Assinar uma crónica sobre cinema na televisão e não referir o nome de Steven Seagal é um pouco como fazer uma história do cinema e deixar de fora Charles Chaplin. Em cada cinco zappings que faça, não me espantaria que em três apanhasse, num qualquer canal (generalista de sinal aberto ou do cabo, canais especializados em cinema ou nem por isso), o rosto monolítico, o olhar grave e esfíngico, a voz suave e indiferente, o rabo de cavalo inconfundível, os gestos mínimos, a postura erecta, a visão periférica de 360º, as roupas excêntricas que lhe cobrem, faça chuva, faça sol, cada centímetro do corpo (é magro? É gordo?)… digo, não me espantaria que encontrasse tudo isto, e mais, na imagem de apenas uma única pessoa, um verdadeiro “guerreiro espiritual” que faz da mais tonitruante pancadaria o seu, quer dizer, o nosso melhor manual de auto-ajuda. Chama-se Steven Seagal. Nós somos o seu público e, por muito que não goste, é bom que se habitue, porque não deverá existir maior divo do cinema de acção que caiba tão bem ou tantas vezes no quadradinho mágico do nosso televisor. O canal Hollywood destaca-o como figura deste mês. Aí passaram, desde 28 de Abril até 18 de Maio, Driven to Kill (Ruslan – A Vingança, 2009), On Deadly Ground (Em Terra Selvagem, 1994) e The Glimmer Man (O Homem Que Brilha, 1996). Ao lado, e no mesmo intervalo de tempo, os canais FOXMovies, FOX e AXN exibiram mais filmes com a chancela Steven Seagal: respectivamente, Above the Law (Nico – À Margem da Lei, 1988), Executive Decision (Decisão Crítica, 1996) e Half Past Dead (Duro de Matar, 2002). Nesta e na próxima crónica Civic TV convido o leitor a olhar mais de perto a obra, a ciência e, síntese perfeita das duas, o homem inevitável que “does not give a fuck”.
Tenho de alertar, desde já, que me tenho apenas como mero “aprendiz de feiticeiro” no que concerne a recém-fundada ciência da Seagalogia. Vern, crítico de cinema “fora-da-lei” do site Ain’t It Cool News, é o catedrático-mor, o homem que baptizou esse gesto outrora reservado ao domínio do “impensável”: pôr a arte de Seagal em palavras, integrar essa arte num sistema teórico e empírico, por exemplo, encontrando no seu cinema traços de uma qualquer versão de la politique des auteurs dos Cahiers amarelos. Na crónica anterior, escrevi sobre a importância que um actor pode ter numa constelação de filmes. Cheguei à conclusão de que por muito que os filmes apareçam creditados “com” certa estrela, eles acabam por ser – e ser vistos – como “de” certa estrela. A sua presença desrealiza o princípio tutelar da política dos autores, onde o cineasta é rei. Política dos autores ou política dos actores? Se citei Humphrey Bogart e John Wayne como exemplos destas “autorias” estrelares, então agora sugiro avançarmos para o rei dos reis do cinema para televisão, aquele indivíduo alto e espadaúdo que é capaz de dar uma valente lição de… jogo da sardinha a qualquer um desses astros da Sétima Arte: Steven Seagal. A feitiçaria filmológica está registada, com todos os pózinhos de pirilimpimpim da mais desconcertante exegese fílmica, no livro de culto Seagalogy: A Study of the Ass-Kicking Films of Steven Seagal. Diz, então, o seu autor, o douto Professor Vern: “Os franceses inventaram a auteur theory, a ideia de que um realizador pode ser considerado o autor de um filme, aquele que põe o seu selo pessoal na coisa e que merece a maior parte do crédito e da culpa. Mas eu inventei a badass theory. A badass theory é a ideia de que nalguns tipos de filmes badass ou de acção é o badass (ou estrela) que carrega os temas de um filme para o próximo”.
Parece que não mas esta badass theory é apenas uma meia invenção. Com efeito, André Bazin não avançou com a possibilidade de uma “política dos actores” dentro da “política dos autores”, mas o seu elogio/eulogio endereçado a Humphrey Bogart, porventura o grande durão da Hollywood clássica dos anos 30 e 40 (nem de propósito, citado na sua versão tearjerker em Casablanca no divertido buddy cop film The Glimmer Man), não anda longe da teoria verniana. Posto isto, a badass theory não deve sair beliscada por não ser 100% original. Aliás, não deve sair beliscada, antes de mais, por ser badass, por ser uma teoria que responde com pontapés no maxilar quando a argumentação não pende para o seu lado. Não espanta, por isso, que o ramo número um tenha o nome de Seagalogia. O que se aprende aqui? Desde logo que um filme com Steven Seagal é sempre um filme de Steven Seagal, mesmo quando não o é de facto. Como explicar melhor? De novo, o douto Professor: “Mais do que qualquer outra estrela de acção de que conheço, Seagal põe a sua impressão em todos os filmes que faz, quer esteja a escrevê-los ou a produzi-los ou apenas aparecendo neles. Ele traz uma certa personalidade, fórmula e um conjunto de motivos a praticamente todos os filmes que faz. Muitos actores tentam encontrar argumentos com os quais eles consigam trabalhar, Seagal parece ter argumentos que nascem de si”.
Enquanto aprendiz seagalógico, permito-me a ousadia de preterir o termo “impressão” a favor de “essência”. Lembra Rivette e o seu famoso texto sobre a hegemonia da mise en scène no cinema de Otto Preminger (a partir de Angel Face), mas também lembra um momento soleníssimo que tem lugar no primeiro acto de On Deadly Ground, o único filme realizado por Steven Seagal, onde, enfim, o de afirma apenas tautologicamente a autoridade da sua mão sobre tudo o que faz, ou melhor, sobre tudo o que desfaz. Este filme de acção com mensagem ecológica na ponta da língua contempla, para Vern, um dos momentos mais profundos em toda a filmografia de Seagal. Conta, aliás, antes de tudo, com um dos cenários mais habituais nos seus filmes e que significam normalmente “tareia à vista”: um bar. A personagem de Seagal, um ambientalista chamado Forrest (o nome cabe bem a um amante de florrestas!) com fervente sangue nativo-americano, assiste a um rufia, de nome Big Mike, que entretém o seu igualmente pouco civilizado grupo de amigos humilhando um índio que por ali ciranda embriagado, aos tropeções. Seagal ameaça uma vez intrometer-se nesta cena, mas lá se deixa ficar à distância, regulando o seu primeiro impulso de dar uma sova ao energúmeno. Mas depois este resolve tratá-lo por “cupcake” e a paciência do “guerreiro zen” esgota-se. Primeiro são os 14 amigos, despachados sem pestanejar pelo aikido de Seagal, aquele que este terá aprendido no Japão e que se tornou imagam de marca da sua metapersona artística. No fim, resta o insolente rufia. Mas aí há uma pausa e Seagal oferece uma oportunidade para Big Mike sair ileso da rixa sob forma de um jogo… da sardinha. Seagal propõe dar-se ao direito de um murro por cada estalo bem dado nas mãos de Big Mike. Quando este aceita, nós, espectadores, ficamos certos de que essa brincadeira inocente da nossa infância vai por certo degenerar num jogo de sangue e ossos partidos – não espanta que, na entrevista que citarei abundantemente abaixo, Seagal confidencie: “Eu sempre odiei ser criança”. Pau! Seagal acerta em cheio: nas mãos e depois no estômago de Big Mike. Pau! Mais um duplo golpe e lá se vai a cana do nariz. Por fim, quando parece já haver pouco para partir, Seagal encerra o jogo massacrante da sardinha com uma pergunta existencial, no mínimo, inusitada: “O que é preciso para mudar a essência de um homem?”. Big Mike responde pesaroso, derrotado física e espiritualmente: “Eu preciso de tempo. Tempo”. A reacção de Seagal é ainda mais insólita: “Eu também. Eu também”, responde pondo-lhe a mão no ombro. O racista é redimido, mas precisa de tempo para limpar a alma de toda a porcaria.
Ora, o “guerreiro espiritual” – “Spirit Warrior” foi o working title de On Deadly Ground – mudou pouco desde esse ano de 1994. Seagal é sempre inconfundível e intemporalmente Seagal, as fronteiras são tão indetectáveis que apetece dizer que a sua “política de actor” é uma autêntica “política de vida”, criação do mito nessa passagem entre on e offscreen, sendo que são quase imperceptíveis os tais “tempos de mudança” na sua maneira de ser. Eu nunca disse que a Seagalogia era uma matéria fácil. Voltemos aos exemplos concretos. A certa altura, um dos capangas do big oil man Michael Jennings (Michael Caine com cabelo tintado a preto) pergunta ao empregado “demasiado crítico” das condições de lançamento da nova plataforma petrolífera se se considera um homem moderno, notando: “Por vezes, os homens modernos são-no tanto que se prejudicam”. Não é contra isto que vai resistindo, de filme para filme, o mito Steven Seagal? Afinal, não funciona Seagal como paradigma desse classicismo incarnado, que tem como sinónimo simples a repetição paradigmática de formas, de movimentos, de gestos; enfim, a criação de uma coerência, de um carácter? Seagal não arrisca quase nunca tornar-se moderno e ainda menos tornar-se tão moderno que acabe por se prejudicar. Ele muda pouco ou nada e aqui, como acolá, é um lobo solitário (ou será um urso? Já lá vamos) que combina misticismo new age com força bruta num equilíbrio que diria ser “pouco ecológico”, até porque o bad guy é uma espécie claramente desprotegida, e em vias de extinção, nos seus filmes.
Seagal é criação permanente, mas criação una, indivisível. Cada particula de Seagal, do último cabelo do seu rabo de cavalo à sequência mais ínfima do pior filme que não (não-não!) realizou, contém a sua essência, intacta. Em cada instante, mesmo o aparentemente menos prenhe “de si”, eis então que se mostra, como num clarão, o átomo seagalógico. Será uma metodologia quase benjaminiana, consubstanciada por este processo de analisar o fragmento para iluminar o todo (pars pro toto), que deve (continuar a) guiar-nos na descoberta dessa essência que precisa de distância temporal – uma eternidade? Duas eternidades? – para se dar a ver na sua “mudança”. Assim, invocando de novo o “exemplo concreto” (empirismo verniano), uma outra “visão” da mónada auterística que é a Seagalogia pode ser aclarada no começo de Driven to Kill, um direct-to-DVD que ganha o prémio de mais irresistível guilty pleasure do corpus recolhido. Seagal é um mafioso russo chamado Ruslan, que, já retirado da sua carreira no crime, ganha a vida a escrever romances hard boiled inspirados, lê-se num post-it que tem no computador, pelo tríptico autoral “Tolstói – Chekov – Pushkin”. Ele é um badass total e o seu segredo, o seu “truque”, tem potencialidades para mandar à fava “O Segredo” que tantos milhões compr… perdão, vendeu – é o tal manual de auto-ajuda enfiado goela abaixo ao espectador. Num quadro de descontracção, daremos de caras com Seagal, na pele desse tal Ruslan (ou será Ruslan na pele de Seagal? Pois, já lá vamos…), a protagonizar o único verdadeiro set-piece do grupo de filmes seus (ou consigo) que vi para a escrita desta crónica.
Há uma solidão na personagem (de) Steven Seagal que parece adequar-se a essa sequência inaugural do festival de pancadaria que é Driven to Kill. A companhia feminina costuma apresentar-se nos seus filmes como sublinhado emotivo/sentimental que o seu rosto inexpressivo, só por si, não consegue emprestar à narrativa (por exemplo, em Above the Law, a sua mulher interpretada por Sharon Stone é uma espécie de carpideira de serviço). As mulheres, como os homens, como o mundo, aliás, fazem-se em função das forças e fraquezas do Seagal-actor. Mas, voltando à mónada seagalógica, lá vemos o nosso homo literatus na companhia de uma miúda com idade para ser sua filha. Ela não disfarça a excitação: quer saber, em troca de uns favores sexuais “extra”, como é que ele nunca perde um jogo… não da sardinha, mas, desta feita, da menos inocente “metal spike roulette”, cujas regras ditam que o “perdedor” perde uma mão por acertar num dos copos que escondem espigões bem afiados. Cabe ao “vencedor” acertar no único copo sem espigão. Ruslan é um às e a miúda quer ser impressionada mais uma vez. Ela baralha os copos e ele, sem hesitar por um segundo, pau! Esmaga o copo vazio. “Diz-me: qual é o truque?”, pergunta-lhe, ao que ele responde, voz serena, quase inaudível: “The trick was just to not give a fuck”. Aqui está, em semente, a grande corrente moral e ideológica (superestrutural!) da Seagalogia: o not give a fuckism.
Apesar dos seus altíssimos e inalienáveis “valores místicos”, é, em bom português e traduzindo, “por se estar a cagar” que, em On Deadly Ground, Forrest manda pelos ares uma plataforma petrolífera que ameaça destruir o habitat de uma comunidade esquimó. Ora, como nota Vern, não será essa acção tão ou mais arriscada que a do vilão do filme, o magnata Michael Jennings que precipita a finalização da dita plataforma sem atender à má qualidade do material de construção, logo, expondo o meio ambiente à sua possível, mas não necessariamente inevitável, destruição? Seagal “está-se a cagar”, ele precisa de agir para lá das rezas e metamorfoses cósmicas – em urso?! Calma, já lá chegamos – que acontecem na tenda esquimó que o acolhe, depois de ferido pelos capangas de Jennings. E a acção, ou melhor, essa ética posta em acção por Seagal é muito como a mão que esmaga o copo certo: Forrest manda a plataforma pelos ares, arriscando seriamente produzir um desastre ecológico de gigantescas proporções para, ao mesmo tempo, salvar os esquimós da hecatombe não-tão-certa-quanto-isso de Jennings. Não faz sentido? Não? Paciência: I do not give a fuck.
A sequência dá-nos a amplitude da leitura mítica desta “escrita de si” seagalógica. Provas? Pois então descodifiquemos “o animal” com provas. Eis Seagal offscreen, numa entrevista memorável intitulada «Even Steven», dada em 1991 (no pico dos seus anos “dourados”, como os chama Vern) à revista Movieline: “Não quero soar fanfarrão, mas a diferença entre mim e a maioria dos actores é que eu não quero saber (I don’t give a fuck). Estou pronto para morrer e estou pronto para fazer o que tenho de fazer. Estou pronto para isso. E qualquer pessoa que me conhece sabe isso”. Os actores referidos aqui, e postos em comparação, são só Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Clint Eastwood e Bruce Willis. A diferença destes meninos do coro e Seagal é que este último – vá, todos juntos! – “do not give a fuck!”. E assim é em Driven to Kill, quando não hesita em voltar a pegar na metralhadora e enfrentar exércitos inteiros de bad guys da máfia russa, pondo assim em suspenso a sua bem sucedida arte de escrever ao computador romances tolstoiano-chekoviano-pushkianos. É impossível, contudo, esquecer a sequência dos créditos, quando vemos Ruslan sentado à secretária a escrevinhar no teclado. Ele literalmente reinterpreta, ou antes “pós-interpreta”, o acto de escrever ao computador: Seagal, homem analógico contra as modernices “que o prejudicam”, desliza os dedos sobre o teclado como se nunca tivesse passado pela experiência de escrever ao computador. Seagal codifica o acto da sua própria escrita. Era isso que estava a tentar desmontar – essa própria codificação da escrita de si! – e, por isso, estando claramente no caminho certo, devo continuar. Falei em metamorfose, a que Forrest atravessa para se tornar não só num homem-urso metafórico mas num homem-urso de facto (vá, vamos ser subtis: “com eles no sítio”). É o chefe índio/esquimó que diz: “tu és um homem-urso”. Ele responde qualquer coisa como: “eu não sou um homem-urso”. O mesmo velho xamã, sabiamente pondo-o em xeque, replica: “isso é o que um homem-urso diria”. Pois bem, numa viagem alucinante pela floresta, movida a litros de MTV e telediscos de Vangelis em versão flauta de pan, Forrest mata o urso para se tornar… isso, num homem-urso. A partir daqui, como se o próprio Seagal estivesse farto do mumbo-jambo hippie, passamos para a pancadaria sem rédeas.
Queria fixar aqui a palavra “metamorfose”. Já vimos como é difícil tocar num cabelo de Seagal e, de facto, ele (o cabelo e o dono do cabelo) vai-se tornando progressivamente, ao longo da carreira, cada vez mais intocável, mesmo quando atravessa, por exemplo, batalhões de durões da máfia russa armados até aos dentes. É também raro vermos Seagal passar por grandes provações que lhe mudem o carácter. A rocha espiritual mexe-se pouco. Já percebemos como é preciso dar tempo ao tempo para que a mudança ocorra, mas como o homem-urso não tem tempo para dar tempo ao tempo… ele atravessa, numa montagem psicotrópica, essa espécie de metamorfose espiritual, passando de homem-urso hesitante a homem-urso assumido. Entre os dois morreu um urso metafórico ou real – não sei bem o que é, perdi-me entre os fumos da imagem teledisco zen… Por falar em mudanças e metamorfoses, importa citar aqui a passagem em que Seagal identifica o grande livro da sua juventude: A Barata de Kafka. O entrevistador corrige: A Metamorfose. Seagal: “Sim, isso foi das merdas mais estranhas que alguma vez li. Acendeu a minha imaginação”. Baseado em Kafka, escreveu um conto sobre um tipo que acorda e se vê num lugar subterrâneo habitado por “gente pequena” (little people). A professora deu nota C e escreveu a tinta vermelha “Bizarro, para dizer o mínimo”. Este apontamento abriu uma ferida incicatrizável em Seagal: “Isso bastou para mim. Nos 20 anos seguintes não viria a pegar numa caneta outra vez”. Duas notas aqui. Primeiro, Seagal reage mal a uma crítica que se adequaria perfeitamente a um filme como On Deadly Ground. Segundo, apesar disso, nunca poderia vir a aceitar bem as péssimas críticas que a maioria dos seus filmes recebeu. Uma delas ficou-lhe gravada na alma: “Quando eles [os críticos] dizem que eu não tenho alma diga-lhes para se irem foder! O que é que ‘sem alma’ quer dizer? Eu sou tudo menos ‘sem alma'”. Quem ousa contra-argumentar o homem-urso?