Antes do cinema em Taiwan ficar associado ao Novo Cinema Taiwanês e depois de se experimentar com o politicamente correcto “Realismo Saudável”, o final dos anos 60 e início dos 70 foram para o cinema de Taiwan um tempo de celebração da prosperidade da ilha – de novo dentro dos moldes permitidos pelo regime – via comédias românticas e grandiosos wuxia – e, concomitantemente, um tempo de tensão que atingiria um pico com a viragem política que significou a aproximação e posterior reconhecimento diplomático dos EUA da República Popular da China. É neste contexto que se vê Jia zai Taibei (Home Sweet Home, 1970), uma comédia familiar que traça um retrato social do fenómeno da emigração de Taiwan para os Estados Unidos, ao mesmo tempo que, no seu primeiro segmento, revela uma improvável experimentação técnica.
Jia zai Taibei pode ser traduzido como “O lar fica em Taipé”. Como se dúvidas restassem, o título revela a imposição de uma linha de pensamento. Ao longo de três segmentos e de uma introdução e conclusão (que têm lugar dentro de um avião a chegar dos EUA e no aeroporto em Taipé) onde os protagonistas se cruzam, o filme de Pai Ching-jui tenta traçar o retrato de diferentes figuras-tipo dos emigrantes para os Estados Unidos, deixando bem claro qual o caminho certo: voltar à mãe-pátria independentemente das aspirações pessoais ou profissionais de cada um, pois só esse retorno é lógico e está certo.
No primeiro segmento, um homem taiwanês regressa com a mulher, uma sino-americana que conheceu nos EUA, para a apresentar aos pais e o seu retiro temporário transforma-se rapidamente na vontade de ficar para sempre em Taiwan que, com as suas paisagens lindíssimas e, segundo o filme dá a entender, ritmo de vida mais pausado, lhes permite serem homens e não “máquinas” como na América. A primeira parte inclui ainda os esquemas da irmã do alegre regressado que, contra toda a convenção social, recusa as exortações familiares de obediência e casa com um namoradeiro dropout residente nos EUA, só para poder realizar o sonho de para lá ir viver.
Uma mulher que regressa dos EUA para o seu namorado artista está no centro do segundo segmento. Ao contrário do primeiro, aqui o reencontro com quem é menos idílico e a sua longa ausência radica num ataque de ciúmes pela possibilidade de o seu companheiro se ter apaixonado por outra pessoa, uma rapariga mais nova e que representa no filme um modelo de virtude, como educadora de crianças. Esta mulher, que pela sua independência convém caracterizar com uma aura algo desequilibrada e negativa, acaba por fazer a escolha “errada” e optar por regressar aos EUA (pelo menos até à sacarina conclusão a que, inexplicavelmente, reverte a sua decisão).
Finalmente, o último segmento é, porventura, o mais convencional em termos de desenvolvimento mas também o que mais se relaciona com algumas obras típicas do cinema taiwanês pré-Cinema Novo. Um engenheiro doutorado nos EUA regressa a Taiwan após dez anos de ausência com o propósito de se divorciar da mulher que deixou para trás para poder casar com a amante que o espera na América. O seu regresso é pautado pela enorme expectativa que a sua família deposita nele mas também a enorme pressão que exercem assim que adivinham os seus intentos. Afinal, a mulher que não vê há uma década diligentemente cuidou do seu pai doente e criou o filho que mal reconhece à custa de muito sacrifício pessoal. A figura da esposa sacrifical era longe de nova no cinema de Taiwan (aliás, é uma figura familiar a muitas obras de arte chinesas) e tem no filme uma enorme importância. A sugestão é clara: agora é a vez de ele se sacrificar. Pela família e, numa relação simbiótica clara, também pela nação, pondo os seus conhecimentos técnicos ao serviço do desenvolvimento do país.
Jia zai Taibei é, pois, pautado pela veiculação de uma ideia negativa da emigração e pelo apelo ao regresso a “casa” (além de mais um retrato conservador do papel das mulheres na sociedade). E, como o título e a canção que abre o filme e fecha todos os segmentos lembram aos distraídos, a “casa” fica em Taipé. O tom subtilmente propagandístico do filme, facilmente explicável por ser produzido pela estatal Central Motion Picture Corporation, não lhe retira, contudo, interesse cinematográfico.
Se todo o filme mantivesse o estilo do primeiro segmento, estaríamos provavelmente perante um dos mais interessantes filmes de Taiwan anteriores ao Cinema Novo. Começando na introdução mas atingindo um auge no primeiro segmento, Pai Ching-jui usa e abusa do split screen, muitas vezes o ecrã estando dividido em quadrângulos de diferente dimensão que podem ascender a mais de dez. Estes são também combinados com uma montagem alternada que confere ao filme uma enorme jovialidade e permite ao espectador confrontar imediatamente acção e reacção de diferentes personagens, impondo contrastes e compreensões. No entanto, como sugere o autor de um dos raros, senão mesmo o único, artigo sobre o filme em inglês, James Wicks, o split screen contribui, algo ironicamente, para minar o tom propagandístico e reduzir as vozes que falam, como a voz do Estado-Partido, a uma construção em confronto com a sua voz pessoal. Em nenhuma cena isto é feito com tanta mestria como numa em que os vários membros da família da jovem rebelde que quer ir a todo o custo para a América lhe tentam impor a sua perspectiva. Esta limita-se a ligar o rádio no máximo e é na mudez ensurdecedora provocada pela música que vemos os rostos dos familiares, divididos em minúsculos rectângulos alternantes e reduzidos a ridículas figuras que gesticulam mas a quem é negada voz. O que eles dizem deixa de ser importante ou é pelo menos reduzido à mesma insignificância que os argumentos da jovem. Como se o realizador tivesse decidido naqueles minutos calar a cassete.
Infelizmente o resto do filme abandona a originalidade de formato da primeira parte. Mas nem por isso há falta de elementos interessantes, nomeadamente no tratamento dado aos espaços, quer exteriores e naturais quer interiores. Aqui o natural surge quase tão artificial como o fabricado: tudo é belo, harmonioso, moderno. Tudo tem de ser melhor que esse desconhecido mundo americano cuja atracção tem de ser negada – e essa negação passa também pela recusa em mostrá-lo. Por exemplo, a decoração do apartamento da protagonista e o clube nocturno (que inclui uma chanteuse com fruta a enfeitar o cabelo!) no segundo segmento são uma lição de coolness, no terceiro uma cena é passada num restaurante panorâmico cujas vistas da cidade lá fora quase anunciam a subversão dessa visão que seria feita por autores como Edward Yang. Muito se poderia escrever sobre a perseguição de ideais de modernidade na China (incluindo a República da China em Taiwan) e numa tal discussão obras como Jia zai Taibei seriam interessantes provas para discussão.
Visto em 2014, o filme de Pai Ching-jui é também curiosamente provocador. Jia zai Taibei mostra-nos uma perspectiva anti-emigração, sobretudo anti-emigração jovem. No cerne da questão estava a saída em enormes números de jovens de Taiwan que iam estudar (o próprio realizador havia passado um período de estudo em Itália), sobretudo para os EUA, e de que apenas uma pequena percentagem regressava (esta história tem uma continuação, pois vários jovens taiwaneses extremamente qualificados voltaram, ou voltaram parcialmente, a Taiwan, mas em diferentes circunstâncias). Ao invés de explorar as causas do fenómeno, a voz oficial que se ouve no filme é a da crítica inflexível. O caminho deve ser o de não partir ou de voltar porque “é assim que tem de ser”. É negada qualquer agência às pessoas para escolherem onde podem fazer a sua vida porque vagos argumentos patrióticos assim o exigem. Não será preciso notar o quão familiar isto possa soar a muitos jovens portugueses hoje em dia, num outro contexto de “fuga de cérebros”.