Contam-se pelos dedos de uma mão deformada os filmes em que Woody Allen actuou sem realizar e se descontarmos os títulos do final dos anos 60 e início dos anos 70 em que a sua principal contribuição era na escrita do argumento, então já não são necessárias deformações para contabilizar esses títulos. Ao ritmo aproximado de um por década, Allen vai surgindo quase sempre em comédias de gosto duvidoso fazendo de si mesmo – excepção para The Front (O Testa de Ferro, 1976). No entanto, quando nos últimos anos Allen se tem dedicado a encontrar no corpo dos seus actores o seu boneco inseguro e hipocondríaco (John Cusack, Jason Biggs, Larry David, Owen Wilson, Cate Blanchett), não deixa de ser refrescante reencontrá-lo no seu corpo original. Mesmo com o cheiro a mofo.
Há por sua vez um aspecto lateral ao próprio Allen que motiva algum interesse perante Fading Gigolo (Quase Gigolo, 2013) – onde também a graça vem em fade e o humor se fica quase sempre pelo quase – a forma como de algum modo parece querer trazer para um universo adulto aquilo que vem sendo a recente comédia americana (aquela onde os adolescentes, ou adultos com a mesma idade mental, são reis – uma onda de filmes a que se poderia chamar de comédias Peter Pan, se quiséssemos ser muito educados). O que acontece é que o mesmo universo altamente sexualizado dessas comédias, onde a descoberta sexual vale por si e funciona quase sempre como motor narrativo (onde vai John Hughes?), surge também aqui e em moldes semelhantes. A diferença é que os corpos que protagonizam essas descobertas vêm já carregados de décadas de experiência.
Um momento em particular é definidor desta espécie de perversão da moda do humor juvenil: uma Sharon Stone (logo ela, de todas as actrizes) cinquentona e um John Turturro da mesma idade encontram-se pela primeira vez para uma experiência de sexo pago (ele é o tal gigolo em crescendo – ou diminuendo, depende da perspectiva – do título), ela está nervosa (e ele não menos) e acaba por dizer algo como, é como se estivesse de volta à secundária… E talvez seja esse o ponto, o desejo, o fétiche vem menos do acto e mais daquilo que ele recorda, da ingenuidade da primeira vez. O prazer da insegurança, o gosto pela descoberta.
Neste sentido, Fading Gigolo envereda por caminhos incomuns, de salientar a sexualidade na comunidade judaica ortodoxa e, através desse ponto, a importância do toque como veículo emocional (Vanessa Paradis é o cume da candura). O problema é que para o fazer Turturro troca as pernas com uma banda sonora super-impositiva, numa série de lugares comuns da comédia romântica, tentando ainda pelo caminho falar da destruição dos pequenos negócios em Nova Iorque, da vida multicultural dos bairros tradicionais (falta pouco para se ouvir gentrificação) e das tensões que neles se desenvolvem, ou ainda do fosso que se estabelece entre os muito ricos e os remediados – tudo en passant como quem atira temas para uma fornalha, entre graçolas mais ou menos brejeiras.
Por isto, ver Fading Gigolo (Quase Gigolo, 2013) faz ecoar uma deliciosa linha de diálogos de Broadway Danny Rose (O Agente da Broadway, 1984) – filme quase esquecido que não repesco por acaso, não fosse Allen lá e cá fundamentalmente o mesmo personagem (mas um mundo de elegância e pormenor distancia os filmes) – que rezava assim: My rabbi used to say we’re all guilty in the eyes of God. Do you believe in God? No, no. But I’m guilty over it. It’s very important to be guilty. I’m guilty all the time and I never did anything. E nem mais, talvez por Allen nada fazer (ou por sentirmos que a sua influência é demasiado ténue – o seu boneco não chega para salvar o filme, mesmo que alguns diálogos se salvem: hassidic ou acidic?) permite que se caia numa espécie de Pretty Woman (Pretty Woman: Um Sonho de Mulher, 1990) vai à sinagoga. É bom que se sinta culpado.