Passeio os meus olhos pelas páginas de O Homem Duplicado de José Saramago e deparo-me com uma conversa (que o nosso presidente caracterizaria como demasiado pontuada) que me levanta uma série de questões relacionadas com aquilo que é e sobre aquilo que pode vir a ser. O sublinhado é evidentemente meu, já que não se reconhece esse hábito à escrita do nóbel/nobél e a transcrição faz-se depois deste interlúdio visual tomado pela figura mastronça de um Gérard Depardieu em contraluz. “(…) uma vez que a astronomia lhe interessa, imagino que igualmente lhe poderia interessar a ficção científica, as aventuras no espaço, as guerras das estrelas, os efeitos especiais, Tal como vejo e entendo, os tais efeitos especiais são o pior inimigo da imaginação, essa manha misteriosa, enigmática, que tanto trabalho deu aos seres humanos inventar, Meu caro, você exagera, Não exagero, quem exagera são os que querem convencer-me de que em menos de um segundo, com um estalido de dedos, se põe uma nave espacial a cem mil milhões de quilómetros de distância, Reconheça que para criar esses efeitos que você desdenha tanto, também se necessita imaginação, Sim, mas é a deles, não é a minha, Sempre terá a faculdade de usar a sua começando do ponto aonde a deles tinha chegado, Ora, ora, duzentos mil milhões de quilómetros em lugar de cem, Não esqueça que o que chamamos hoje realidade foi imaginação ontem.”
Quem inventa o futuro fá-lo em puro exercício de criatividade ou simplesmente se limita a tornar real aquilo que outros haviam imaginado? Parece que a segunda opção é mais dada ao encaixe nas intrincadas rugas do que acontece. A mente criadora funda o seu trabalho nas ideias da cultura popular e, como tal, aquilo a que chamamos a ponta tecnológica é senão o esquentamento de desejos que só agora viram a luz do forno. Não é pois a multiplicação de ecrãs e a desmultiplicação das imagens pouco mais que o molhado no sonho de ficção científica dos criadores do século passado? Com certeza. Haverá então futuro que não tenha sido imaginado? Talvez. E será que tudo o que vivemos é resultado de algo que passou pelos mais recônditas vilosidades cerebrais de algum visionário? Quem sabe.
Posto isto olho para a notícia que indica que Welcome to New York (2014) de Abel Ferrara já atingiu o equilíbrio entre custo e a recompensa monetária apenas com a distribuição em VOD (video on demand) em França, sem sequer passar pelas salas do mundo (apenas a sessão especial no festival de Cannes), e pergunto-me quem terá previsto que o cinema poderia existir como arte e negócio (rentável) fora da sala de cinema e da tela gigante. Quem terá sido o energúmeno que teve a ousadia de inventar-nos um presente como este? esta é a pergunta que me foge dos dedos por incontrolo (Assunção Esteves inaugurou toda uma nova cama de neologismos). Na verdade nada tenho contra este futuro que se augura, ainda para mais quando de futuro tem muito pouco.
Por um lado o mercado direct to video é uma realidade com várias décadas, sendo que a mudança para o DVD e agora para lojas online, streaming e VOD são pouco mais que processos de uma mesma metamorfose, segundo este método é quase sempre o escolhido para filmes que não se esperam ser capazes de gerar o retorno em sala para compensar o circuito tradicional (hoje em dia os custos das cópias reduziram-se muito com o digital, mas com a multiplicação de títulos a simples ocupação de uma sala acarreta um custo) sendo por isso o caso de Welcome to New York uma excepção ao costume. Note-se no entanto que se trata de uma caso muito específico e dificilmente repetível, dado o peso mediático do filme e a polémica que a sua “censura” comercial gerou – o objecto renegado-pelo-mercado-por-questões-de-influência-política é sempre o mais apetecido…
Então que futuro antecipa este caso do filme de Abel Ferrara? O mesmo futuro que vem acontecendo desde a fundação do cinema como espectáculo lucrativo há mais de um século: se houver público interessado qualquer filme pode produzir lucro, pouco importa se é com uma moeda numa ranhura, num bilhete à porta da sala de cinema, ou do drive-in, numa cassete, num disco, num ficheiro ou injectado directamente no cérebro por um canal intravenoso ou pelo poder sintético dos aromas psicotrópicos. O que está em cima da mesa (e é uma pena que assim seja, já que o que se passa debaixo da mesa é sempre tão mais saboroso) é pois o método de alcançar o maior número de pessoas, se isso se faz na sala de cinema ou directamente no smartphone é toda uma outra questão (que não se deve desmerecer, muito pelo contrário – não fosse o cinema também uma experiência religiosa e como tal necessitado de um templo de culto). Independentemente de tudo isto, o fundamental é que se permita um sistema que produza compensação económica de criadores e seus financiadores.