Há duas forças opostas (e aparentemente contraditórias) que actuam simultaneamente quando se trata de filmar a própria família. Por um lado há a facilidade de filmar alguém que nos é próximo, que nos conhece, que nos recebe de braços abertos com a câmara, por outro lado há a dificuldade de filmar alguém que nos é próximo, que conhecemos, que sabemos que sempre nos receberá de braços abertos. Essa aceitação, esse amor familiar, é pois uma faca de dois gumes: permite uma aproximação que de outra forma não seria possível mas por outro lado fá-la, essa aproximação, de forma demasiado aberta – não é fácil dizer que não a quem se ama. Há um equilíbrio que dificilmente se alcança entre o íntimo e o aproveitamento. Cativeiro (2012) de André Gil Mata lida com este conflito, confessando-o no próprio gesto de filmar, e nesse processo desmonta (ou tenta desmontar) a aparente incompatibilidade.
No acto de filmar a família por vezes cai-se na excessiva onda lacrimejante [recorde-se exemplos recentes como Flore (2013) Jean-Albert Lievre – onde o realizador filma a mãe com Alzheimer – ou Photographic Memory (2011) de Ross McElwee – onde o realizador tenta resolver a sua relação conflituosa com o filho adolescente], ou por vezes o virar da lente para o interior do lar é mais uma tentativa de descobrir – através da “máquina da verdade” – um passado que não se conheceu, uma história familiar que não se viveu, uma procura pelas origens, pelas raízes [penso em Fleurette (2002) de Sérgio Tréfaut e na aventura de descoberta que o realizador opera através da mãe]. O que André Gil Mata faz não é uma coisa nem outra: recusa-se aqui todo o emocionalismo (mas cada plano está cheio de sentimento – de memórias verdadeiras ou inventadas) e nem por isso se pretende descobrir o que quer que seja sobre a avó Alzira e a sua vida (nem se podia, já que a senhora estava já evidentemente debilitada à data da rodagem). Cativeiro é um filme que observa e guarda e que existe apenas e só com esse propósito: pela observação descobre que o que fica é apenas um momento, que logo depois passa, momento esse que se guarda para sempre e por isso, por ficar guardado, choca com uma memória outra, inventada, que dificilmente sobrevive à crueza de uma imagem.
Descodificando o sentido obtuso da frase anterior: em Cativeiro o realizador filma o dia-a-dia da sua avó na casa onde nasceu, viveu e acabou por morrer. Filma o acordar, o banho de esponja, o pequeno-almoço, a leitura do jornal no sofá da sala, o almoço. No fundo regressa a um local que sempre conheceu desde criança só que agora filtrado pelo olhar de cineasta, que é como quem diz, regressa ao um local para o descobrir finalmente no gesto de filmar. Este é o primeiro golpe de asa do realizador, a forma como entende que a memória que tem do espaço e da própria avó é diferente daquela que acaba por filmar – porque o tempo caminha ininterruptamente e sempre no mesmo sentido. Ou seja, se pela observação Gil Mata compreende que há um embate entre o que tinha imaginado e o que acaba imaginado, então o desejo de guardar a memória torna-se inalcançável – só se consegue guardar as imagens e essas são duras e por vezes cruéis.
Outro desejo frustrado no filme – e confessamente -, o de filmar a alegria pura do sorriso com que a avó sempre recebia o neto. Desejo frustrado pela tal impossibilidade de interromper o tempo ou de o fazer inverter a marcha, a avó morre depois do quinto dia de rodagem e o sorriso que se tinha planeado filmar na vez seguinte fica por filmar. Digo, ainda bem. Parece-me que um dos grande problemas de Cativeiro é talvez o facto de desconsiderar (?) a câmara como máquina de esquecer – lá está, a imagem é mais forte que a memória e no confronto entre as duas só a primeira pode vingar. Quando se prime o rec já se esqueceu, assim, porque a lente nunca pôde fixar o sorriso de Alzira, Gil Mata nunca o poderá esquecer – em todos os seus formatos e variantes.
Há no entanto um outro aspecto que turva mais ainda este olhar do neto sobre a avó. Se ouvimos a voz off que nos informa do carinho que o realizador tem por essa senhora – a sua força, a sua dignidade (e a câmara consegue espelhar isso) – o dilema instala-se quando colocamos a obra do realizador em perspectiva; dois aspectos surgem: o primeiro prende-se com um fascínio autoral pela morte, o segundo com a construção alicerçada em referências cinéfilas – à cabeça o cinema mudo com pendor sobre o expressionismo alemão e as suas repercussões americanas na Universal.
Tanto O Coveiro (2012) como Barca D’Água (2009) trabalham uma certa fascinação pela morte, o primeiro num tom de conto de terror (Poe foi influência directa), o segundo de forma mais paisagista/atmosférica. Pergunto-me se Cativeiro não partilhará essa mesma ligação, e por isso se não é a apropriação da memória e da morte da avó também um gesto estético, o continuar de uma linha criativa (note-se o perturbante e mórbido paralelo entre a avó que sempre se vai “sentar na cadeira” com a mulher morta da Barca que é sentada e vestida e cuidada pelo seu marido). E se não sei responder é porque Gil Mata nos deixa totalmente desarmados com todas as suas dúvidas e interrogações, porque a sua consciência da natureza do projecto (e da linha invisível que separa um indivíduo de outro) é a demonstração que tais questões também andaram em rebuliço dos interiores do artista – embora não possa deixar de notar que não basta ter consciência da problemática (e exibir tal consciência) se depois nada se faz sobre ela.
O universo do cinema mudo (da Universal) é evidente em O Coveiro e assumido pelo realizador em diversas entrevistas, e poderíamos acrescentar Lang sem grande escândalo. Em Barca a referência é imediata a Sunrise (Aurora, 1927) de F. W. Murnau – os juncos, a borda do lago, a barca da morte – e em Cativeiro o digital vai sofrendo interlúdios de película 16mm – que originaram um ano antes da completude da longa uma outra curta, Casa (2011). Aí o realizador aproxima-se muito de alguns efeitos de câmara de Der letzte Mann (O Último dos Homens, 1924) – os extraordinários planos subjectivos do guarda em plena bebedeira – e o icónico plano sequência do tecto se não vem de Faust – Eine deutsche Volkssage (Fausto, 1926) podia muito bem vir – a alma que abandona o corpo… De novo sentimos essa perigo da estetização da avó – as imagens sobrepostas da cama vazia em Casa a remeterem para uma habitação de fantasmas -, só que desta vez não me parece que o realizador tenha consciência disso, parece demasiado enfeitiçado pelo efeito da película com todos os seus saltos e rugosidades.
Mas não é o caso de que sempre que uma câmara opera uma estética se inicia? Então a única forma de evitar tornar a morte (e em geral o horror) em objecto estético é mesmo não filmá-la – mas isso já Resnais tinha percebido em Hiroshima.