Como é que se narra um milagre?
Assim:
“Perante a absoluta certeza da criança – um leve e curioso sorriso – Johannes ordena à morta, em nome de Jesus Cristo, que volte à vida. Há um terrível silêncio à roda. Há um plano fabuloso de Inger no caixão, coberta por um lençol de linho branco, luminosissimamente branca e há um contraplano da criança. Nada, ninguém se move. Até que a criança começa a sorrir e olha para o tio com o desarmante aplauso de quem nunca duvidou do desfecho. Depois, vemos Inger soerguer-se e ser recebida nos braços de Mikkel. Os velhos comentam que na verdade este é o velho Deus de Elias, eterno e sempre igual e a palavra final, dita enquanto Inger beija carnalissimamente o marido, é vida.”
E uma declaração de amor, como se faz?
Assim:
“Apaixonei-me por Alida Valli quando me curei da minha paixão por Esther Williams. Por muito estranho que pareça, assim foi. E foi a segunda vez (a terceira, se incluir inconsciências de que só muito mais tarde tive consciência) que mulher foi melhor e que nela todo inteiro me despenhei. O meu desejo era tão ardente quanto mais o assumia por impossível. Saciá-lo era pecado contra o meu espírito e a natureza dela. Nessa altura, não sonhava transgredir tanto. Era novo de mais na terra e na carne. Se um duende, maligno ou benigno, me viesse profetizar que um dia lhe seguraria no pulso e lhe fecharia os olhos, respondia-lhe que não abusasse da minha tendência para excessos imaginativos. E se o dito espírito acrescentasse que isso só não aconteceria por recusa ou impotência minha, mais nomes violentos lhe teria chamado.”
Já agora, como passa ele – o amor pelo cinema – do coração para o olho ou do olho para o coração, das entranhas para o movimento do mundo?
Assim:
“Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontra-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa para o que se está a viver. Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: ‘Keep the wheel spinning, Ed. I like to hear it spin’. No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projecionistas: ‘Keep the film spinning. I like to see it spin’. Tanto, tanto.”
O João diz, neste último texto sobre – já se percebeu – o seu filme favorito, Johnny Guitar (há uns anos tinha-o visto 68 vezes, “but who’s counting, anyway”), que não podia continuar. É preciso chamar-se à razão quando se ama e quando se expressa esse movimento interior, essa emoção. O fim desse movimento, dessa e-moção, há-de ser sempre apenas uma pausa, um até já, um suster provisório de respiração. Em relação à escrita do João Bénard da Costa é preciso fazer o mesmo, auto-impor-se uma paragem, sempre forçosa. Parar de o citar, parar de o ler, parar de ver cinema pelas suas palavras é custoso porque há no seu trabalho um loop que faz descobrir um país, uma sensibilidade, do qual não apetece nada sair. Por isso é grande a tentação de apenas usar palavras de João Bénard da Costa para falar de João Bénard da Costa. Parece que apenas estas – pesadas, bonitas, descritivas, profundas – lhe poderão fazer a devida justiça. Por isso é grande a tentação de fechar os olhos aos filmes de que fala e vê-los pela lente da sua “magnífica obsessão”.
Manuel S. Fonseca, que com ele foi trabalhar para a Cinemateca Portuguesa aos 26 anos, escreve nesta sua declaração de amor por ele (“eu gosto, agora, aqui, do João Bénard”) uma outra coisa que me fica como muito justa e verdadeira: “O que é que o João nos deixou escrito? Deixou-nos filmes escritos. Chamem-lhes se quiserem filmes-textos ou textos-filmes. Esses textos são cinema porque contêm tudo o que é essencial da mise en scène do cinema narrativo – o ângulo da câmara, um travelling, os cambiantes da luz, o esplendor ou dura escassez de um décor. Esses textos são literatura porque cumprem todas as unidades dramáticas do romanesco, enunciam conflitos, dão densidade e dimensão a personagens, desenvolvem com exaltação peripécias e incidentes que fazem avançar a acção e, por fim, happy end ou final trágico, resolvem o conflito.”
Para começar com a literatura digo já que mais do que ter a qualidade do romance de muita peripécia, a escrita de João Bénard da Costa colocava a personagem João Bénard, todo inteiro, lá dentro (não às metades, no cinema, sabemos, era só da cintura para cima que o pseudónimo Duarte de Almeida era um óptimo actor [ler crónica “A Star is Born”, onde entre outras coisas confessa: “Mas aprendi que entre mim e um actor há a mesma distância que entre um ornitorrinco e um dinossauro”]). Aqui o João, o nosso personagem João, mãos e pés pesados, como na vida real, mente fugidia e distração constante contou as imagens da sua vida e a forma como se encontravam e despenhavam com as imagens dos outros. Imagens mas também poesias, pinturas, igrejas, fés, amizades e tudo o mais de que a vida é feita quando se cresce, isto é, enquanto se dela vive. E nessa escrita de que a actividade de programação era um papel químico, quer dizer, recebíamos impresso o impacto emocional dos filmes que via e que programava e, inversamente, o que expressava por palavras era o caminho que encontrava para articular os conjuntos de filmes, a forma como rimava a sua vida com a paixão por certos cineastas, actores ou actrizes. Ou partes de actrizes. Enquanto viver nunca mais me vou esquecer de duas das suas frases. Uma sobre o traseiro de Clara Bow: “Os poucos filmes que vi com Clara Bow não me permitem jurar se ela tinha ou não it, a não ser que tal termo se refira, alusivamente, a um dos mais formosos traseiros que já estes olhos meus, impuros, viram”. E outra sobre a piada de camionista (ele dizia ser imbecil, mas quem acredita?) que circulava sobre esse “outro nome de mulher” chamada Marylin Monroe: “morreu a loira dos camionistas, jamais boa actriz mas muito boa atrás”.
Mas antes que me disperse – o tal travelling fervilhante, o mais das vezes instintivo, da sua escrita – deixem-me voltar à literatura que habitava, frondosamente, o que escrevia o escritor Bénard. Nela, a personagem Bénard foi aquele miúdo a quem tiveram de arrancar à força do Tivoli, pois chorava desmedidamente depois de ter visto o Pinocchio (Pinóquio, 1940) (o tal a quem Walt Disney tinha tido a genial ideia de lhe fazer crescer coisas de cada vez que pecasse), foi aquele senhor que nos abriu a casa “encantada” para ver o que era “muito de lá”, retratos, histórias e stars. Foi ainda o miúdo infeliz “exilado” em Portimão em 41 por causa do medo que o pai tinha que a Alemanha atacasse Portugal (não atacou e quatro anos depois o menino apanhava uma valente primeira bebedeira de champagne com uns vizinhos polacos para festejar o fim da guerra). Ou, foi, mais tarde, o príncipe feliz e sonhador em terras nevoentas da Arrábida e de Sintra, o homem feito que fazia viagens de milhares de quilómetros para ver igrejas. A criança que lia enciclopédias e o homem que escreveu dicionários. Bénard era a personagem para quem o cinema era uma visão ou um “waking dream”. Nesses sonhos lia-se todo o mundo, exorcizava o desejo de quem ele via, ali, no escuro, a falar, a dançar, a olhar para ele. Falava do medo. Tão bom que faço outro desvio. Dizia: “Porque é que pensamos tanto no nosso medo e tão pouco no medo dos outros? Mas, se fosse ao contrário, não teríamos medo do medo, não saberíamos o que o medo era. A mão do medo”. E umas linhas adiante nesta crónica incrível chamada “O irmão mais velho da Alice” sobre o medo de conhecer/reconhecer o outro, mas também acerca dos medos do então ano de 2003 e sua suspeita generalizada pós-11 de Setembro: “anda o diabo à solta? Eu prefiro dizer que anda o medo à solta, embora o medo possa bem ser o mais certo dos nomes do diabo”.
É esta a literatura bénardiana. Ela não está na sua paixão pelos grandes escritores, de Musil a Jorge de Sena, que chamava constantemente para junto do seu pensar. Ele fazia parte de uma geração de “críticos” enciclopedistas, sobre as aspas e a crítica já lá irei, para quem a cultura geral era omnidisciplinar. Talvez por isso hoje, por um lado, tão distante de nós na cultura da especialização “time (and focus) is money”, e por outro lado, tão próxima de nós nessa tarefa posta adiante dos nossos narizes de reconfigurar a tarefa iluminista de catalogação e partilha digital dos saberes. A literatura de Bénard era mestre no hiperlink avant la lettre (era o olho do furacão, quando arrancava a fazer associações e a criar saber). A sua literatura é essa capacidade de manter uma personagem ao longo das múltiplas peripécias que imortalizou (e a elas acresce, expande-se, a afecção pelos episódios que todos contam sobre a pessoa e que não estão fixados; como se verá, este dossier pretende fazer esse acrescento à sua obra) e de no-la fazer integrar na nossa memória, como diz o poeta brasileiro Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”. Sobretudo nas crónicas que escreveu para O Independente e depois para o jornal Público, aos filmes de Bénard juntaram-se o cachopo, o adolescente, o adulto, o velho Bénard que entretanto ocuparam um espaço no imaginário afectivo português (não apenas em Portugal, isso está claro) que, mais do que deixarem saudades, deixaram marcas. Influências, formas de ver, de sentir, até de dividir entre a teoria e a prática. De encontrar, se quiserem, na philo-sophia, no amor, na amizade pelo conhecimento algo próprio e livre do comprometimento teórico. A cinefilia como matéria de fantasmas e obsessões nocturnas, longe das páginas soturnas dos manuais e introduções, corpus e conclusões do escrever académico.
João Bénard da Costa não era apenas um escritor. Nem era sequer um escritor-cineasta. Era um cineasta-cineasta. Podemos dizer, como o fez Manuel S. Fonseca, que a escrita do João Bénard continha todos os elementos próprios da mise en scène: travellings, décors, movimentos de câmara, direcção de actores e direcção de leitores. Contudo, o seu cinema escondia, como no cinema narrativo, a sua técnica. Chamava o leitor a entrar nos filmes sem nunca os ter visto e mesmo que os tivesse visto percebia que depois de o ler nada tinha visto. Ou que o que estava a ver agora era um filme diferente. Já contei noutro local que a experiência inaugural da ressurreição, do milagre de Ordet (A Palavra, 1955) foi para mim manchada pelas gargalhadas de alguns miúdos na Sala do Palácio Foz da Cinemateca. O que eu nunca contei é que esse milagre foi imediatamente reposto (um milagre sobre outro milagre) a caminho de casa, com a folha de sala do filme na mão e os advérbios de modo (citados ali no cimo deste texto) – “luminosissimamente”, “carnalissimamente” – a fazer-me voltar a ver o filme. Insuspeitamente, as gargalhadas dos outros à beira de serem substituídas pelas lágrimas deste.
Mais importante do que esse poder de evocação do filme bato-me pelo poder de criação do seu cinema. Se no cinema o espectador se deixa ler e narrar pelo filme – somos todos Natalie Wood a ser pegados pela cintura por John Wayne, ou seja, pelas imagens – no país de Bénard, o seu cinema também nos lê e nos narra. Nesse cinema, o “filme” de Bénard pode conter outros filmes existentes, outros sonhados, outros jurados a pés juntos que são assim ou assado. Em muitos casos os “filmes” de Bénard eram melhores que os filmes dos filmes. E mesmo nos grandes monumentos a escolha era duvidosa. Não ponho as mãos no fogo, por exemplo, pela obra de Sternberg “muito particular paixão dele” e as aparições de Dietrich, por comparação aos “filmes” que Bénard deles fez. Seja como for, esses “filmes-escrita” podiam preparar o encontro posterior com os “filmes-filmes” que não estavam normalmente ali à mão de semear – seja na Cinemateca, seja nos jornais, seja na televisão era sempre os filmes do “tempo da Maria Cachucha”, como dizia, aqueles que evocava. Esse encontro era sempre outra coisa, quer acontecesse à posteriori e nós já soubéssemos como James Stewart acabava a mostrar as pernas a Margaret Sullavan no final de The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940), quer fosse tudo ao contrário. Nós vimos Chikamatsu Monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954) mas não vimos o plano da janela luminosa em que Osan olha o candeeiro ou vela acesa antes de fugir. Bénard viu-o. Ou antes, filmou-o. E nós que saímos maravilhados do filme de Mizoguchi saímos afinal cegos. Diz ele, ainda a propósito do filme: “Toda a visão é ideal (como toda a obra de arte) e só por simpatia (no sentido etimológico da palavra) nos aproximamos dela. Se bastasse ter olhos para ver, os cegos seriam bem mais desgraçados e bem mais minoritários”. É isso. A sensação de ser cego de olhos escancarados. Ou às vezes a impressão de ver na escrita de Bénard e nos filmes que lhe dizem respeito uma relação de sonho. “E por isso, às vezes me pergunto se sonhei este filme [Francisca, 1981] ou se esse filme me sonhou a mim”, escreveu ele. E por isso, às vezes me pergunto se sonhámos o que lemos em João Bénard ou se João Bénard sonhou que nos escrevia e nos filmava a nós, escrevo eu.
Esse espelho foi evidente na maneira como ele me filmou. Ou me escreveu. Repito, nem sei. Serei agora um pouco biográfico mas breve. O cinema para mim começou, além das sessões esporádicas na televisão, com os filmes de pipoca nos cinemas Alfa e Olivais Shopping em Lisboa. Já no secundário recordo Julhos, Agostos e Setembros tórridos em que além dos livros (sobretudo juvenis e umas mini-enciplopédias de capas grossas e coloridas chamadas Tudo sobre… e depois biologia ou arte ou o que fosse) havia os filmes. Lá em casa, alugava-se compulsivamente filmes nos meses de Verão (três por dia mas ao final da tarde do dia seguinte entregavam-se dois e buscavam-se mais dois, tornando a contabilidade complexa). Eram vistos sobretudo a seguir ao jantar, pela noite dentro com tostas mistas e outros pecados como companhia. Via-se tudo, esgotávamos prateleiras, apanhei sustos, ri muito. Nessa altura, tirando algumas excepções de realizadores (aquelas eram para mim o Spielberg, o George Lucas e pouco mais) era o tempo dos actores, sobretudo década de 90, por isso podem imaginar, Sylvester Stallone, Robert de Niro, Bruce Lee, Al Pacino, Arnold Schwarzenegger, Bruce Willis e por aí fora. Seguiu-se o cinema King e algum cinema europeu e asiático que por cá estreava. Havia o Begnini, os irmãos Dardenne, tudo era novo, às vezes novo demais, mais do que conseguia comportar. Lembro-me de uma sessão de Lancelot du Lac (O Lancelote do Lago, 1974) onde tudo, as partes do corpo, as espadas a meia haste, tudo aquilo me parecia despropositado, sabia lá eu quem era o Bresson. Saí exasperado a meio e conta-se esse momento entre as minhas humilhações cinéfilas.
E como o que era breve já se vai demorando falo apenas de mais duas ou três recordações para chegar aonde quero. Já na Universidade lembro-me de uma vez um amigo, uns anos mais velho, no autocarro para casa me ter mostrado os sublinhados de um livro que andava a ler. Chamava-se A Loucura da Normalidade de Arno Gruen. Eu, que me considerava o mais normal dos loucos, ainda lhe ouvi que vinha do Museu do Cinema (o que era isso?) e que tinha visto um filme sobre um conjunto de pessoas muito bem vestidas que iam a uma festa e, de repente, depois de bem comerem e melhor beberem, queriam ir para casa e não conseguiam. A pergunta que se seguia foi a mais normal das mais normais: “mas porque é que…?”. Respondeu-me só que não, não conseguiam. E eu parvo sem perceber. Pode ser que o meu amigo me tivesse dito o nome do filme mas dele não fiquei com memória. Só uns anos mais tarde soube desse anjo, já exterminada que estava uma certa visão do cinema para mim, pela descoberta dessa casa encantada que me ajudou a atravessar intermináveis (5!) anos de Direito meio torto. Dois filmes por dia na antiga Barata Salgueiro, onde todos me pareciam da minha família. embora com a distância reverente dos parentes que há muito não encontramos. Fotografias de actrizes e actores nas paredes, as salas muito cheias, o açucareiro comum do bar. E, claro, as folhas da Cinemateca onde se me abismavam raciocínios, frases que me deixavam todo pequenino e deslumbrado. Quem as escreviam eram todos deuses. Entre eles, assim em letras grandes, conheci JOÃO BÉNARD DA COSTA.
Desde essas primeiras viagens com os seus textos a pesarem-me na mão, até hoje em que folheio as compilações de crónicas e colecções de folhas de sala (só de Buñuel foi ele que o Viu e o pensou todo) nunca mais me fez sentido escrever ou pensar nele assim com letras minúsculas. Para mim será sempre JOÃO BÉNARD DA COSTA. Essa maioridade tem a ver com duas dimensões. Uma pessoal outra menos. A primeira é simples: foi por causa dele que mudei de rumo para estudar cinema pois foi ele que me deu a ver o que o Cinema era para a minha Vida e o que a minha Vida era para o Cinema. “Entre as nossas vidas e a minha vida nunca aprendi bem a diferença, pois só conto como vidas nossas as vidas que com as minhas se cruzam ou que com a minha se tocam”. Felizmente, quando a minha se cruzou brevemente com a dele, pude dizer-lhe isso mesmo. Que entre mim e o cinema esteve sempre o seu nome em maiúsculas, a sua presença a pairar, o seu amor a ensinar-me. A segunda razão ainda mais simples é: nunca ninguém escreveu sobre cinema em Portugal como ele.
Lembro-me perfeitamente de atravessar meia Lisboa à noite, pálpebras pesadas depois de horas no escuro com imagens que às vezes nem metade compreendia (lembro-me bem dos choques do Eisenstein, sem perceber a dureza da montagem, por exemplo) e de pensar como era difícil ser-se (que verbo tão pesado e definitivo) crítico de cinema. Nos textos do João Bénard nem eram apenas os múltiplos filmes que referia que me deixavam de rastos – conseguirei eu algum dia conhecer assim o cinema?, pensava. Nem sequer me ralava ainda o nada saber também de pintura da Renascença ou quem era Ariosto. O que me preocupava mesmo, pois era tão ingénuo quanto ambicioso, era saber como poderia eu escrever assim, parecido, com aquela poesia que ora me elevava o amor que tinha pelo cinema, ora me deixava completamente derrotado. Nunca escreveria assim. Se isso é um facto com o qual aprendi entretanto a lidar havia algo que só mais tarde iria perceber. O estilo de João Bénard é imitável. Podemos ocupar as suas estruturas frásicas, misturar os registos mas o “senhor cinema português”, como lhe chamava o Frederico Lourenço, é inimitável. Isto porque João Bénard amava, era um amador e era aqui que eu queria chegar.
Não é possível escrever como João Bénard, mesmo os seus filhos (já lá iremos), porque não é possível reproduzir o amor de alguém. Esse amor ajuda a ver em que lugar nos sentamos na sala escura (falo da sétima, mas a qualquer das outras artes isto se aplica), ajuda a formular o lugar da dança quando todos pensam que “morremos”: “Lembras-te” – dizia ele – “lembras-te como é tão bonito quando o mar enche a tela toda? Lembras-te quando ela ainda não percebeu que estão todos a chorar porque julgam que ela morreu e que ela começa a rir com os dois rapazes? Lembras-te quando eles os três começam a dançar de alegria e, pouco a pouco, todo o povo dança também?”. Eu fui esse “povo” que subitamente dança e porque o fui sou agora aquele que lembra Bénard que lembra Serge Daney que lembra Boris Barnet. Esse é o circuito do amor, do meu amor. E como dizia o nosso Pessoa “O resto é a sombra / De árvores alheias”.
Como todos aqueles que amam, o excesso fazia parte de ler as suas visões obsessivas e fantasmagóricas. Introduções que eram o texto todo, planos que não existiam, ou, lembro, ficou conhecida a expressão “o mais belo dos filmes”. Na vertigem do momento muitos eram os mais belos, sem medo nenhum dos superlativos absolutos, cumprindo à risca o baudelarianismo “parcial e apaixonad(o)” da crítica (a política era coisa em que se metia menos, e bem). E eu que me recordo de lhe falar na embirração de amar os piores filmes dos melhores, sabia lá eu que paixão era aquela que turvava o olhar e acendia a escrita… Dessa febre havia os que lhe causavam o “orgasmo vertical” (de que nada sabia mas queria saber e perguntou abertamente a Eduardo Prado Coelho numa crónica o que era); era o Lang, o Renoir, o Ford, o Ray, o Buñuel, o Hawks, o Oliveira, o Hitchcock americano; havia os que admirava mas não amava como Welles, Fellini, Ozu, Eisenstein, Tarkovsky; e depois os que gostava pouco (que expressão tão pouco à Bénard), de memória apenas lembro o Greenaway e o Wenders. Mesmo no cinema português, apesar da expressão de Frederico Lourenço, há quem se abespinhe com as trincheiras que criou à volta de Oliveira [ficou célebre a frase com que abriu uma crónica d’O Independente sobre Francisca: “Como me acontece com todos os autores que amo, o último filme de Manoel de Oliveira é sempre o melhor”.], do César Monteiro, de algum (pouco) Cinema Novo, sobretudo Paulo Rocha e Fernando Lopes e quem o acuse de não gostar “por aí além” do cinema entre portas. Mas quem veio para o cinema e para a alucinação para ser justo?
Quem ler o João Bénard percebe imediatamente que a sua força lírica procede de uma paixão, de um tempo, em que o cinema tinha o poder cultural, mediático de fazer pactos de sangue, inimizades para a cova. O travelling de kapo, o affair Langlois, a certa “tendência de um cinema francês”, mesmo, os textos “contra a nova cinefilia”, foram exemplos de posições de força onde ou se via ou não se via, ou se era “positivo” ou não, onde ver uma coisa implicava fechar deliberadamente os olhos a outra. E tantas vezes quisemos abrir os olhos e não nos deixaram à força de Pides e de “Lisboas, cidades fechadas”. No tempo da outra senhora, quando era possível ver tinha de ficar visto. Para sempre, julgava-se, pelo menos. Desde criança, como Alexander de Fanny och Alexander (Fanny e Alexandre, 1982), como Bergman no fundo, no quarto ou no interior do armário com a “lanterna mágica”, as imagens em movimento tatuaram o olhar infantil do jovem Bénard. Não só os Pinnochios, os Dumbos ou os Ladrões (para lá) de Bagdad mas também os filmes proibidos que o menino não podia ver, os filmes ouvidos à criada. E mais tarde as histórias de clandestinidade, o ir a Paris ver se era mesmo verdade o que diziam dos couraçados eisensteianos e separar de vez Einstein de Eisenstein. A indigestão dos filmes uns a seguir aos outros que concorriam com a “Gioconda” ou a “Vitória de Samotrácia”. O próprio Bénard sabia da valência dessa proibição: “Como para a heroína de Buñuel [Viridiana], fica sempre em nós a saudade de alguma clandestinidade ou de alguma perversidade. Se não ficasse, não conseguiria escrever esta crónica, nem calendarizar a minha vida a nomes de filmes e em nome de filmes”.
Quem ler o João Bénard percebe imediatamente que essa clandestinidade ajudou a produzir um afecto (dele pelo que escreve e de nós por ele) e quem o ler a sério não pode deixar de sentir que cada texto, assim como cada filme a que se referia, eram únicos, como o fotograma que passa. Mas como descrever essa especialidade? Como explicar a sua escrita? Luc Moullet dizia que um bom crítico de cinema é aquele que: (1) nunca utiliza esquemas pré-concebidos para falar de filmes; (2) descreve o que vê e prefere sempre o concreto ao abstracto; (3) faz rir o leitor. Nem vou perder espaço e tempo a citar exemplos de como a sua escrita cumpria todos estes preceitos e mais algum. É esse mais algum que queria agora explicar. O clássico na arte é clássico não só porque é reprodutível mas também porque produz uma articulação entre o individual e o colectivo, entre o particular e o universal. Isto é, é através do talento do discurso individual e individuante de um artista (não faço aqui distinções, Bénard era um artista) que conseguimos aceder a experiências comuns do colectivo, que nos tocam, nos dizem respeito a todos. Isso é o clássico, a escrita que fica. Bloom ou Calvino explicam. Assim, além dos seus jogos de palavras, dos trocadilhos, dos encadeamentos e rendilhados furiosos, das referências intermináveis, há essa capacidade de fazer com que cada vez que leiamos algo como – “graças a ele [Dana Andrews], aprendi que não há ninguém como os inocentes para nos deixarem empapados e sujos com o sangue que tiveram a habilidade de só fazer derramar por interposto parceiro ou interposta mulher; [ou sobre Henry Fonda] Com ele aprendi a amar a invencível fragilidade dos insones portadores da pureza” – lermos que a aprendizagem é nossa. Como são nossos os seus desgostos pelo laço de Cyd Charisse, os seus melhores anos da vida com Teresa Wright ou os mais obscuros fantasmas dos seus desejos de luz e de sombra por Ingrid Bergman.
Ele somos nós. Os filmes da sua vida são os nossos filmes da vida. Ele não os conseguia bem distinguir, como uma casa de espelhos. Muito menos nós que o lemos. Belo é o paradoxo pelo qual o maior crítico português de todos os tempos precisa das aspas para entrar nessa função. Bénard considerava-se “crítico”. A explicação dá-a ele melhor do que ninguém. O trecho é grande mas mais esclarecedor não podia ser:
“Nunca serei eu a rejeitar a famosa definição baudelairiana de crítica, quando lhe exigia parcialidade e paixão. Nunca serei eu a anateminar terrorismos por estas bandas. Nunca serei eu a defender os jogos perigosos da transparência. Mas precisamente porque sei donde se fala – quando se fala com paixão crítica (dois termos que só não são antagónicos quando são um pelo outros envolvidos) – sempre me afastarei de um texto crítico quando esse secundarizar a elucidação do que critica (a sua plena iluminação) ou a formação do gosto de quem eu quero que goste tanto como eu gosto e que, se possível, goste como eu gosto. Talvez por isso aplique sempre “aspas” ao crítico que outros vêem em mim. Certamente por isso, não desculpo aos críticos o abastardamento do gosto, de que começaram por ser vítimas e acabaram por ser fautores. E sobretudo por isso não perdoo que se seja crítico sem gosto, a contragosto ou com desgosto. Com nenhum desgosto aprendi nada. E aprender a gostar é tudo quanto pedi e peço aos críticos de quem gosto.” [sublinhado meu]
Além das políticas do gosto e dos autores sabemos o que havia em Portugal: os “pedagogos moralistas”, aqueles que falam mal de tudo para “se darem ares” (como lhe disseram os crescidos aos 11/12 anos dessa figura dos senhores críticos), os “bizarros hieróglifos” do calão estruturalista, os sociólogos do cinema, os maneiristas, os barrocos, os “jornalistas culturais” da crítica como publicidade encapotada. No meio de tudo isto perdia-se o essencial da crítica para Bénard, a formação do gosto que no seu caso começou com a revista Vértice, a Telé-Ciné, mais tarde dos Cahiers claro está. Essa formação ganha requintes platónicos: “Aprender para gostar. E até lhes devo [aos críticos] – já noutro nível – que me tenham confirmado o que pressentia, muito antes, noutras dimensões: que é preciso que exista o gosto para haver conhecimento e que se começa sempre por gostar do que não se percebe até se perceber que se gostava porque já se percebia”.
É bom de ver porque apetece tanto tirar as aspas a Bénard. Porque essa educação do gosto que girava sempre numa dialéctica (também platónica?; é algo para pensar…) entre a lírica desmedida e a sobriedade da análise histórica – o filme tal com as actrizes tais que uma vez fizeram tal numa rede didáctica da história do cinema, mas quem engano eu?, da história da arte, mas quem engano eu?, da história da vida – fazia “vítimas” nos espectadores e nos próprios críticos, Os Filhos de Bénard. Esses filhos não são apenas aqueles cujo olhar foi transformado por acção do “programador anti-teórico”, do Langlois português, mas também aqueles cuja mão foi transformada por acção das palavras do “”crítico” anti-teórico”, do Bazin português (outra vez algo para pensar… e a sério).
Uma vez, a propósito do que devia ser o papel do artista, e, mais genericamente, da arte política, Walter Benjamin escreveu: “um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém”. No caso de João Bénard da Costa os seus filhos são sobretudo os seus pares. Aí reside a sua importância política e artística. É clara a distinção da crítica cinematográfica portuguesa, ou, se quiserem, de quem vive de pensar os filmes, antes e depois do João. A crítica nos jornais ou nos múltiplos blogues e sites “amadores” nunca poderá seguir noutra esteira que não seja a do seu amor pela luz projectada na escuridão, pela vontade de escrever o que se sentiu a percorrer o yellow brick road ou a cantarolar o “Do Ré Mi” da Julie Andrews. O “cinema no coração” faz parte dessa herança que Bénard deixou aos seus filhos. Filhos bastardos pois, conhecendo-se João Bénard, sabemos que ele era a favor da direiteza das linhas tortas, defensor de todas as “linguagens impuras”. Herança bastarda que não exige fidelidade exclusiva, que não é assente no convencimento activista. “Convencer é uma tentativa de colonização do outro”, dizia Saramago, “convencer é estéril”, avisava Benjamin.
É pois por isso que os filhos de Bénard são-no por via da influência: “Começa então a atribulação da influência ou para me deixar de rodeios, a angústia da influência. Que finalmente consiste, nesta outra dimensão, na descoberta que a angústia provém não da influência, mas da ausência dela. Só aquele que renunciou à influência, sabe o que é a angústia”. Os filhos de Bénard são os críticos “under the influence”. A cinefilia pós-benardiana sabe que pode falar, pensar, sonhar através de filmes que não existem. Sabe a importância da frase de Richard Burton em Bitter Victory (Cruel Vitória, 1957) que Bénard tanto gostava: “I always contradict myself”. E isso aprendemos todos, sem excepção, da sua escrita: “I always contradict myself when I write myself”.
Como o projecionista exausto que pára de rodar o Johnny para o Johnny, também é preciso parar este texto embora no interior algo me diga “keep it writing”. Em 2003, o João Bénard conversava sobre a passagem de ano (e dos anos), de olhos postos na criança, na mulher, na velha de uma só figura da transitoriedade humana pintada na renascentista “Alegoria da Vida Humana” de Guido Cagnacci. E cronicava assim: “Uma noite mal dormida (é certo que muito menos ressacada do que as nossas noites de antanho) e já o ano é tão velho como o seu finado sucessor. Os anos só são novos enquanto novos somos nós. Crescem connosco, envelhecem connosco e vão morrer connosco (…)” e depois terminava: “(…) pois o que se passar no dia depois da minha morte já não passa comigo”.
Cinco anos depois da morte de João Bénard da Costa os filhos dele mostram-lhe que não, que tudo ainda passa com ele, por causa dele. Eu escrevo agora, aqui, que sou um desses filhos de Bénard e que “contente de mim” estou por lhe mostrar daqui, directamente para as estrelas, que a minha vida sempre foi um enigma, até mo ter mostrado os rituais do happy end, do mundo, do amor e do sonho. Esse sim, o mais belo, o mais espantoso dos seus/meus filmes.