabalho de contra-produção na produção, esta co-presença na figura do que dela foge, a indiscernibilidade (não a contradição dialética) entre o que se mostra e o que se de-monstra, o coeficiente de desrealização introduzido naquilo que se encarna, o disfarce daquilo que se expõe, ou esta parte do evento, como escreve Blanchot, que sua realização não pode completar. Je, tu, il, elle presta-se bem a esta ronda de oclusão e desvelamento (oclusão no desvelamento, como desvelamento) que Narboni observa nos melhores Godard, Duras e Straub. Se o corpo superespoxto a princípio participa da lógica de expropriação narcisista do Eu, é para melhor e mais finamente negar-se, recuar; a empreinte de realité pornográfica é o meio de cultura da intermitente cintilação erótica: “o erotismo consiste na mise en scène de uma aparição-desaparição” (Barthes). Mortificação e modulação da pornografia (daquilo que se exibe e assume explicitamente, sem dobras ou pespontos) pelos intervalos, fissuras, sulcos do ad libitum erótico. Assim, Julie nos aparece nua, mas sempre de costas, confundida e sobreposta por objetos e sombras, agachada no recanto dos planos, figurativamente achatada ou turva; a supra e ultra exposição é corroída (fissurada?) por uma infra-retração: banhada em sombras (o caminhão), fraturada por anfractuosidades do décor, avariada. Je, tu nos oferece um modelo de figuração paradigmático, entre masoquista e minimalista, para o metteur en scène “na cena”: ele é aquele que só pode nos aparecer atomizado – na iminência da desaparição ou da obliteração, um debuxo mentale, jamais íntegra persona – quando Chantal finalmente se desnuda e arrebata pelo Outro, na sequência final com a namorada, é absolutamente necessário que “pague o preço”por esta infração, e desapareça do filme e do plano que se segue. In extremis: É como se o filme não pudesse prosseguir, depois deste herético face a face com o espelho, desta assunção limítrofe da persona desejante, não mais “encoberta” pelo cenário ou pelo tenebrismo da fotografia.
O diário íntimo encenado em Je, tu é dos mais estranhamente “alienados”, desenraizados, dessubjetivados que se pode conceber: a personagem central raramente aparece-nos frontalmente, constitui-se no efeito de refração e reflexo de outros personagens (é aquela que observa e escuta os relatos do caminhoneiro; de costas para nós no elevador ou diante da porta, é inspecionada pela namorada, que a observa comer dois sanduíches: habitante muitas vezes do fora de quadro, geralmente se confunde com o Eu do diário, a guardiã do fora de campo); e as suas ações mais presentes (o seu índex de presença no mundo) são desvitalizadas – esvaziadas, diferidas – por uma narração concorrente, que se encarrega de matar ab ovo a pujança do ser: ao narrar em voz off um evento que nos é mostrado naquele exato instante, o presente verbal é abjurado em nome do signo (flexão esquizofrênica do verbo: o presente perfeito se torna pretérito imperfeito, modo que designa precisamente uma ação passada que ainda suscita repercussões no presente, que o fantasmagoriza); a ação agora é serva e refém da representação; o sujeito definha e morre, seviciado pela própria “imago”. Neste sentido, um dos golpes de gênio da primeira parte consiste na aparição daquele transeunte que passa, para além da vidraça-membrana que separa a personagem do mundo, e força Julie a se voltar… Intrusão primeira do mundo naquele canyon uterino, dilaceramento e extroversão do sistema de conservação e equilíbrio energético do filme até aí, anuncia-se nesta “fissura” o sistema/processo, desenvolvido ao longo de Je, tu, onde a subjetividade é dissociada, eclipsada e enfim absorvida pela alteridade (canibalismo amoroso da sequência final), desaparecendo da cena.
O final de Je, tu completa justamente este itinerário circularmente fantasmagórico do Desejo, este exilado, onde a exteriorização veemente do Eros acaba por coincidir com a sua evacuação – a evacuação da figura tout court; após a longa, morosa, eudaimônica sequência das libações eróticas entre as namoradas, no plano seguinte, que encerra o filme, Julie já não está; engolfada pelo fora de campo (o Eu do Diário, com o qual acaba por se integrar: ela agora é aquela cujo papel consiste, do fundo do pretérito perfeito da montagem, em evocar e descrever o que acontecera, já que não mais participa dos eventos); eclipsada pela Via-crucis, gozoza e crepuscular, de suas aparições-desaparições, e agora – o círculo se fecha! – finalmente recolhida e preservada no escrínio de seu Segredo: um filme.