Em 1951, a Paramount Pictures comprou os direitos de um conto de Martin Rackin. Era uma história de contrabandistas, criminosos internacionais, raptos, largas somas de dinheiro de resgate, mulheres belas e perigosas (não são todas?), espiões, barcos, pistolas, casas de diversão nocturna, táxis que perseguem outros pela noite escura, passada na capital europeia mais ocidental, Lisboa, durante a Guerra Fria (se bem que a Cortina de Ferro, mais diáfana do que nunca, só se sinta no sotaque de um marinheiro, a bem das boas relações internacionais). O filme esteve para ser protagonizado por Joan Crawford (no papel que haveria de ser da ruivíssima Maureen O’Hara) e realizado por Nicholas Ray, dupla que, depois do projecto ser abortado, se entregaria aos desvarios de um Western de papelão (tão de papel que Crawford se defende de uns malfeitores com uma folha amachucada) intitulado Johnny Guitar (1954).
Mais tarde, Lisbon (Lisboa, 1956) [assim se chamaria a obra, para, terão pensado os produtores, aproveitar o sucesso de outro filme-cidade, Casablanca (1942)] acabou na Republic Pictures e nas mãos de Ray Milland, a quem, além do de protagonista, coube o papel de realizador. A segunda longa-metragem do actor Milland foi rodada on location – alguns dos mais conhecidos locais turísticos de Lisboa e arredores tornaram-se cenários de cinema: Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Castelo de São Jorge, Palácio da Pena, Palácio de Seteais, a Baía de Cascais -, e para os interiores foram usados os estúdios da Tóbis no Lumiar. O grande actor inglês Claude Rains interpretava um “homem de negócios” grego, que gostava de coleccionar coisas bonitas e dava alpista aos pardalitos que chilreavam à sua janela, matando-os com uma raquete de ténis e dando-os de comer ao seu gato felpudo à hora do pequeno-almoço, a fazer lembrar, muito vagamente, o arménio Calouste Gulbenkian.
No entanto, o grande mistério de Lisbon encontra-se para lá da história que conta ou das suas personagens. Na ficha técnica do filme no site IMDB, Duarte de Almeida, que nas décadas seguintes seria um dos grandes secundários do nosso cinema, presença habitual nas obras de Manoel de Oliveira, Raoul Ruiz ou Rita Azevedo Gomes, consta como figurante, só que, por muito que tenhamos visto e revisto Lisbon, tentando observar por trás das silhuetas dos actores principais nas cenas mais povoadas, como a do aeroporto ou a da casa de fado, não conseguimos identificar o actor português. Julgámos vê-lo a conduzir um táxi e a descer de um avião, talvez mesmo de costas, a olhar o Palácio da Pena, ou com a cara caída sobre uma mesa, com uma carraspana de caixão à cova. Depressa nos desiludimos: não era ele ou era impossível ter a certeza. Apesar de tudo, esta dúvida condiz com a mais enigmática das “caras conhecidas” do cinema português, uma imagem que jamais conseguiremos fixar.
Pouco se conhece da vida de Duarte de Almeida. As únicas informações de que dispomos chegaram-nos de conversas que manteve com o antigo director da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema João Bénard da Costa e que este (d)escreveu nas suas crónicas n’O Independente, pelo que pensamos que teriam mais ou menos a mesma idade. Partindo desse princípio, Duarte de Almeida deveria estar na casa dos vinte quando participou na primeira grande produção de Hollywood filmada em Portugal. Dos quinze anos seguintes, nada se sabe. O actor que partilhava o nome com uma das mais notáveis figuras da História de Portugal – o Decepado, que, a despeito de lhe terem cortado as mãos, não largou o estandarte do Rei D. Afonso V que transportava na Batalha do Toro, agarrando-se a ele com os dentes e o que lhe restava dos braços – eclipsou-se. Voltaria para o seu papel mais emblemático, pelo qual, segundo Bénard da Costa, gostaria de ser lembrado “quando de tudo o resto já não houver memória”.
Andava Manoel de Oliveira à procura de um actor para O Passado e o Presente (1971), adaptação de uma peça de Vicente Sanches, quando lhe falaram de Duarte de Almeida. Na altura, este já ostentava a barba e a careca tão familiares, embora mais aprumadas do que viriam a ser, tão rebeldes quanto o seu criador; o porte também era o que lhe conhecemos: homem grande, alto, forte. Oliveira achou-o ideal para o papel de Honório, marido enganado que troçava das infidelidades das mulheres dos outros, alvitreiro da moral emproado e ridículo. Duarte de Almeida, que acalentara o bichinho da representação desde a experiência no filme de Milland, ficou vaidosíssimo. Contudo, as filmagens não correram como esperado. Conquanto Almeida soubesse o texto – “impossível”, conforme o próprio – não acertava com as marcações impostas pelo realizador. Como nos conta Bénard da Costa, foram precisas quinze takes até que houvesse uma aproveitável, e apenas após Oliveira se pôr de cócoras ao lado de Almeida (o enquadramento ia até à cintura), empurrando-o quando este tentava fugir, o que o terá levado a dizer que Duarte de Almeida “era óptimo, mas só da cintura para cima”.
A actuação em O Passado e o Presente traria alguma fama a Duarte de Almeida, mas não tanta como este julgava. Uma vez, em Paris, foi abordado por um homem que o congratulou pelas suas prestações no cinema. Almeida agradeceu muito ao cidadão francês e ficou contentíssimo que este fosse conhecedor da obra de Oliveira. O dito francês ficou interdito, nunca ouvira falar de Oliveira, nem vira qualquer dos seus filmes. Confundira o actor português com o sueco Erland Josephson, que conhecia de Ingmar Bergman. Ao despedirem-se, Duarte de Almeida deu-se conta de algo que nós, nos dias de hoje, já discutimos incontáveis vezes: as suas semelhanças com actores de nomeada, como o espanhol Fernando Rey ou o alemão Emil Jannings (esta confusão, menos favorável, deixava o português entristecido). É possível que muitas das loas que recebeu fossem dirigidas a estes, embora seja quase impossível aferi-lo nesta altura.
Por confusão ou não, o surrealista chileno Raoul Ruiz, ao vir filmar a Portugal pela mão de Paulo Branco no início dos anos 80, foi buscá-lo para pequenos mas importantes papéis. Em The Territory (O Território, 1981), com o qual Ruiz quis reencenar a tragédia do jogadores de râguebi uruguaios que se comeram uns aos outros (literalmente) depois de o avião que os levava se ter despenhado na Serra de Sintra com o Palácio da Pena permanentemente à vista (esclarecemos: o avião não se despenhou na Serra de Sintra, The Territory é que foi lá filmado), Almeida aparecia em cima de uma barragem, sentado à mesa com o realizador Artur Semedo, incapaz de dar indicações certas aos caminhantes perdidos e esfaimados ou de lhes dar o pão, o queijo e os chouriços postos sobre a mesa, preferindo oferecer-lhes vinhos e conhaques, assentindo, no entanto, que era melhor não beberem de estômago vazio. Um pouco mais tarde no filme, desconversava com uma familiar dos caminhantes, entre o português, o inglês, o francês e uma língua pseudo-eslava, que só Semedo dominava, descansando a senhora pela falta de notícias com um “os americanos não telefonam”.
La ville des pirates (A Cidade dos Piratas, 1983), o segundo filme que fez para Ruiz, proporcionou a Duarte de Almeida o papel mais surreal da sua carreira. Era o pai que chorava o desaparecimento do filho e entregava notas de escudos à filha, Isadore, em troca de favores sexuais (imaginamos, pois tudo é incerto nesta obra escorregadia), lia o Diário de Notícias para se inteirar das novidades e passava a vida estendido numa cadeira reclinável. Num dos momentos mais delirantes, contracenava com uma bola de praia saltitona, a que chamava “meu planeta”. O destino da sua personagem era particularmente sanguinolento, acabando degolado como um porco por um Melvil Poupaud muito novinho (teria à altura nove anos). A criança, sempre vestida de marinheiro, lembra-nos o sonho que Duarte de Almeida contou a Bénard da Costa e este relatou ao mundo: um dia a criança bonita que tinha sido e ele reconhecia do retrato que guardava no quarto apareceu-lhe pela frente, acusando-o de a ter matado, pois que outra razão haveria para já não existir, estando aquele indivíduo feio (“quem conhece Duarte de Almeida, sabe que ele é tudo menos bonito”, escreve Bénard da Costa) no seu lugar. Se nos é permitida alguma liberdade poética, diríamos que a degolação foi a vingança da criança que Duarte de Almeida sonhou. Muitos anos depois, Almeida voltaria a Ruiz, num papel bem mas pequeno: era o representante do Ministério da Cultura Dr. Álvaro Telles Antunes que vinha receber a equipa e os actores de Combat d’amour en songe (Combate de Amor em Sonho, 2000), com grandes gestos e o vazio discurso institucional (como aqueles que se proferem no Dia de Portugal), dentro do próprio filme.
Se atentarmos à filmografia de Duarte de Almeida, constatamos que era bastante fiel aos seus realizadores, atrevemo-nos mesmo a escrever que, à falta da palavra (não se lhe conhece qualquer texto ou entrevista), era a maneira da dar o seu aval a um autor que considerasse. De resto, raramente entrava apenas num filme de um dado cineasta. Estranhamos, portanto, que só tenha participado uma vez no cinema de João César Monteiro. Para mais, depois do papel suculento que o realizador lhe deu em Recordações da Casa Amarela (1987): o de Ferdinando, editor de uma publicação de qualidade duvidosa que João de Deus vai visitar a um restaurante lisboeta, estando este entretido a comer o olho de um belo peixe. Numa simples cena, Duarte de Almeida, na forma como segura uma fotografia comprometedora (“inadjectivável”, adjectivo que terá roubado ao amigo João Bénard da Costa), fuma uma cigarrilha, bebe o cafézinho e um bagacinho, desenha na perfeição o retrato do chico-esperto, figura tão tipicamente portuguesa. O momento em que se desmancha a rir quando César Monteiro lhe diz para enfiar uma capa do 7ete no cu, antes de o plano ser cortado, demonstra uma das principais características do seu estilo de representação: a naturalidade.
Chega a altura de escrevermos sobre uma outra, porventura a mais marcante. Quem viu Duarte de Almeida, ouviu sobretudo Duarte de Almeida: uma voz pastosa, dos milhões de cigarros fumados, a língua que enrolava as palavras que lhe saíam da boca, soltando-as preguiçosa mas resolutamente, como se as saboreasse primeiro, para não errar o seu significado. Cada som proferido por Almeida, áspero, no limiar da irritabilidade, tinha um peso maior do que os outros. Nós, espectadores, jamais poderíamos duvidar da sua verdade, mesmo se mentisse com todos os dentes. A dificuldade que tivemos em encontrar Almeida em Lisbon resulta da impossibilidade de o ouvirmos. Se não o víssemos mas o ouvíssemos saberíamos que estava lá. Com toda a certeza. Permitam-nos mais um aparte: a singularidade de uma pessoa, de um actor, não está no seu rosto (que, se não repetível, é confundível), antes na sua voz, a propriedade mais específica em alguém.
Manoel de Oliveira, o mais prolífico cineasta português das últimas décadas (e de sempre), ter-se-á dado conta desta qualidade de Duarte de Almeida, embora seja dele a única obra em que não usa a voz, a curtíssima Rencontre unique do filme colectivo Chacun son cinéma ou Ce petit coup au coeur quand la lumière s’éteint et que le film commence (Cada Um o Seu Cinema, 2007), na qual representa um papa pela segunda vez (e segunda vez na obra de Oliveira), João XXIII, que compara, divertidíssimo (o riso de Almeida era contagioso), barrigas com o líder soviético Nikita Khrushchev no tal encontro único, captado a preto-e-branco, tal qual um filme mudo. Almeida já havia sido o Papa Clemente X em Palavra e Utopia (2000), fazendo jus ao nome e ilibando o Padre António Vieira (Luís Miguel Cintra com levíssimo sotaque brasileiro) de quaisquer problemas com a Inquisição. Nestes dois filmes, Duarte de Almeida interpreta uma religião bonacheirona e conciliatória, uma visão idealizada da Igreja (a barba branca e as vestes vermelhas em Palavra e Utopia trazem à lembrança a figura do Pai Natal), o que nos faz supor que era um homem religioso, intuição que mais uma vez não pudemos confirmar.
Malgrado as dificuldades sentidas no primeiro encontro entre os dois, Manoel de Oliveira convocaria Duarte de Almeida para grande parte dos seus filmes posteriores, juntando-o à sua inestimável trupe, que incluía Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira e Diogo Dória. Para Oliveira, Almeida pôs-se à conversa com Camilo Castelo Branco numa festa em Francisca (1981), quis prender D. Sebastião, tomando-o (certeiramente) por louco em Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990), conduziu uma prostituta fina à mesa de um café do Porto, desconfiado dos olhares dos rapazes novos, em Porto da Minha Infância (2001) e fingiu-se de cego, escorraçado das Escadinhas de São Cristovão, quando o mestre portuense veio filmar a Lisboa popular em A Caixa (1994), entre tantos outros papéis memoráveis. Haverá, com certeza, quem diga que não passam de cameos insignificantes, sem os quais os filmes pouco perderiam. É não perceber a importância de uma presença. E o que é o cinema senão um conjunto de presenças que nos olham na sua ausência?
Ao contrário do caso de João César Monteiro e de um modo totalmente diverso do de Oliveira, a obra da realizadora Rita Azevedo Gomes, à qual emprestou, enquanto pôde, o corpo e a voz, é quase indissociável de Duarte de Almeida. A personagem do avôzinho de Frágil como o Mundo (2002) [um filme tão frágil como o título indica], que entrevemos por entre o intenso nevoeiro que ensombra a história de amor entre dois adolescentes, é como figura tutelar de todo o cinema português, das suas fraquezas e qualidades, da vontade de o fazer, apesar de todas as dificuldades. É também de Azevedo Gomes a última obra em que participou, antes de desaparecer da nossa vista e deixarmos de lhe ouvir a maravilhosa voz: A Colecção Invisível (2009). Para trás, para a posteridade, ficam os filmes. Os dos autores já mencionados, mas também de José Fonseca e Costa e Paulo Rocha, que não tivemos oportunidade de ver e, assim, de comentar neste texto.
Duarte de Almeida sumir-se-ia envolto no mesmo mistério em que apareceu. Se nada sabíamos dele, pouco mais sabemos agora.