Numa altura em que a televisão portuguesa era ainda um local de formação cinéfila e programas de autor como Quem Fala Assim traziam para a antena longas conversas (também) sobre cinema, o ano de 1994 juntou a Maria João Seixas o amador de cinema João Bénard da Costa. A conversa que se segue é a primeira transcrição desse encontro televisivo – autorizada pela própria Maria João Seixas a quem desde já agradecemos, assim como a Lúcia Guedes Vaz pelo apoio fundamental – onde se ouve (e agora se lê) a palavra cinema 118 vezes. Vezes de menos para quem sempre viveu do e para o cinema. Da boca de um e de outro ouvimos “O cinema é um vício”, depois lembram-nos que “O cinema é um vasto trabalho de equipa”; um diz que “O cinema é memória” e o outro responde com “O cinema faz esquecer. Faz acordar e esquecer.”; “O cinema é um espantoso divertimento, mas pode ser muito mais do que isso”, sim, é verdade e além de divertimento “É pelo cinema que entramos na porta da história”; “O cinema constitui uma ilha no meu dia arrancada ao real para entrar no sonho” – nos dias de Bénard e nos dias de todos os cinéfilos… -; “O cinema é [definitivamente] um milagre” e claramente “O cinema é muito mais importante que a vida.” (Ricardo Vieira Lisboa)
Muito boa noite. João Bénard da Costa, vimos no início do programa, a belíssima cena, um extracto do ainda mais belo filme de Manoel de Oliveira, Francisca (1981), onde se diz que a alma é um vício. Diz-me tu se o cinema para ti é também um vício.
Ah, é definitivamente…
Explique-me.
Bom, quando se diz que a alma é um vício, podemos perguntar-nos o que quer dizer essa frase. E é exactamente esse o mistério da frase… por isso é que nos fica na cabeça, é uma frase estranha, porque é que a alma é um vício? E nesse sentido ela [Francisca/Agustina] diz que é porque é algo com que não se pode passar sem ou a que nos habituámos a não poder passar sem. Não sabemos se podemos passar sem, mas habituámo-nos, ou habituaram-nos, a não poder passar sem. O cinema nesse sentido é a mesma coisa, ou seja, toda a minha vida depende dele e já não sei como seria viver num mundo sem cinema. Muita gente viveu sem ele até este século, talvez muita gente vá viver sem ele no futuro. Eu não sei, porque a minha vida caiu em plena época do cinema e como tal toda a gente da minha geração e de outras foi apanhada por esse vício.
E é ele que te alimenta prioritariamente?
É ele, como em todos os vícios, que dá sentido a uma forma de viver.
E a tua geração alimentava esse vício nalguns templos, e esses templos eram algumas salas de cinema e cineclubes. Que é feito disso hoje em dia? Onde é que nos podemos alimentar hoje?
Tudo isso desapareceu. As salas de cinema, as mais bonitas, desapareceram, sobretudo aquelas que foram os grandes templos do cinema em Lisboa, no meu caso foi onde eu vivi. O S. Luiz, o Tivoli, o Eden, mais tarde nos anos 50 o São Jorge, o Império e o Monumental. De tudo isso subsiste o São Jorge cortado aos bocadinhos, já não é o que era…
E o Monumental.
Sim, mas nasceu outra coisa, já não é o Monumental, aquele Monumental do ecrã de 70mm, a sala enorme, todo aquele espaço…
Mas estás de acordo que, não sendo o nosso Monumental, de qualquer maneira as salas do Monumental são o acontecimento mais recente que relança a ideia do culto pela sala de cinema.
São, exactamente. Umas das coisas que eu penso que aqui se fez erradamente foi a partir de certa altura acreditar que estavam condenadas essas grandes salas e que se tinha que ir, como se foi em muitos países, para a sala pequena. Evidentemente tudo isto tem épocas e hoje em dia, lá fora, está-se a voltar à sala grande e a regressar ao prazer do cinema, com uma geração mais nova que reencontrou e redescobriu o cinema na sala pequena – hoje em dia com a alta definição é a mesma coisa ver ali ou ver no vídeo -, mas o cinema é toda outra coisa: um grande espaço, um grande ecrã, um grande som, uma grande imagem. E isso é que pode ser redescoberto. Parece que em Lisboa se começa outra vez a caminhar para esse cinema e o sucesso de salas como o Monumental parecem prová-lo um bocado. E penso que isso vai desenvolver-se e vai acontecer.
E o trabalho da Cinemateca, consideras tu que és o director, é complementar?
Claro que é complementar, no entanto o trabalho da Cinemateca dedica-se a um público muito mais especial. A grande sala de cinema é para toda a gente, a Cinemateca está aberta a toda a gente, como é evidente, mas quem se canaliza para lá são pessoas já com um forte gosto pelo cinema ou que o vão criando à medida que aparecem por lá.
Achas tu que se devem mostrar todos os filmes igualmente nas Cinematecas, como a ideia do Langlois?
[Acena com a cabeça que sim, mas levanta um dedo] Ele não dizia que se deviam mostrar todos os filmes, ele dizia que se deviam guardar e conservar todos os filmes. Um responsável por uma cinemateca não se pode arvorar em juiz e dizer: este filme não deve ser conservado, tem pouco interesse, etc… quem somos nós, daqui a um tempo tudo isso mudou, vêm outros gostos, como o cinema tem mostrado amplamente. Evidentemente, como não se pode mostrar tudo, há uma selecção que é da própria programação. Também o Langlois dizia que programar é uma arte, é uma arte porque aí se remonta a história do cinema e constantemente se refaz essa história do cinema. Portanto, conservar tudo e mostrar uma parte, mostrar em função daquilo que se conservou, em função de novas relações que se podem estabelecer e de novas aberturas para a história do cinema.
Eu aprendi a gostar de cinema aos catorze/quinze anos em Moçambique. Porque tive a sorte de uma vez ser convidada para ir ao Cineclube da Beira e passavam o Couraçado de Potempkine (Bronenosets Potemkin, 1925) de Eisenstein. Havia alguém que fez uma pequena palestra, filme que à altura, estávamos em 49/50, não podia ser mostrado em Portugal continental. E eu lembro-me que na altura fiquei muito surpreendida, porque até aí eu ia ao cinema ver filmes com actores ou actrizes, via filmes com a Brigitte Bardot, com a Doris Day, no melhor dos casos com o Totò, mas não sabia o nome de um realizador. O cineclube ensinou-me o que é um filme, no fundo, e a história do filme. E nunca mais deixei de ser mordida pelo bichinho do cinema, que me tem alimentado a maior parte dos sonhos a partir de aí. Tu achas que hoje em dia, com o enorme afluxo de produtos a que se chamam filmes, a que as pessoas têm acesso da maneira mais fácil e muito menos criteriosa – penso eu, talvez esteja a ser injusta –, mas sobretudo com os vídeos e com a própria programação de filmes na televisão, como se pode hoje reconquistar ou ensinar o amor pelo cinema?
Bom, esse foi o teu caminho, o nosso caminho, no fundo o de toda a gente – e penso que é um muito certo e mais evidente, e mais natural. Para uma ficção cinematográfica, o que lhe dá rosto é o rosto dos actores. São sempre eles a grande amarra que nos pode ligar ao cinema. Pela qual mais facilmente nos identificamos e nos projectamos. Por isso toda a gente diz que foi ver um filme com a Ingrid Bergman, com a Brigitte Bardot, com o Totò, com o não sei o quê. “E este filme da Brigitte Bardot não é tão bom como aquele outro dela, gostei mais da Ingrid Bergman aqui do que ali”. É sempre essa a função do actor, o rosto visível do filme. Até começarmos a pensar, ou sermos levados e ensinados, que o facto de alguns filmes serem menores ou piores, ou melhores que outros, se devia ao outro senhor, que estava por detrás da câmara, que sabia filmar melhor ou pior, todos aqueles actores, história e tudo o resto.
E a seguir à descoberta do realizador ainda havia a descoberta do argumentista, do director de fotografia…
Do cenógrafo, do músico, de toda a gente. O cinema é um vasto trabalho de equipa, conduzido por um realizador, tal como uma orquestra é conduzida por um maestro. Sem todo esse conjunto de intérpretes que têm que ser excepcionais para haver uma grande obra, mas se não houver maestro, por muito bons que sejam os músicos, ninguém toca sozinho.
Mas isso eram os anos 60, apesar de tudo não havia tantos filmes como isso. E a televisão tinha acabado de começar e não tinha a programação de filmes com a mesma frequência que tem agora. Como é que se pode, e é essa a minha intenção e gostava muito que me ajudasses a revelar isso ao telespectador, chegar ao despertar desse interesse – que é justíssimo – e essa curiosidade e esse respeito pela obra que qualquer filme pede?
Bom, há uma transformação evidente nos anos 60 com o aparecimento da televisão; até então se nós queríamos entrar nesse mundo tínhamos que ir ao seu encontro, tínhamos que ir a uma sala de cinema. Há um momento em que começa a entrar em nossas casas a partir da televisão. Evidentemente o que é um filme visto na televisão não é o mesmo que um filme visto na sala, eu costumo dizer que estamos exactamente como diante de uma reprodução, ou seja, o que nós vemos não é o que o realizador filmou, é uma reprodução. É muito útil ver um filme na televisão ou em vídeo, para nos recordarmos de um filme, para podermos olhar melhor uma coisa, etc. Mas todo o desenvolvimento e toda a escala que envolve o espectáculo cinematográfico desapareceu. Há imensa gente hoje cuja experiência é feita dessa desatenção com que se vê a imagem em casa, uma imagem para a qual não se fecham as luzes, que é vista distraidamente, entre conversas, sem a atenção concentrada, sem o envolvimento total do espectáculo cinematográfico. Perguntas-me agora como é que se pode voltar…
Mas tu regressaste à crítica também para ajudar…
Mas é muito importante, muito importante que qualquer espectador que começa a fazer a experiência da sala de cinema, e sobretudo em obras que estudou em casa, que viu, etc. De repente realiza, isto é outra coisa, é apanhado por essa outra coisa. Hoje apesar de haver uma maior oferta, não sei se é tão maior oferta, não há tantos filmes em sala, passam muito depressa, vão em várias salas, não ficam, já não faz parte de uma vivência colectiva como há 20 ou 30 anos, onde cada filme era objecto de conversas em casa, discussões, via-se outra vez, passava ao cinema de reprise, ficava-se com aquele filme muito tempo, alguns anos. Como se pode ficar com algumas séries da televisão, sobre as quais há as mesmas conversas e debates, hoje raramente o cinema é objecto dessas discussões, debates, dessa conversa como o era nessa altura. À medida no entanto em que se faz essa experiência, essa experiência pode voltar e à medida que se vai criando (e ele vai-se criando) o cansaço pela forma da imagem televisiva. É aí que o cinema, porque é outra coisa, não tem nada que ver com o que está na televisão, estamos perante duas realidades de natureza diferente, duas experiências de natureza completamente diferente, e é esse salto para uma experiência completamente diferente que de novo dará sentido à experiência cinematográfica.
Fiz esta pergunta a um convidado de um dos programas anteriores e não obtive resposta, estás tu de acordo com uma frase do Godard em que diz que o cinema é memória e a televisão é esquecimento?
Estou. Como em todas essas frases há um jogo de palavras, mas exactamente, a televisão pela acumulação sucessiva de imagem, que vai sucedendo todo o dia no ecrã da televisão, do filme para a actualidade, para o documentário, para a conversa, para o debate suscita-me o esquecimento. Passou tanta coisa que eu não retenho nada, o que passou na televisão foi uma espécie de música de fundo do meu dia. Ao passo que tudo aquilo que se vai passar numa sala de cinema constitui uma ilha no meu dia, arrancada ao real para entrar no sonho. Na televisão não preciso de sonhar absolutamente nada, estou bem acordado e ela faz parte da minha vigília.
Cada filme regista em celulóide um pouco da memória do país, da história do realizador, da história que o rodeia, à qual ele pertence. Estando ou não de acordo, dir-me-ás, como é que entendes uma espécie de endémica rejeição que os portugueses têm em relação ao seu próprio cinema, ao cinema português?
Ah bom. [sorriso] Ora bom, em relação à primeira parte estou completamente de acordo, e de tal maneira que o cinema mais do que isso fez parte de toda a nossa visão da história século XX. É impossível pensar neste século e em tudo o que aconteceu sem o ver reflectido no cinema: os filmes que o reflectiram, os de guerra, de aventura, policiais, que acompanharam todas as diversas fases deste século e a sua história que a reflectem mas que ao mesmo tempo brilham outra coisa diferente, reflectem e transformam. É nesse sentido que sempre que eu sou transportado a uma determinada época, recordo os filmes dessa época que tiveram na minha memória e na minha imaginação um papel determinante. Era a guerra, era também a Ingrid Bergman, era também o Casablanca (1942), era também o E tudo o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), tudo isto faz parte de toda uma vivência de um determinado mundo, como os filmes que se debruçam sobre essa época dão sempre e necessariamente a ver. É pelo cinema que entramos na porta da história. [coça a cabeça] Em relação ao próprio cinema, ao cinema português, fomos educados a menosprezá-lo, enfim, faz parte do fenómeno típico português em relação a tudo o que é português e não só ao cinema.
Mas particularmente em relação ao cinema.
No cinema particularmente, mas por duas fases completamente distintas. Uma fase que dura até aos anos 50 em que o cinema português é para consumo de analfabetos, ou seja, daquele público que não podia ler as legendas e que portanto vai ouvir conversas e diálogos e, quanto mais engraçados fossem esses diálogos, mais apelo tinham esses filmes, a grande época dos actores populares portugueses, do Vasco Santana, da Beatriz Costa, do António Silva, com toda a série de comédias portuguesas.
As comédias também tinham uma acção política, penso eu.
Teriam, mas não era tanto isso. Estou convencido que não era isso que fazia o seu sucesso.
Mas faziam esquecer a tristeza da realidade…
Mas isso todo o cinema faz esquecer. Faz acordar e esquecer.
Mas o cinema de propaganda tem de alguma forma a intenção de…
Mas isto não era cinema de propaganda.
Tu achas que não era?
Não era. Tirando alguns casos. Um caso muito claro de cinema de propaganda em Portugal, A Revolução de Maio (1937), é um filme que fracassa estrondosamente.
Esse é obviamente de propaganda, eu estava a referir-me à propaganda como o naipe de comédias que nós conhecemos…
Ele funciona como cinema escapista que aconteceu em todos os países, por exemplo, o musical durante a guerra em Hollywood, nos alemães A Mulher dos Meus Sonhos (Die Frau meiner Träume, 1944)…
Eu não estava a dizer que era um fenómeno exclusivo português.
Enfim, cria uma zona de esquecimento, a tal zona de sonho de que falámos.
Mas não era intenção do regime que a produção de cinema desses anos fosse…
Eu não penso que houvesse uma intenção desse género. Penso que… evidentemente os filmes tinham que não pôr problemas, não podiam pôr problemas. Mas não havia propriamente ao fazê-los uma intenção de vamos contribuir para que as pessoas…
Não eram obras de encomenda.
Não eram obras de encomenda, mas havia uma coisa, e isso é importante, na medida em que esses filmes tinham um consumo muito grande pela gente que não sabia ler – por isso mesmo não havia dobragem e os filmes que tinham que ser legendados não eram acessíveis a uma grande parte da população portuguesa analfabeta que não podia ler – e tinham como destinatário o público com menos exigência. Como se dizia nessa altura, o chamado público popular, as plateias menos exigentes. E havia, da parte das camadas, das elites culturais ou sociais, um certo paternalismo ou desprezo em relação ao cinema português. Porque não era um cinema tão interessante. Há um momento em que esse cinema, por razões internas e pelo próprio aparecimento da televisão, cai extraordinariamente nos anos 50, o público deserta, o cinema já não corresponde a nada e aparece uma nova geração, uma geração que vai tentar que o cinema português seja outra coisa que fale finalmente de nós próprios. O cinema novo português, o Paulo Rocha, o Fernando Lopes… uma nova abordagem do cinema português. E aí, a rejeição ao que havia sido o cinema português, que agora não era feito para plateias populares e portanto não era apanhado por elas, e também não consegue conquistar as outras, fica sempre entre umas e outras. Por isso a maledicência que rodeia quase todos os filmes portugueses. Temos uma grande estranheza em ouvir falar a nossa própria língua, aí já é um factor de afastamento, uma estranheza em ver representar actores portugueses, não estamos habituados a identificar-nos ou projectar-nos neles.
Aí a televisão, sobretudo com a produção de novelas portuguesas, não me estou a referir às brasileiras, eu pensei que contribuiria para a reconquista da naturalidade do olhar do espectador relativamente ao actor português.
Não, porque tu vês que as pessoas, apesar de tudo, vêem a mesma coisa, continuam a dizer que a telenovela brasileira é muito melhor que a portuguesa, mesmo quando há casos pontuais em que não é assim; há telenovelas brasileiras péssimas, tem havido algumas portuguesas relativamente regulares. E as pessoas continuam a preferir a outra. É curioso pensar porque será que as pessoas se identificam tanto com os actores brasileiros, comentário por vezes muito injusto de que aqui sim há grandes actores, nos actores brasileiros, contra os actores portugueses.
É completamente injusto.
É também do meu ponto de vista completamente injusto, mas vem dessa distância que é possível estabelecer, apesar de tudo – a língua é a mesma mas é dita de outra maneira – há qualquer coisa que é aceite ali, mas que não é aceite no filme português.
Achas que o português, por pudor, não gosta de se rever nos filmes que se fazem e onde ele está necessariamente sempre contado e tratado. Achas que é uma rejeição por pudor?
Bem, terá alguma coisa que ver com isso, mas tem também que ver com a rejeição de códigos de representação em que as pessoas não se reconhecem. Deixaram de ir ao teatro, deixaram de ir ao cinema e portanto todo o código de representação de actor é rejeitado. É portanto muito curioso que as pessoas digam, “ah, os actores portugueses são assim, assado e aqueloutro”, e ao mesmo tempo vão-se identificar com os actores do passado, às vezes muito mais declamatórios, retóricos, num estilo mais antigo de representar – ainda que actores magníficos – mas a que as pessoas já aderem, porque já está mais desfasado no tempo.
Estás de acordo que o código de representação dominante é um código marcado e estereotipado pelo código americano e que as novelas brasileiras, embora em português, seguem o código americano?
Têm o código americano, exactamente.
E voltando ao caso de uma das minhas, e tuas, paixões do cinema português, o Manoel de Oliveira. A que é que se deve que, apesar de tudo, as pessoas teimam em não reconhecer aquilo que nós sabemos ser a verdade: não só o génio como o talento, raro no panorama internacional dos realizadores de cinema, que Manoel de Oliveira tem. O reconhecimento internacional que ele tem é uma verdade insofismável. Sempre que o Manoel de Oliveira faz um filme, e o filme é apresentado num festival internacional, é o nome de Portugal, que muitas vezes por opções políticas, não se consegue elevar a níveis tão altos e que está sempre aclamado. Porque é que as pessoas rejeitam o cinema do Manoel de Oliveira?
Em relação ao cinema do Manoel de Oliveira, eu julgo que há outras razões de rejeição. Evidentemente o cinema de Manoel de Oliveira é um cinema exigente, difícil. É um cinema com dificuldade de aceitação pelas camadas mais vastas de público. Como em qualquer país, quando tu falas desse prestígio internacional indiscutível do Manoel de Oliveira, o lugar que ele tem junto da crítica internacional, estás a falar da crítica, não estás a falar de um vasto sucesso de público, como por exemplo um outro realizador de que nós gostamos muito também, como o Bergman ou o Dreyer, que fez algumas das obras-primas…
Já vamos aos teus filmes da vida.
… e que teve toda a sua vida essa mesma dificuldade, na Dinamarca, mas também noutros países por onde passou. Porque exactamente, e este é outro ponto fundamental, o cinema é um espantoso divertimento, mas pode ser muito mais do que isso. Como há todos os romances populares, há também o Proust, há obras de pintura acessíveis e outras que o são muito menos. Portanto, em cada uma das artes há diferentes níveis de adesão, e há a possibilidade de no cinema uma pessoa poder exprimir o seu próprio universo, o seu próprio mundo, e exprimi-lo de uma forma que não seja forçosamente acessível a grandes massas, ou que não pretenda atingir essas grandes massas. Um realizador tem o direito de procurar atingir um público menor, de procurar encontrar esse próprio reflexo da sua obra.
Não posso deixar de referir o caso espantoso do Vale Abraão (1993), e de facto os aplausos ao filme ultrapassaram em muito os aplausos da crítica internacional, eram os espectadores e os distribuidores internacionais que quiseram apostar directamente no filme. Foram mais de dez minutos de aplausos na primeira apresentação do filme, e não era a crítica que estava lá, a crítica tinha visto o filme noutra sala. Já ultrapassou o nível da crítica. E porque é que nós portugueses não temos sequer a curiosidade, e é uma questão para a qual eu não obtenho reposta, porque é que não se vai a correr ver o fenómeno? Porque é de um fenómeno que se trata.
Bom, quando tu dizes que ultrapassou de facto a crítica, é verdade, porque hoje, como no caso de tantos outros realizadores pelo mundo, e podemos referir só os que estão em exibição neste momento em Portugal, o Kieślowski polaco ou o Iosseliani, são realizadores que já têm um público fora de grande camadas, mas não é o mesmo público que vai ver o Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993). Ou seja, nunca se pode pensar, e ninguém faria essa aposta, que o Manoel de Oliveira pode fazer os espectadores do Jurassic Park.
Nem ele, nem nós esperamos que ele faça isso…
Exactamente aí é que começa. Nós queremos ao mesmo tempo que essa aposta triunfe e que haja esse tipo de adesão. A maior parte das pessoas está muito pouco preparada para essa adesão, e está de tal forma determinada por aquilo que se está a passar actualmente no mundo da distribuição cinematográfica, pelo filme americano, pelo filme de aventuras, pelo filme de ficção-científica, que não exige que se pense minimamente e qualquer obra que venha noutro sentido começa a ser imediatamente repelida. Eu não penso que isso acontece só ao Manoel de Oliveira, já acontece a outros realizadores, mesmo a alguns que há uns anos eram autores com sucessos comerciais relativamente grandes, caso do Ingmar Bergman, caso do Bresson, etc. Eram realizadores que em Lisboa chegaram a correr muito bem e que hoje em dia suscitam a mesma reacção. “Não tou pra pensar, filmes que me ponham grandes problemas não tenho paciência, vou ao cinema pra me divertir e pra me distrair”.
[Intervalo]
[Ao regressarmos do intervalo, ouvimos um tema de Johnny Guitar com os conversantes à meia-luz num plano lateral que apenas nos mostra as suas silhuetas contra um fundo rubi]
João, um dos mais lindos temas, de um dos meus filmes da vida, e seguramente também um dos teus. Um dos mais lindos temas de amor, Johnny Guitar (1957).
[sorriso imenso]
Na brincadeira que te propus neste programa, enunciaste-me quinze filmes, dos teus muitos filmes da vida, penso que esses quinzes filmes representavam o topo da escala. Eu gostava que me falasses um bocadinho de cada um deles e porquê aquela ordem. Dois Nicholas Ray, um Mizoguchi, um Fritz Lang, um Godard, um Visconti, um Manoel de Oliveira. Como é que é possível que uma pessoa que ama tanto os filmes, e que tem tanto prazer em partilhar com os outros o prazer que ele próprio sente com os filmes, aceder a um convite e escolher quinze? Não te custou muito? De resto há alguma coisa que ficou de fora e que gostarias de falar?
Custou imenso e se me pedisses noutro tempo qualquer a lista seria completamente diferente, embora houvesse sempre permanências.
Eu quero as permanências, vê se consegues lembrar-te.
Hum… deixa ver. De certeza o Johnny Guitar, de que estivemos a ouvir um bocadinho, de certeza A Palavra (Ordet, 1955) do Dreyer, de certeza o Senso (Sentimento, 1954) do Visconti, de certeza Os Amantes Crucificados (Chikamatsu monogatari, 1954) do Mizoguchi, de certeza a Francisca do Manoel de Oliveira. Mas por exemplo, para ir aos filmes do Renoir, do John Ford, do Bergman eu podia talvez ter escolhido outros. É uma questão de momentos, de fases da vida, outras obras podiam ter surgido. E daqui a um bocado dizes-me um filme qualquer de que eu me esqueci e de repente meu deus, tens toda a razão, esse é outro dos máximos. Sei lá, há cem, duzentos, trezentos ou mais que são os filmes da minha vida inteira e completamente. Mas, por exemplo, há uma coisa muito engraçada, que tem que ver com aquilo que estávamos a falar há bocado quando falámos de Manoel de Oliveira e etc. Tem que ver como alguns desses filmes começaram por ser tão rejeitados como os filmes do Manoel de Oliveira, o caso do Johnny Guitar. Quando o filme estreou aqui em Portugal eu era um maluquinho porque era das raríssimas pessoas que gostavam daquele filme, como é que se pode gostar… Em trinta anos tudo isso mudou, e hoje há um bar em Lisboa chamado Johnny Guitar e tornou-se um filme incomparavelmente popular, cada vez que eu programo o filme na Cinemateca, ou quando era na Gulbenkian, as salas esgotam-se. Portanto, isso é a evolução de um gosto.
É a evolução, mas é também o saber ensinar e partilhar esse gosto. Eu quando vi o Johnny Guitar reagi negativamente àquele sistema de cor, o Truecolor, e achei aquilo tudo um bocadinho caricaturado de mais. Foi o Fernando [Lopes] que me ensinou a amar, apaixonadamente, o Johnny Guitar. É preciso ensinar a ver os filmes. É preciso militar em relação ao prazer que se tem.
Ah, claro, estou cem por cento de acordo. Como para tudo, é preciso ensinar. Há aquele anúncio que aparecia a certa altura na televisão, um anúncio qualquer a uma bebida qualquer, em que se dizia como todas as coisas boas de que você aprende a gostar. Esta noção do aprender a gostar é capital, raríssimas coisas nós gostamos imediatamente, ou gostamos sem uma aprendizagem ou educação ou aprendizagem na família ou aprendizagem quase inata. Há uma aprendizagem, senão não podíamos gostar dela. Hoje um dos grandes problemas que existe é que muita gente de repente arvora a recusa do gosto de aprender, o gosto de gostar. Não temos nada que saber: gostamos ou não gostamos. Isto não funciona para nada, desde livros a quadros a tudo na vida, é preciso aprender a gostar. E quando nós aprendemos a gostar depois é o grande prazer, e a grande possibilidade de gostar é nunca se deixar de aprender a gostar.
Fala-nos então da tua lista. Eu sabia obviamente que era redutor e ficariam muitos filmes de fora, os filmes da tua vida e os teus filmes de vida. De resto gostaria de perceber um bocadinho melhor essa dicotomia. Mas um espantou-me, um nome que não estava lá, uma vez que eu estou hoje em dívidas de gratidão, devo-te a ti e a uma série de pessoas na Fundação Gulbenkian, mas fundamentalmente a ti, uma das emoções mais raras que eu tive numa sala de cinema, a da Gulbenkian em 1973, corrige-me se estiver errada, ao ver o Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) do Roberto Rossellini. E sabendo-te, como te sei, um rosselliniano, como é que foi possível naqueles quinze filmes, repetires um Nicholas Ray – de que fiquei muito contente – e não achares espaço para um Rossellini.
Tens razão, mas estas coisas nunca acontecem por acaso, alguma coisa terá acontecido. [Risos] O Rossellini é um realizador de que eu gosto imensíssimo, o Roma, Cidade Aberta e dois outros filmes que são para mim dois dos mais importantes filmes da história do cinema, o Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1954) e o o Europa ’51 (1952), sobretudo o Rossellini da fase Ingrid Bergman, é um Rossellini que me toca muito particularmente e eu penso que é um dos autores mais importantes da história do cinema.
E é um realizador ao mesmo tempo tocado pela paixão, entre a actriz e a mulher, que combinava a magia dos filmes que daquele olhar saíam.
E com a noção de cinema e mistério, de aproximação ao mistério em que aparentemente não acontece nada. Aí está outro autor que foi profundamente mal tratado pelo público e pela crítica, tirando o Roma, Cidade Aberta no princípio e por razões políticas, nenhum dos seus outros filmes teve qualquer sucesso comercial, todos enormes malogros. Um insucesso crítico enorme, até ter sido redescoberto. Exactamente porque o que é rosselliniano são aqueles filmes em que aparentemente não se passa nada e tudo subterraneamente vai acontecendo, até permitindo o milagre no fim do Viagem a Itália, uma conversão no fim do Europa ’51. Não por um acontecimento espectacular, mas por uma linha sempre cosida ao longo do filme que nós vamos ver que tudo vai tocar e transformar os personagens, preparando esse desfecho. Por exemplo, em Viagem a Itália toda a gente disse, que disparate happy end, quando ele se estava a separar e de repente há uma procissão e atiram-se um para o outro. Porquê? E exactamente vê-se que tudo o que aconteceu naquela viagem a Itália foram os sinais de uma força brutal de tudo que estava a acontecer à volta daquelas pessoas. Levou-as a interrogarem-se muito mais fundo sobre as suas razões. No fundo aquilo é quase da ordem do milagroso. É! Mas o cinema é um milagre, e é da ordem do milagroso a força que atira aquele casal novamente um para o outro.
Foi quase da ordem do milagroso, naquela noite de 1973, a emoção que a sala viveu e que tomava o filme que ali estava como um desafio para lutar pelo fim do próprio regime.
Pois, e um filme feito 30 anos antes, portanto em 45 na queda de Roma, isto foi em 73, quase trinta anos depois, quando já era um clássico da cinematografia em toda a parte. Em Portugal tinha sido visto mas depois tinha sido retirado. Num momento especial pré-25 de Abril a sala reage daquela maneira, tomando aquele filme como apelo directo que era.
E tu contaste algures que o Langlois te disse que alguma coisa se iria passar proximamente neste país.
Exactamente. O Langlois e o o secretário-geral da cultura francês estavam cá com o Rossellini, tinham-nos sido fornecidas cópias dos filmes como com tantas outras, e disse: “bom, alguma coisa se vai passar neste país”. Enfim, estava tão habituado que me dissessem isso que não lhe prestei muita atenção. Depois do 25 de Abril perguntei-lhe, e ele disse-me: “não, não, não foi nada do que as pessoas dissessem, foi sobretudo a cara das pessoas, foi olhar para a cara das pessoas e ver que havia ali demasiadas tensões para que a explosão não estivesse muito muito perto. Disse-me uma frase espantosa, sabe, o cinema mudo ensina a ver muita coisa”.
E tu achas que há sempre alguma coisa que possa salvar um filme? Que o nosso olhar deve ser sempre, em relação a qualquer filme, de respeito do princípio ao fim, porque pode haver uma fracção de segundo, um plano, que pode salvar um filme?
Exactamente. Há vezes em que os filmes não têm nada que os salve, infelizmente são a maioria, mas eu acho que é exigível essa atitude. Acho que em muitos filmes, num primeiro momento dizemos “eu não entendo, isto não me interessa” e de repente dá-se a compreensão do que está dentro daquele filme. Quantas vezes isto nos acontece. Por exemplo, um filme que vimos há muitos anos, e por uma razão qualquer, por vezes uma razão que nos parece só nossa, o filme faz-nos ficar anos e anos a pensar nele. Nunca, isto é uma coisa que eu digo muitas vezes e pode parecer parvo dizer isto assim mas é verdade, as pessoas às vezes dizem “se calhar este filme não prestava para nada”, não pode acontecer, as pessoas vão descobrir que filme era e era sempre um filme importante. Às vezes não o souberam nem sequer tiveram essa noção, mas era, porque tudo aquilo que vai mexer tanto connosco é porque alguma importância tinha.
Que filme levarias tu para uma ilha deserta? Se só pudesses levar um.
Que terrível pergunta. [Risos].
Que filme português levarias tu para uma ilha deserta?
Ah, é mais fácil.
Mas então quero que leves o português e leves outro. Podes levar dois filmes.
O português levava o Amor de Perdição (1979) do Manoel de Oliveira. E num filme da história do cinema levava A Palavra do Dreyer.
Eu estava contigo, mas eu talvez levasse o Francisca, não, devo dizer, levava – e publicamente o reconheço – o Belarmino (1964) do Fernando Lopes.
[Ri bastante e morde o dedo para se controlar]
Mas na escolha do Amor de Perdição não há um bocadinho de narcisismo?
Não. Nem pensei nisso, mas…
Espera, espera, espera. Não respondas já. Eu sei que tu, além de director da Cinemateca Portuguesa, superior funcionário da Fundação Gulbenkian no serviço de cinema, de crítico de cinema, de cronista de cinema e de actor, também és agente de actores, de um actor.
[em coro] Chamado Duarte de Almeida.
E como é que tu escolhes os papéis para o Duarte de Almeida? Com que realizadores é que tu deixas o Duarte de Almeida filmar?
Bom, eu não escolho. Normalmente o Duarte de Almeida é escolhido e eu limito-me a deixá-lo ou a não deixar. Vêm-me dizer que escolheram o Duarte de Almeida e digo se ele pode ou não pode.
Pois, justamente, tens um critério. Já recusaste alguns papéis para o Duarte de Almeida?
Já. Mas penso que sobretudo o que é importante é que eu saiba que o Duarte de Almeida admira profundamente aquele realizador, ou seja, que exista uma relação de total disponibilidade. “Sim senhor, este realizador escolheu-me, ele terá as suas razões, vamos fazer o que ele quer”.
Com que realizadores portugueses é que o Duarte de Almeida já filmou?
Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, João César Monteiro, José Fonseca e Costa.
Jorge Silva Melo?
Não.
João Botelho?
Não, também não. Mas com o Raúl Ruiz também, por exemplo. Com quem fiz dois papéis que me divertiram muito.
É sempre o Duarte de Almeida? O actor João Bénard não existe?
Não. Mas às vezes fazem-me partidas e no genérico põem lá João Bénard da Costa, mas é sempre o Duarte de Almeida.
Voltamos aos teus filmes, e aos teus quinze filmes e aos teus quinze mil outros filmes, estarei a exagerar, que ficaram de fora. Tens tido comoções recentes com filmes novos, tão grandes como tiveste com aqueles que a tua memória sempre aponta?
Sim, sempre. Os filmes mexem bastante comigo e isso acontece sempre.
De qualquer maneira, os grandes clássicos, as tuas grandes… as charneiras, as tuas paixões da história do cinema são sempre porventura filmes que vão até aos anos 60?
Ah, não, não, não, não, não. Muito recentes há dois filmes que vi este ano e que considero importantíssimos, que me fascinaram completamente, um deles ainda está hoje em exibição em Lisboa, o M. Butterfly (1993) do Cronenberg, que eu acho um filme absolutamente magistral, acho uma obra espantosa. Já gostava muito do Cronenberg, mas este parece-me o mais importante filme dele. E depois outro, que vi recentemente no festival de Berlim, o Smoking/No Smoking (Fumar/Não Fumar, 1993) do Alain Resnais que eu espero bem que sejam obras que venham a Portugal, que para mim são as duas melhores coisas, ou a melhor coisa – porque é um em dois – que o Resnais alguma vez fez. É um filme que me deu um prazer de ver extraordinário.
Pois, e ele partilha connosco, eu também tive a ocasião de o ver, e senti esse prazer. Mas achas que estes dois filmes que acabaste de referir podem vir a fazer parte dos filmes da tua vida?
Exactamente. Normalmente isso acontece muito, aquilo que eu estava a dizer há bocado: é com o tempo que a gente vai saber isso mesmo. Já me tem acontecido: filmes de que gosto muito na altura e que penso que vão ter um lugar muito importante e depois com o tempo verificamos que nos acabámos por esquecer deles. Não ficaram, aconteceu. Outros que às vezes vimos não tão entusiasmadamente e depois, à medida que se vão vendo e revendo, mais e mais coisas se vão descobrindo nessa obra. Aí o melhor juiz é de facto o tempo que passa sobre essas obras. Por isso é que às vezes em listas eu tenho uma certa relutância em pôr filmes relativamente recentes, porque não estou ainda muito seguro.
Tens que ver muitas vezes o mesmo filme para ter segurança ou é apenas a memória que vais trabalhando?
A memória e a revisão em determinadas épocas. Há filmes de que às vezes temos uma ideia espantosa e depois vamos revê-los e não resistem, qualquer coisa já não se passa como se passou naquela altura, outros exactamente ao contrário. Por isso é que eu gosto de dar tempo ao tempo. Nisto e em tudo, é muito importante.
Não achas injusto que nesta arte e indústria que é o cinema, que vai marcar a história do século XX seguramente como muitos acontecimentos, as pessoas não pensam – como em relação à pintura ou à literatura – que é preciso ir conhecer as matrizes? O cinema é apenas um produto que vai chegando, que vai acontecendo. E não sentem a necessidade de ir ao princípio do cinema e conhecer as obras que o foram marcando, ao longo das décadas deste século. Uma pessoa que diz que gosta de pintura pode dizer-nos que gosta do Pollock e a gente sabe que gosta, e que viu e que sabe doutros pintores, que a renascença italiana existiu… Da literatura a mesma coisa. No cinema é como se não se fizesse caso disso. Quais são as matrizes fundamentais do cinema, aquelas que as pessoas deviam ver para poderem continuar a ver cinema?
Exactamente, estou inteiramente de acordo. Como em qualquer arte, a história dessa arte é fundamental para a compreender. Quem gosta de pintura, quem se interessa por pintura, tem que que ir aos museus, tem que começar a ver a história dessa mesma pintura, para todas as artes é a mesma coisa. Para o cinema, a mesma coisa. O cinema desenvolve-se como arte logo no princípio deste século e sobretudo no cinema americano dos anos 10 com Griffith. Griffith, há muitos outros antecessores, mas ele é de facto o grande fundador do cinema como arte, com essas obras fundamentais como são O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) ou o Intolerância (Intolerance, 1916). É aí que o cinema se afirma pela primeira vez como uma obra de arte, ou que o cinema se manifesta como arte. Depois isso vai continuar com muitas outras cinematografias: na sueca dos anos 10 e 20, Stiller, O Tesouro de Arne (Herr Arnes Pengar, 1919), O Carro Fantasma (Körkarlen, 1921), etc., depois na Alemanha com o expressionismo dos anos 20, Murnau, Fritz Lang, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1929), o surto de criadores espantoso do cinema alemão, na Rússia o Eisenstein, em França… até ao apogeu do cinema, no fim do cinema mudo, no final dos anos 20, em que a linguagem cinematográfica é controlada, dominada, tratada de modo a atingir-se um primeiro estado perfeito do cinema, ou seja, a primeira grande idade heróica do cinema, em que toda a manifestação do cinema como arte é possível, o que é muito visível nos últimos anos do mudo. Aí há uma inovação técnica, surge o sonoro. E esse movimento sofre uma certa interrupção.
Mas não podemos enumerar todas as matrizes, as matrizes indispensáveis. Mas é preciso lembrar às pessoas [olha directamente para a câmara] que devem tentar vê-las, para perceberem se gostam ou não gostam daquilo que vêem hoje em dia. E eu, como sempre na vida, desde que descobri a paixão pelo cinema, tenho sido inspirada pelos filmes. Vou-te propor mais um jogo. Vamos ouvir um diálogo de uma cena de amor do mesmo filme cujo tema musical iniciou esta segunda parte do programa e depois vamos os dois brincar ao cinema.
Sim senhora.
Estás de acordo?
Estou de acordo.
[ao som da trilha sonora de Johnny Guitar, vamos vendo sucessivos grandes planos das faces de João Bénard da Costa e Maria João Seixas, como se o diálogo entre Joan Crawford e Sterling Hayden fosse deles também e os anos que separam os dois amantes fossem toda a história do cinema]
João, quantos filmes tiveste que esquecer que muito te custaram ? Quantos filmes esqueceste na tua vida?
[Ri] Tantos como aqueles de que me lembro.
[Grande gargalhada] Ganhaste. Mas não te vás embora. Diz-me qualquer coisa muito bonita, mente-me, diz-me que o cinema é mais importante do que a vida.
O cinema é muito mais importante que a vida.
Muito obrigada, João Bénard da Costa.