Joe (2013) de David Gordon Green começa assim (e termina assim), com um plano fixo, um jovem de costas (Gary) e um homem velho de frente. O rapaz fala, o homem ouve. Ele diz-lhe que é intratável, um bêbado, irresponsável, miserável, um energúmeno. O velho dá mais um trago na sua garrafa de moonshine, endireita-se e enfia uma enorme bofetada na cara do miúdo que quase o derruba. Faz lembrar alguma coisa? O chapadão que enche a cara de Pedro Hestnes e abre O Sangue (1989) de Pedro Costa? Faça de mim o que quiser. Talvez, mas nada mais há que ligue os filmes, aqui tudo rebenta em grotescas formas melodramáticas como Gordon Green nos habituou – cinema extremado e poderia também dizer cinema estrumado, tudo em Joe é simultaneamente fértil e pestilento. Há semanas esteve por cá o professor e crítico Tom Conley, para dar um workshop sobre o nosso querido Raoul Walsh. O Luís Mendonça e o Carlos Natálio entrevistaram-no e, lendo a transcrição, surpreendo-me: ao que parece eu citei, sem saber – ou, sabendo, não retive nem associei o nome à citação – o próprio Conley no meu texto para o dossier Raoul Walsh, Herói Esquecido. Refresquei a memória. Conley é muito dado a leituras freudianas dos filmes, é capaz de encontrar uma pila ou um ânus em qualquer filme e os do Walsh são ricos nisso – vide o charuto de Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942) ou a gruta do final Colorado Territory (Golpe de Misericórdia, 1949). Mas o que mais me tocou foi um pormenor de leitura em High Sierra (O Último Refúgio, 1941) salientado por Conley: “Bogart sai do esconderijo porque ouve o seu cão ladrar – não de propósito chamado Pard por ser pardo e por simbolicamente conceder o perdão ao herói/criminoso” – e acaba baleado pelas costas. Também em Joe há um cão – não será ele que operará a regeneração do protagonista (será outro ser sarnento e rafeiro interpretado por Nicolas Cage, o titular Joe) -, chama-se Faith e a certa altura desaparece. Joe e Gary procuram pela Faith, mas não a encontram em parte alguma. Gary lembra-se – num raciocínio fomentado pela bebida juvenil – se eu fosse cão ficava onde me tivesse separado do meu dono, regressam ao local onde a tinham perdido e lá a encontram. A Faith está onde a perdeste! É neste sentido que digo que Joe é tanto fértil como pestilento, porque nele os símbolos borbulham como no caldo primordial, só que cada símbolo, cada metáfora, é de evidente leitura. Não é só a crente cadela, são as árvores que morrem para dar lugar a novas num processo de sacrifício e regeneração, é a ponte como lugar de passagem e local de despertença, enfim, um manancial de auto-explicativos subtextos onde o sub ficou em casa e já tudo é textual. Mas esta é a natureza do cinema de David Gordon Green, a ruralidade infestada pelo grotesco quasi-paródico. Joe é pois, no conjunto dos filmes do realizador, um objecto muito próximo de Undertow (Contra-Corrente, 2004): o mesmo vilão over the top, a mesma figura adolescente perdida no mundo dos crescidos em busca de uma figura paternal (tema fundamental do gordongreenianismo), o mesmo decadente território de hillbillies e rednecks, cheio de prostitutas, bêbados, e homens de caçadeira. E talvez aqui convenha deixar uma nota sobre Jeff Nichols. Embora os ambientes os aproximem, as mesmas pulsões por dramas bíblicos de sangue e tripas, entre filhos e pais – e até partilham o mesmo actor, Tye Sheridan era um dos miúdos de Mud (Fuga, 2012) e é agora o Gary deste filme -, um mundo de tom distancia os dois realizadores. Onde Nichols vive algures entre o clássico e o paisagístico – onde tudo é revestido de uma finura de recorte e de um grande trabalho nas personagens e direcção de actores -, Green vem de um mundo onde se corporiza a estética televisiva e do videoclip, delicia-se com ralentis musicais e adora desenhar a traço grosso. Nesse sentido, Nicolas Cage não podia ser uma escolha mais acertada, porque ele, na sua fisicalidade, manifesta os desejos da obra: tanto Cage como o filme estão inchados ao ponto de rebentar. Joe é pois um filme-estria.
- Dossier
- Raoul Walsh, Herói Esquecido
- Os Filhos de Bénard
- Na Presença dos Palhaços
- E elas criaram cinema
- Hollywood Clássica: Outros Heróis
- Godard, Livro Aberto
- 5 Sentidos (+ 1)
- Amizade (com Estado da Arte)
- Fotograma, Meu Amor
- Diálogos (com Estado da Arte)
- 10 anos, 10 filmes
- It’s a plane… It’s a pain… É um dossier sobre super-heróis
- Críticas
- Em Foco
- Crónicas
- Câmara Reflexiva
- Combustão Espontânea
- Filmes nas aulas, filmes nas mãos
- Week-End
- Arquivo
- Civic TV
- Constelações Fílmicas
- Contos do Arquivo
- Do álbum que me coube em sorte
- Ecstasy of Gold
- Entre o granito e o arco-íris
- Em Série
- «Entre Parêntesis»
- Ficheiros Secretos do Cinema Português
- Filmado Tangente
- I WISH I HAD SOMEONE ELSE’S FACE
- Nos Confins do Cinema
- O Movimento Perpétuo
- Raccords do Algoritmo
- Ramalhetes
- Recordações da casa de Alpendre
- Retratos de Projecção
- Se Confinado Um Espectador
- Simulacros
- Sometimes I Wish We Were an Eagle
- Contra-campo
- Entrevistas
- Festivais
- Córtex
- Curtas Vila do Conde
- DocLisboa
- Doc’s Kingdom
- FEST
- Festa do Cinema Chinês
- FESTin
- Festival de Cinema Argentino
- Frames Portuguese Film Festival
- Harvard na Gulbenkian
- IndieLisboa
- Locarno
- LEFFEST
- MONSTRA
- MOTELx
- New Horizons
- Olhares do Mediterrâneo – Cinema no Feminino
- Panorama
- Porto/Post/Doc
- QueerLisboa
- Acção!