Se a Gulbenkian queria um novo cinema para Portugal, era preciso ensinar os portugueses a saber vê-lo. Em cinema, como em tudo, só se aprende com a História […].
João Bénard da Costa in Como o Cinema era Belo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 27.
João Bénard da Costa esteve à frente da secção de cinema do serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian de 1969 a 1992. Nesses anos foi o principal responsável na organização de 33 ciclos que redefiniram a exibição de cinema em Portugal. Por sua iniciativa, e com a colaboração de importantes figuras da cultura portuguesa e mundial, passaram pela primeira vez em Portugal obras de cineastas como o japonês Yasujiro Ozu e viram-se inéditos clássicos de Hollywood como The Devil is a Woman (1935), de Joseph von Sternberg. Fintou-se a censura, como numa mítica exibição de Roma Città Aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), de Rossellini, e fizeram-se retrospectivas de autores como Bresson, Ford ou Hitchcock. Em 2006, após décadas de ausência, Bénard voltou à Gulbenkian para um ciclo que (re)mostrou 50 dos seus filmes mais queridos a velhas e novas gerações. Muito mudara mas o cinema, esse, permaneceu.
O primeiro dos revolucionários ciclos que João Bénard da Costa organizou na Fundação Calouste Gulbenkian nem foi propriamente de cinema. Realizou-se em 1971 e incluiu uma série de documentários da BBC sobre história da arte, intitulada Civilisation. Apresentados por Kenneth Clark, um reputado historiador de arte que fora director da National Gallery, os documentários, não legendados, passaram acompanhados de um resumo em português feito por Bénard. O êxito poderá ter aberto caminho para a continuação de iniciativas que, desde então, se viraram definitivamente para o cinema. Com o ciclo de “Novo Cinema Canadiano”, em 1972, o movimento que se seguiria já estava em marcha e ficava clara a relevância do que de novo se fazia em cinema. Importa lembrar o papel crucial que a Gulbenkian teve para um outro cinema novo, o português, que teve, entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, um apoio importante da Fundação na produção de filmes e na formação profissional através de bolsas.
Recorrendo a contactos pessoais com Henri Langlois, o icónico co-fundador da Cinémathèque Française, a sua companheira Mary Meerson e figuras das suas redes de conhecidos, como Kashiko Kawakita (então directora da Japan Film Library) ou Lotte Eisner, João Bénard da Costa garantiu a vinda para Lisboa de cópias de filmes, incluindo raridades, inéditos e proibidos.
Em 1973, assiste-se ao que foi, provavelmente, o mais emblemático dos ciclos da Gulbenkian, o dedicado a Roberto Rossellini. Roma Città Aperta, que embora tivesse passado em Portugal em 1945 tinha sido entretanto proibido pela censura, passou a 17 de Novembro de 1973, numa sessão com a presença do realizador e de Langlois, que Bénard da Costa descreveria como “a mais inesquecível sessão de cinema da minha vida”, com “a maior ovação a que jamais assistiu em sessões de cinema”. Na mesma sala em que estavam dignitários do Estado Novo, ouviram-se gritos de “Viva a Liberdade!”. Para Langlois, que lera os rostos da assistência como se de figurantes de um filme mudo se tratasse, a certidão de morte do regime estivera ali evidente.
O regime caiu, de facto, pouco depois, em 1974, na mesma data em que terminara o de Mussollini em 1945. Mas só em 1976 os ciclos voltaram à Gulbenkian. No regresso, houve Mizoguchi e Rivette – o último tendo dito a Bénard que mostrar-lhe Sansho Dayu (O Intendente Sansho, 1954) “era convencê-lo que ele nada valia e que podia desaparecer sem fazer falta a ninguém”! Houve também Visconti e a primeira vez em que se viu o monumental Il Gattopardo (O Leopardo, 1963) sem ser dobrado em inglês em Portugal.
O cinema clássico americano, com tanto por ver e rever na época, mereceu três grandes ciclos dedicados à década de 1930 (em 1977), 1940 (em 1979) e 1950 (em 1981). O primeiro começou, segundo Bénard, por uma sugestão da embaixada americana de um ciclo dedicado a Capra, os seguintes beneficiaram dos contactos feitos aquando do primeiro para garantir a vinda de cópias das dezenas de filmes exibidos (60 no primeiro, 65 no segundo, 72 no terceiro). Fizeram-se catálogos ilustrados cada vez maiores. Segundo o organizador, “o Ciclo dos Anos 50 marcou a apoteose dos Ciclos da Gulbenkian, batendo em todos os aspectos todos os records”.
No final dos anos 1970 realizaram-se ciclos de cinema polaco e húngaro. Passou-se cinema mudo sueco – com Portugal a descobrir Sjӧstrӧm e Stiller. Mostrou-se cinema brasileiro desde 1913. Com o apoio da Embaixada de França passou-se Bresson e Truffaut. As histórias em torno dos ciclos, lembradas por Bénard anos mais tarde no catálogo de 2006, têm inegável interesse pelo retrato que traçam de um país sedento de cinema e de uma organização que, por vezes, fazia o impensável. Diz-nos Bénard que, contra os prognósticos dos serviços culturais da Embaixada de França, ficaram atónicos quando Bresson fez esgotar o Grande Auditório da Gulbenkian – algo que julgavam impossível “em mais país algum…”. Ou em como, na ausência de fotos para o catálogo do ciclo Bresson, Bénard pediu que se fotografassem fotogramas dos filmes, sem saber que tal era proibido, compondo um catálogo sumptuosamente ilustrado à revelia do autor. Na vinda de Truffaut a Lisboa, em 1980, Bénard terá apresentado Manoel de Oliveira ao realizador francês.
Em 1980, João Bénard da Costa foi nomeado Subdirector da Cinemateca mas acumulou o lugar com a posição na Gulbenkian e procurou que as duas instituições colaborassem nos ciclos.
Nos anos 1980 revelou-se também Yasujiro Ozu, pela primeira vez exibido em Portugal. Organizou-se um ciclo Pasolini anos 60, uma retrospectiva integral de Hitchcock, ciclos dedicados a Max Ophuls, a Sternberg, a Buñuel, a Ford. Mostrou-se cinema alemão com a presença de Lotte Eisner. Houve ciclos dedicados a géneros, ficção científica e musical, este último resultando num ambicioso catálogo em quatro volumes que totalizavam “quase 1800 páginas”. Os últimos ciclos decorreram em 1987 e 1989, dedicados, respectivamente, ao cinema brasileiro e a Howard Hawks. Até 2006, ano do 50º aniversário da Fundação Calouste Gulbenkian.
João Bénard da Costa voltaria a programar um grande ciclo de cinema na Gulbenkian, ciclo esse que decorreu de Novembro de 2006 a Fevereiro de 2007. Cinquenta filmes unidos pelo título “Como o Cinema era Belo”. Escolhas pessoalíssimas, muitas talvez pouco surpreendentes, mas um ciclo que revivia no Portugal pós-milénio um pouco do extraordinário dos ciclos pioneiros dos anos 1970 e 1980.
Na assistência cruzavam-se gerações. Certamente que lá se encontravam algumas das “senhoras de boas famílias à hora do chá” como Bénard descreve parte da audiência do primeiríssimo ciclo. Mas estavam também muitos jovens – jovens como eu. Uns talvez conhecessem muitos dos filmes programados. Afinal, anos e anos de actividade na Cinemateca educaram muitos cinéfilos. E, além disso, em 2006 podia descobrir-se cinema em diferentes eventos. Já havia Fantasporto e Indie e Doc. Já havia outros tantos festivais e ciclos (e já havia Internet). Portugal já não tinha censura senão a do mercado – e mesmo essa deixava passar algumas preciosidades improváveis. E, no entanto, havia algo de poderosamente nostálgico, de profundamente cinematográfico em (re)descobrir no Grande Auditório da Gulbenkian alguns dos filmes “muito lá de casa” do “Senhor Cinemateca”. Afinal, muitos daqueles filmes também se tinham tornado nossos porque o amor com que Bénard da Costa escrevia sobre cinema era contagiante. Ele fazia-nos mergulhar em planos, desejar actores, memorizar diálogos. Partilhava o que era “inadjectivável” com um entusiasmo febril numa escrita inigualável.
Houve sessões triplas em sábados, domingos e sextas-feriado. Houve Fuller [Forty Guns (Quarenta Armas, 1957)] e Ford [The Searchers (A Desaparecida, 1956)] no mesmo dia. Houve Lubistch [The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940)] e houve Renoir [The River (O Rio Sagrado, 1951)]. Houve a Índia de Guru Dutt [Kaagaz ke Phool (Flores de Papel, 1959)] e o Irão de Kiarostami [Zir-e Derakhtant-e Zeytun (Através das Oliveiras, 1994)]. Houve a Rússia metafórica de Eisenstein [Ivan Grozny (Ivan, o Terrível, 1944-1958)] e a Rússia fantasiosa de Sternberg [The Scarlet Empress (A Imperatriz Vermelha, 1934)]. Houve o trio de sonhadores de U Samogo Sinevo Moria (À Beira do Mar Azul, 1936) de Boris Barnet e o duplo Karina-Falconetti em Vivre Sa Vie (Viver a Sua Vida, 1962) de Godard. Houve, claro, Johnny Guitar (1954) de Nick Ray. E no final, a beleza indomável, histórico-cinematográfico-poética dessa obra-mestra de Malick tão desvalorizada, The New World (O Novo Mundo, 2005). Que nos diz: “Who are you whom I so faintly hear? Who urge me ever on? What voice is this that speaks within me, guides me towards the best? We shall make a new start. A fresh beginning.” Cinema-aparição, cinema-revolução. Então e agora.
Naquela sala repleta de gente era palpável essa fome por cinema, que animava seres tão díspares ali unidos na comunhão de tanta beleza. Olhamos para trás, para aqueles rostos, ecrã maior que tudo, filmes maiores que a vida. Sim, concordamos. Como o cinema era belo! E como fomos belos com ele.