“As personagens tinham de ser simpáticas, ou achava-se que o filme seria um falhanço. Se a personagem fosse um patife, no final havia uma reviravolta para ela se redimir. Eu odiava isso”. Palavras do senhor Tarantino sobre o cinema americano dos anos oitenta proferidas no último Festival de Cannes. Acrescentou ainda o dito senhor que a década de oitenta foi a mais “repressiva do cinema americano depois da década de 1950”. Uma pessoa até pode tender a concordar com isto, mas depois pensa e olha mais de perto e chega à conclusão que os provavelmente mais subversivos filmes americanos dos últimos trinta anos vieram todos da época “mais repressiva do cinema americano”, como o RoboCop (RoboCop – O polícia do futuro, 1987) ou o They Live (Eles Vivem, 1988) ou o To Live and Die in L.A. (Viver e Morrer em Los Angeles, 1985), todos eles, também, filmes de Hollywood.
A primeira voz a ouvir-se em To Live and Die in L.A. é a do presidente Ronald Reagan, o homem que desregulamentou a economia e cortou impostos até ao céu, numa liberalização que resultaria em grande paz e felicidade para o povo norte-americano, com este a atingir em 1989, no fim da presidência de Reagan, o maior estado de prosperidade desde o fim da Segunda Grande Guerra. Houve, no entanto, uma meia dúzia de pessoas que não aceitaram de bom grado estas políticas de crescimento económico, todas elas pertencentes a sindicatos maldosos que não queriam que a economia crescesse e que as pessoas estivessem alegres e felizes (tal e qual como sucedia na Inglaterra do senhor Thatcher). Ronald tratou-lhes da saúde e acabou tudo em beleza, com muito dinheiro a circular entre toda a gente.
Esta escolha de Reagan é perfeitamente entendível: num filme onde toda a gente quer os seus interesses defendidos, o seu quinhão preservado e se possível apoderar-se do dos outros, quem melhor para iniciar as “hostilidades” que o maior executor, na década de oitenta, do “salve-se quem puder” individualista? E melhor ainda: sem qualquer vislumbre de moralismos e condenações sobre o que estava a acontecer nos EUA em 1985. Apenas e só desgraçados e desgraçadas a jamais caírem na esparrela de serem ingénuos e deixarem que lhes passassem por cima. Sempre com muitas notas envolvidas, claro. Tal como dizia o camarada Deng Xiaoping, “ser rico é glorioso”.
Não espanta, portanto, que o genérico do filme de Friedkin esteja inundado de planos de notas, maços de notas, transações de notas, tráfico de notas, máquinas de fazer notas. Numa montagem abrasiva de MTV dos seus primórdios [conferir Scarface (A Força do Poder, 1983) e sua montagem de casamentos e lavagens de dinheiro, e conferir Rocky IV (1985) e suas cenas de treino], com a música de Wang Chung em que a bateria é vergastada e os sintetizadores apedrejados, e numa Los Angeles anti-glamour, feita de barracas e edifícios industriais, lá vamos vendo diversas actividades muito nobres em que o dinheiro é muito bem empregue, sempre com o firme propósito de ajudar a economia nacional.
Que o dinheiro esteja presente tanto numa Los Angeles a cair aos pedaços como no estúdio de um “artista plástico” é a antevisão de uma narrativa em que o único dever, para todos, é tentar amealhar o mais possível de dinheiro para fazer face a diversas situações. As personagens de To Live and Die in L.A., coitadinhas, não reconhecem o poder da “ética”, do “não roubarás” e do “dar a outra face”. São personagens que quando morrerem ninguém, nem possivelmente os seus pais, poderá dizer que “eram excelentes pessoas, amigas dos seus amigos, compreensivas, etc.”. São personagens tão obcecadas com as suas próprias misérias que valem por todos os “patifes” que no final se “redimiam”, como disse o Tarantino sobre os anos oitenta.
É um filme de Friedkin, claro está. Um homem que tem uma visão do mundo que nos consola: colocar personagens já de si “problemáticas” em situações e contextos desfavoráveis e depois pedir-lhes que actuem em conformidade, e não como os padres e freiras do politicamente correcto querem que actuem. Fez o melhor filme americano da actual década – Killer Joe (2011) -, mas, infelizmente, acho que não tem nenhum estudo sobre a “simetria dos seus planos, espantoso, vejam!”. Faz filmes sobre pessoas cheias de falhas e nunca as olha de cima: vale por milhentas “simetrias de planos, qui lindo!”