Queríamos que, nesta homenagem a João Bénard da Costa, coubesse mais do que apenas “o homem do cinema”. Lançámos o desafio a Manuel S. Fonseca, ex-programador na Cinemateca Portuguesa e actual cronista do suplemento Actual do Expresso, também nosso convidado nas próximas Conversas à Pala, e a Dox, artista em estreia na banda desenhada, para falarem de “o cinema do homem”, isto é, das imagens, quase sempre burlescas, que fazem de Bénard uma pessoa singular, por vezes pitoresca como um Tati ou Chaplin, e, acima de tudo, um amador exemplar: pelo cinema, sim, mas também, ou antes de tudo, pelas pessoas que partilham, de algum modo, o prazer tantas vezes incomunicável, de cumplicidades profundas (dizem que patológicas!), da cinefilia. Manuel S. Fonseca usou da caneta para pôr em texto algumas das estórias mais deliciosas protagonizadas por Bénard da Costa, trazendo para o domínio público aquilo que, até hoje, apenas alimentava, com altíssimas doses de boa disposição, uma reverência imensa e muita saudade, a memória do ex-director da Cinemateca nessa casa que ainda é a sua. Dox usou do desenho para alimentar a lenda, porque diz a boa lição fordiana que “quando a lenda se torna facto, imprima-se a lenda”. Pois bem, a imaginação é o limite nestas bandas desenhadas protagonizadas por Monsieur Bénard. O petit théâtre bénardiano está montado e este só foi possível graças à colaboração incondicional dada pela família da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, aquela a quem nós, filhos de Bénard, queremos dedicar este trabalho. Naturalmente, agradecemos ainda a Manuel S. Fonseca e a Dox por terem aceitado – e com o sucesso que pode confirmar abaixo – este nosso desafio. (Luís Mendonça)
Tempestade sobre Lisboa
Os filmes estavam na vida dele, a vida dele nos filmes. Amava as mães dos filmes, não sei se mais as heróicas mães de Pudovkin, Ford e Rossellini, se a mãe irónica, blasée, quase fútil, se a futilidade a combinar com a inteligência, da de North by Northwest (Intriga Internacional, 1959). Com a sua mãe, a mãe da sua vida, ia almoçar uma vez por semana.
Quem levava o João Bénard a esses almoços imprescindíveis e inadiáveis era o Senhor Gil, o motorista da Cinemateca. O João e o senhor Gil eram já, se não foram sempre, unha com carne. Foi em Dezembro, e era a semana anterior ao Natal. No dia anterior – ainda ninguém andava para aí com o aquecimento global a queimar-lhe os lábios – caíra sobre Lisboa um daqueles temporais de quem pariu Mateus que o embale.
A cidade estava num caos, mas o João não era, e o Senhor Gil bem o sabia, de prestar atenção a trivialidades. Falou-lhe de tudo e de nada, de que tinha acabado de conseguir uma cópia dos Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964), com uma Eastmancolor perfeitinha, para o ciclo Jacques Demy. Já o carro curvava para a praça de Londres, apontado à Avenida de Roma, que era o destino do João. E, de repente, o João tira as asas e desce à terra: “Caramba, nunca imaginei que a tempestade de ontem tivesse tido esta dimensão. Já viu, Sr. Gil?”
O vivíssimo senhor Gil olhou à esquerda e à direita e admirou-se: “Mas já vi o quê, doutor Bénard?” O João abespinhou-se: “Então não vê estas centenas de árvores pelo chão.” “Ó doutor Bénard, isso são os pinheiros de Natal à venda.”
Nesse dia, ao almoço, a mãe do João riu-se tal e qual como a Jessie Royce Landis em North by Northwest de Hitchcock. Tinha à mesa Cary Grant e um pinheirinho de Natal.
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O penico da rainha
O primeiro a falar de penicos, e evocou o da Madame de Pompadour, foi Antonioni. Estava de visita à Cinemateca. Luís de Pina, o director, era um coleccionador de miniaturas. Mas o João Bénard lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.
A visita guiada tinha lotação limitada. Luís de Pina ficou cá fora e eu fiz-lhe companhia. Antonioni, ma femme Antónia, e o João entraram. O diabo é que o guia fechou a porta à chave e Antonioni padecia de claustrofobia. Um pandemónio. Abriu uma janela e atirou-se cá para fora. Deus tinha-nos posto, ao Luís de Pina e a mim, debaixo dessa janela.
Amparámos o autor de L’avventura (A Aventura, 1960) que vinha numa queda de Zabriskie Point (Deserto de Almas, 1970). E também já vinha no ar a ágil Antónia. O João, que vira mil vezes o Palácio, bem tentou saltar, mas os recursos atléticos não eram o seu forte e o guia deve tê-lo puxado pelas pernas. Teve de espiar a visita, olhar pela milésima vez para o seco urinol da rainha.
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A admirável cristaleira
Foi na recepção que a Embaixada de Itália deu a Antonioni, quando a Cinemateca lhe fez, em Lisboa, uma retrospectiva integral. O João Bénard relatava um episódio delirante, ao Embaixador, em que Antonioni saltava por uma janela da Palácio de Sintra. Exuberante, o João contou tudo com gestos amplos. Um dos braços dele largou-se, numa autonomia de Monsieur Hulot, e embateu na cristaleira da sala que escavacou com estrondo. Houve mais risos do que desculpas e, acreditem, Antonioni e Manoel de Oliveira contaram barzelletti de carabinieri e anedotas de alentejanos, fazendo da Embaixada uma brejeira tasca de Lisboa.
Um ano depois, o João voltou a ser convidado. Lembraram-se do episódio. “Senhor Embaixador, o ano passado, aqui mesmo, comecei a contar uma história…” e o João a fazer o gesto de como tinha partido a cristaleira e, zás, novo estrondo, uma algazarra de vidros por todo o lado. Se Jacques Tati tivesse sabido, processava o João por plágio.
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Claudia Cardinale, a fera
Já eu levava bons anos de SIC, o João convidou-me para um almoço com Claudia Cardinale, beleza devastadora debaixo da pátina do tempo. O almoço foi no Jardim Botânico da Ajuda, na luminosa Estufa Real. No rosto da Cardinale eu via desfilar Rocco e i suoi fratelli (Rocco e Seus Irmãos, 1960), mas via-se, em cada gesto, em cada fala, em cada olhar do João Bérnard que, se ali almoçávamos alguma coisa, era um almoço do Il gattopardo (O Leopardo, 1963). E como sempre o João Bénard tinha razão. Ele era, finalmente, como sempre sonhara e o décor confirmava, o mais melancólico e aristocrata Príncipe di Salina que um jardim já viu. Ninguém se admiraria, se saísse a dançar com a Cardinale, feita Angélica.
Dançaram, claro, como se vai já ver. O João, com o Dominique Paini, director da Cinemateca Francesa, foi levá-la ao aeroporto. Era natural que fossem já um pouco atrasados, em alvoroço. Corriam, talvez, como nunca se correria num filme de Visconti… Em aeroportos, o João estava sempre num filme de Godard. Claudia Cardinale também: “Perdi o bilhete”, gritou ela. E perdera. O João, no balcão da Air France, a dizer a uma térrea hospedeira que tinha de resolver o problema, era uma VIP, era a Cardinale. E logo, a prestável e informadíssima menina: “ A Cardinale? A do circo?!”
Mas há alguém que não saiba que a Cardinale é uma fera?
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Textos de Manuel S. Fonseca
Bandas desenhadas de Dox
2 Comentários
Que Legal.
[…] Agora fizeram um, tão dinâmico como comovente, sobre o João Bénard da Costa. Aqui, escrevendo, e aqui, falando, pediram-me que colaborasse. Foi com todo o gosto que o fiz — […]