O primeiro plano de The Servant (O Criado, 1963) – argumento adaptado por Harold Pinter –, além de denunciar imediatamente o virtuosismo da câmara de Joseph Losey, é fundamental no que de revelador comporta para a compreensão do filme na sua globalidade. Ainda com o genérico a correr, Losey filma um fabuloso plano-sequência que, partindo do nível do chão (uma portão, ao longe, filmado de frente), se vai elevando progressivamente, sempre em rotação, com as janelas dos prédios e, depois, as árvores de ramos despidos, próprias do Outono, a surgirem em grande plano. Só por estes ramos, pobres e secos, arriscaríamos dizer que este primeiro plano bem poderia ser, na verdade, o plano de fecho de The Servant, não fosse este um filme em que a (auto-)degradação (física, psicológica, moral) contínua no tempo é o leitmotiv central e as flores um recurso metafórico para a ilustrar (como se de uma passagem entre estações do ano se tratasse).
De facto, as flores esplendorosas que decoram a nova casa de Tony (James Fox) no início do filme, correspondentes à “Primavera” da sua vida – Tony, que acaba de herdar uma fortuna com a morte do pai, instala-se na sua nova casa e está noivo de uma mulher sofisticada (Susan) –, volvem-se decrépitas (Outono) quando o filme se abeira do fim (há um plano fixo sobre uma jarra de flores completamente a definhar que expressamente crisma esta ideia), momento em que Tony já perdeu quase tudo (o respeito do seu criado, Susan, a sanidade, a dignidade, o estatuto social) – em que Tony já se perdeu a si próprio. Enfim, a vitalidade a ceder o lugar à decadência. A par das flores, a temperatura é outro elemento, digamos, “naturalístico” dotado de uma importante carga simbólica, na medida em que vai pautando todo o filme no modo como interfere nas relações entre as personagens, ora as aproximando (a água quente que o criado traz para Tony colocar os pés enregelados, primeiro indício da relação erótico-maternal entre os dois), ora efectivando o desejo (Vera, Sarah Miles aqui incrivelmente aparentada com Lindsey Lohan, queixar-se-á, muito infantilmente, do “calor” que sente para tornar ainda mais curta a saia que veste e seduzir Tony), ora prenunciando acontecimentos futuros (“as previsões não estão boas… as da meteorologia”, diz cinicamente Barrett para Susan).
O primeiro corte ao aludido plano-sequência faz ligação directa para uma sequência provida de uma relevância não menos reveladora. Nela vemos Barrett (extraordinário Dirk Bogarde) dirigindo-se, a pé, até à casa de Tony: Barrett é um homem elegante, de bom porte e muitíssimo bem vestido, de quem, portanto, nunca diríamos tratar-se de um simples… criado. É, por isso, com surpresa – e com uma certa sensação de termos sido “apanhados” no engodo propositadamente pensado por Losey – que, com Barrett já dentro de casa, nos apercebemos, afinal, de que este vai a uma entrevista com Tony, o seu futuro e aristocrático patrão (que Barrett encontra, deitado numa cadeira, a dormir uma sesta, como um subordinado numa hora morta). Esta confusão – deliberadamente induzida no espectador, insista-se – de personagens, estatutos e “lugares sociais” é desde logo crucial num filme em que as relações entre criado e patrão se inverterão e perverterão, adquirindo um subtil, mas indisfarçável, traço homoerótico, numa sugestão, que podia ser de um Fassbinder, das relações afectivas/amorosas/eróticas como relações hierárquicas ou de subordinação, tal qual uma relação de trabalho entre patrão e empregado. Não interessa tanto a Losey, no entanto, a questão da “luta de classes” [como, por exemplo, no Chabrol de La Cérémonie (A Cerimónia, 1995)], mas, sim, a psicologia subjacente à referida subordinação, i.e., as linhas ténues que separam os que mandam e os que são mandados e o modo como factores de ordem externa (a atracção, o sexo, a possessão, a solidão) podem alterar os equilíbrios socialmente instituídos e reformular os jogos de forças. É, por isso, o psicológico, mais que o social, que Losey investiga nesta obra-prima que é, simultaneamente, um psicodrama, um noir e um thriller.
Nenhuma razão muito clara é apresentada (nem mesmo implicitamente) para o comportamento de Barrett, o novo criado que, progressivamente, fará da vida de Tony um inferno (Barrett cuida-lhe da casa e desarruma-lhe a mente). É, de resto, essa ausência explicativa que torna a personagem de Barrett muitíssimo interessante, porque deveras complexa: cândido mas calculista, servil mas manipulador, solícito mas maquiavélico, Barrett é uma das personagens mais ambíguas – moral, psicológica e até sexualmente [na senda do Gustav que o mesmo Bogarde interpreta em Morte a Venezia (Morte em Veneza, 1971), de Luchino Visconti] – que nos lembramos de ver no cinema, outra forma de elogiar o soberbo papel que Bogarde aqui desempenha. Em Barrett, nada do que parece é e em nenhum momento conseguimos acreditar realmente naquilo que conta a Tony (terá sido mesmo criado numa família aristocrática antes de trabalhar na sua casa? Que laços o ligam, afinal, a Vera? Terá sido mesmo abandonado por ela, como conta a Tony no bar onde se encontram por acaso?). Essa multiplicidade de facetas (de máscaras) encontra correspondência no espaço físico em que Barrett e Tony se movem, i.e., a casa deste último, onde as próprias divisões não são coisas “seguras”, tantas são as portas falsas e as paredes giratórias que as con-fundem, assim se impondo uma generalizada atmosfera de secretismo e dissimulação [“em cada porta desta casa parece que ele (Barrett) está sempre lá”, diz Susan a Tony]. Também a um nível plástico essa atmosfera é pressentível: são constantes os “jogos de espelhos”, ou, para sermos mais exactos, os espelhos (e são mesmo muitos) que, filmados em grande plano, veiculam, por um lado, uma certa sensação de a casa estar sob observação/de todos se poderem observar sem os outros saberem; e que, por outro, deformam a imagem que nela vemos reflectida, isto é, a realidade, correspectivo da deformação interior (psicológica, mental) das personagens.
The Servant é igualmente deveras interessante no contraponto sociológico que faz relativamente a Blow-Up (História de Um Fotógrafo, 1966), de Michelangelo Antonioni. Se ambos captam o air du temps da Londres dos swinging sixties, o certo é que ao ambiente artístico, cool e liberal de Blow-Up Joseph Losey contrapõe a “velha Inglaterra”, a da nobreza/burguesia conservadora e elitista, como que se perguntando: onde estava essa camada social quando a revolução sexual lhe caiu em cima? Esse dualismo manifesta-se, também, no próprio espaço físico sobre o qual a câmara faz recair a sua atenção: aos exteriores predominantes no filme de Antonioni (sinalizadores de uma “nova liberdade”, que irrompe, que fura, que “sai de casa”) sobrepõem-se, aqui, os interiores austeros, clássicos e de muitíssimo bom gosto habitados pelas castas inglesas mais healthy (são muitas e boas as alfinetadas ao discreto charme da burguesia/nobreza inglesas). Mas se, como dissemos, é a psicologia (as obsessões, os recalcamentos, as ambiguidades, os fetiches) que mais interessa a Losey neste filme, então, The Servant aproxima-se muito mais de “estudos” como Repulsion (Repulsa, 1965), de Roman Polanski, ou Deep End (Adolescente Perversa, 1970), de Jerzy Skolimowski (o qual já foi por nós aqui recuperado). Veja-se, neste ponto, a “questão das saias”, que perpassa o filme em vários momentos. Numa cena de uma tensão extrema, Barrett, no momento em que telefona a Vera do interior de uma cabine telefónica, é importunado por um grupo de raparigas, todas de saias acima do joelho esvoaçando (vários picados sobre as suas pernas, pouco depois de um plano onde se via Susan com uma saia… abaixo do joelho), que insistem para que Barrett se despache: o modo como Losey filma esta cena não tem tanto uma pretensão sociológica (de retrato de uma nova forma de vestir consonante com as “novas mentalidades”) quanto psicológica – e psicanalítica –, no sentido em que o que lhe interessa é ilustrar a fortíssima perturbação – e, mais do que isso, a repulsa, o nojo – que a nudez das pernas e a carnalidade associada, a sanha (de “assanhadas”) com que as raparigas se lhe dirigem e a representação que Barrett faz de tudo isso (emancipação, libertinagem, despudor, promiscuidade) lhe causa. “Get out of the way, you filthy bitch”, diz – como se cuspisse – Barrett quando sai da cabine, o que nos levaria a pensar em misoginia e numa eventual homossexualidade reprimida (possivelmente “exteriorizada” quando oferece ao patrão uma escultura para colocar no jardim com uma forma desavergonhadamente fálica, em nova leitura psicanalítica) não se desse o caso de virmos a saber mais tarde não ser Vera sua irmã (como Barrett havia dito primeiro a Tony), mas sua noiva. E a ambiguidade da personagem adensa-se novamente quando, também mais adiante, Barrett pergunta a Tony se não acha as saias de Vera demasiado curtas, quando, na verdade, essa exiguidade é apenas mais um acorde na orquestração de Barrett para fazer com que Vera seduza o patrão. Para Tony, por sua vez, as saias curtas de Vera, por oposição às saias abaixo do joelho de Susan, simbolizam, enfim, o que uma dá (sexo fácil, aventuras, enfim, “tesão”) e outra, não o dando, representa (uma “mulher decente para casar”).
No mais, The Servant notabiliza-se, ainda, pela estilo e pela hiper-sofisticação que Losey empresta à realização, com movimentos de câmara impressionantes, planos antológicos e sequências de tirar a respiração, como aquela em que Vera, incrivelmente sexy no cadeirão (filmado de costas), é beijada por Tony (e cremos não atirar ao lado se dissermos que na coreografia destes e doutros corpos no filme há muita da gravitas de Antonioni). De mão dada com a sofisticação da realização está o experimentalismo, invulgar para a época, que Losey coloca nas cenas em que duas acções e respectivos diálogos (cena no restaurante) se desenrolam em simultâneo, não se podendo dizer qual delas é a principal, antes se deixando ao espectador a liberdade de optar por uma ou por outra (técnica que, por exemplo, um João Canijo levou ao extremo em Sangue do Meu Sangue, 2011). A cena em que Vera e Barrett são apanhados no quarto de Tony é, aliás, um exemplo magistral do que ficou dito, com a “agravante” de ser apenas uma sombra (de Barrett) que, em segundo plano, se intromete na acção que decorre em primeiro plano (a sombra surge na parede justamente entre Tony e Susan, como um obstáculo que os separa).
O final do filme – uma das mais drogadas cenas da história do cinema de que temos memória (há algo de felliniano nessa surrealista soirée de deboche, ainda que, aqui, a graça fantasista do Mestre italiano ceda lugar a uma atmosfera quasi-gótica, de depressão e claustrofobia) – leva a representação da ideia de degradação a um ponto de radical literalidade, no sentido em que Tony, o jovem bem-apessoado de peito aberto do início do filme, cai literalmente por terra, acabando o filme a rastejar, completamente alienado e deprimido. Pelo contrário, é Barrett, que antes se encontrava “socialmente abaixo” do seu patrão, quem está de pé, zombando do estado de Tony depois de lhe ter servido um cálice de cicuta, assim se consumando a inversão de posições entre mestre e servo – inversão coerentemente figurada pela disposição/subordinação dos corpos: quem passa a “mandar” é Barrett, de pé; quem passa a “servir” é Tony, no chão.
The Servant é exibido amanhã, dia 14 de Maio, pelo Cineclube de Joane, em Famalicão, pelas 21h30.