Fiz o exercício, durante a projecção de Under the Skin (Debaixo da Pele, 2013), de procurar ver o filme abstraindo-me da informação que possuía sobre o mesmo. Vou agora tentar exercício semelhante, que consiste em não me socorrer de outras apreciações que possam desvirtuar aquilo que de facto experimentei: este espectador apenas, mais a sua bagagem de referências. Ia com expectativas, claro. Jonathan Glazer tem um dos filmes de que mais gosto neste século: Birth (Birth – O Mistério, 2004), onde se percebia que as referências do Glazer de então seriam Roman Polanski e Stanley Kubrick, mantendo-se este último no novo Under the Skin, a par de outro cineasta, menos consensual, como é Nicolas Roeg. Under the Skin assemelha-se, formal e narrativamente, a algum cinema de autor das décadas de (19)70 e 80 que ousava a experimentação, e tem também, reconheçamos-lhe esse mérito, a capacidade de se fazer passar por um produto genuíno do período, com as limitações que eram também as dos seus pares desse outro tempo.
Existe um livro de ficção na origem de Under the Skin, mas como não conheço esse título de Michel Faber, disso não falo. Já o filme avança num misto de imagens, umas com forte pendor realista, dir-se-ia captadas por uma câmara que se mistura anónima ou distanciadamente e olha os escoceses: na estrada, pelas ruas, em centros comerciais, junto ao mar, ou no meio da paisagem bela e rude do país – uma paisagem cujos traços principais se confundem com os da protagonista revestida por Scarlett Johansson. A inteligência do filme está concentrada na primeira metade, quando esta predadora de homens vulgares os atrai para uma casa escura que será a perdição deles. Saídos do universo realista da conquista, chegamos a uma divisão de contornos indefinidos que serve os propósitos plásticos de Glazer – nos antípodas desse predominante registo em momentos quase de reportagem –, alguém para quem o cinema se situa próximo de outras linguagens, aqui sobretudo das artes plásticas contemporâneas.
Nada sabendo de Laura (Scarlett), podemos apenas entregar-nos ao seu mistério, à sua beleza e ao poder de sedução que começa numa voz que alguns considerarão, e eu aprovo, o principal atributo da actriz. Scarlett está magnífica e a neutralidade do seu registo, até determinado ponto, funciona como o espelho que devolve as emoções que o espectador, porque humano, experimenta, ainda que no desconhecimento de maior informação. O filme de Jonathan Glazer equilibra o relativo autismo que decorre do facto de pretender ser visto como objecto artístico, com a coreografia de situações de tensão dramática universais, como a que mostra um bebé indefeso na praia, cujos pais terão desaparecido quando procuravam salvar o cão da família do afogamento.
Os encontros sucessivos com vítimas ou potenciais vítimas vão operando uma transformação em Laura e, de uma forma igualmente estranha, humanizam-na. Ou pelo menos irão torná-la vulnerável. A história – porque todos os filmes têm uma história, até quando é preciso encontrá-la em mais abstractos contornos – encaminha-se para que o espectador transfira a sua identificação com os homens vítimas de Laura para Laura enquanto vítima dos homens. Reverso dispensável que trai o hermetismo por sentimentos partilháveis, sobrepondo o drama da criatura de outro planeta a uma ficção até aí ocupada pelos fantasmas de cada um (em particular, os masculinos). A radicalidade do gesto de Glazer, descontando os autores que o antecederam e inspiram, mas atendendo sobretudo ao facto de o cinema comercial ser cada vez mais normalizado e adormecedor das capacidades de concentração e inteligência do espectador, vem a desaguar numa poética emocional demasiado explícita. Mas o filme fica connosco, no interior da carrinha conduzida por Laura e na melodia daquela voz que ecoa na antecâmara do matadouro.