Saramago escolheu em 2002 escrever um livro sobre a figura do duplo – e o nome nada escondia desse intento, O Homem Duplicado -, seguindo assim um tema quase tão antigo como a própria literatura: do mito de Dionísio ao O Duplo de Dostoevsky, passando por William Wilson de Poe, O Outro de Borges ou O Homem da Máscara de Ferro de Dumas, toda uma horda de escritores se vem dedicando a imaginar o que é isso de lidar com uma reprodução de nós mesmos. No entanto Saramago manteve-se junto à sua escrita tomando uma habitual narração irónica e meio escarninha – deixando de parte a alegoria política dos Ensaios Sobre… ou de Levantado do Chão e A Jangada de Pedra, assim como evitando as reescritas dos mitos históricos (Memorial, Evangelho, História do Cerco de Lisboa). Ou seja, o tema do original e da cópia (ou do certo e do erro, quem é o erro?) é visto por Saramago através de um olhar deliciosamente triste de um aborrecido quarentão solteiro (como já o era em Manual de Pintura e Caligrafia ou História). Há aliás um curioso paralelo entre O Homem Duplicado e História do Cerco de Lisboa – além da referida proximidade entre os protagonistas – que se relaciona na forma como quer a literatura quer o cinema podem (ou não) fixar a realidade (e de como tal fixação incorrecta é capaz de alterar o próprio real, ou a memória dele).
Em História do Cerco de Lisboa um homem altera um livro de história – a palavra “não” impõe-se ao revisor – e com isso altera o próprio passado, perturbando a forma como se tomou Lisboa aos mouros. Um não que tudo muda. Em O Homem Duplicado um homem descobre um duplo de si (idêntico em tudo o que é físico) naquela que é a arte própria da duplicação, o cinema (descobre um actor secundário num filme que é uma cópia de si). Em ambos estabelece-se esta ideia de que o registo ficcional é mais forte que a própria matéria das coisas – será que se Tertuliano Máximo Afonso não tivesse visto o seu duplo no cinema (onde tudo é por natureza dúplice) esse duplo nunca teria ganho forma? Sentimos pois que é o próprio cinema que inventa o homem duplicado (como era o livro de história que inventava/confirmava o passado). Neste sentido parece-me que é este o livro mais cinematográfico dos escritos pelo autor, já que versa sobre a própria essência do que é a arte cinematográfica.
No entanto o que Denis Villeneuve retira do romance é pouco mais que a ideia (e por isso podia muito bem estar a adaptar qualquer uma das outras interpretações literárias do tema), optando por um tom totalmente oposto ao sarcasmo saramaguiano: muito mais thrillesco – não esquecer que Villeneuve é o realizador de Prisoners (Raptadas, 2013) também com Jake Gyllenhaal -, muito mais “negro”, muito mais sexualizado – tudo se transforma num quadrângulo amoroso -, muito mais (exageradamente) simbólico – as aranhas, os espelhos, a arquitectura (for)matadora. Note-se no entanto que não se está aqui defendendo que uma adaptação não retire apenas o que mais lhe apraz, isso é o esperado, a questão prende-se com o facto de que o isso que Villeneuve optou por extrair é apenas o que é lateral ao romance e como tal perde-se na adaptação o caldo do texto, deixando-nos apenas com os pescoços da canja.
Talvez a mais curiosa dessas mudanças de tom seja a forma como aquilo que era a essência do trabalho de Saramago, a forma como transformava o suspense em ronha quotidiana, se transforma em mais um exemplo (ainda que particularmente bem urdido) de thriller moderno. Por exemplo, das quase 300 páginas do romance, mais de metade centram-se no processo minucioso que o protagonista emprega de modo a conseguir descobrir a identidade do seu duplo (vê cada um dos filmes da produtora do filme em que pela primeira vez o encontrou, intersectando sucessivamente os créditos, reduzindo assim Todos os Nomes a apenas um). Um procedimento chato e cansativo, muito pouco dado ao cinema – a certa altura no livro comenta-se esse mesmo facto (numa espécie de previsão daquilo que seria a dificuldade de adaptar a própria novela), “um filme sobre uma ida a Marte em que a verdade dos factos fosse respeitada seria a mais enfadonha estopada que alguma vez se viu”. Em Enemy (O Homem Duplicado, 2013) resolve-se essa questão em pouco mais de cinco minutos, basta uma rápida pesquisa na Internet e tudo já se sabe – vivemos na idade da informação, já não há tempo a perder, tudo num estalido de dedos ou literalmente na ponta dos dedos. Tudo o que era procedimental, trabalhoso, coisa de picuinhas com tempo livre a mais se esfuma completamente a bem de um objecto polido e organizado no sentido da tensão.
Há no entanto algo muito digno de nota, a saber, a forma como consegue dar a sensação (numa história cujo fim é sempre previsivelmente o mesmo) de que se constrói sobre ambivalências, isto é, o realizador trabalha de forma muito explícita (por vezes demasiadamente) o que deixa em aberto, as pontas que não ata e a forma como encerra em profundo anti-clímax toda a empresa. Não deixa com isso, apesar de ser nas palavras do próprio Villeneuve um filme “pessoal”, de ser um objecto pastoso que se perde na forma decorativa como filma um conjunto de signos e o espaço urbano de Toronto.