Num seminário seagalógico dividido em dois, é tempo de rever a matéria dada. Na primeira parte, concluímos que Seagal só realizou um filme, o bizarro, para dizer o mínimo, On Deadly Ground (Em Terra Selvagem, 1994), mas que, na realidade, todos os filmes em que pôs a mão, ou pôs o rabo… de cavalo, acabam inevitavelmente por acabar seagalogizados. Numa intervenção pública recente, Ricardo Araújo Pereira relatava as várias dificuldades que enfrentou durante a realização do seu sketch fedorento com Steven Seagal. Queixava-se o humorista do facto de aquele homem com porte de urso não conseguir dizer uma única fala tal como estava escrita no guião. Pois bem, Ricardo Araújo Pereira não leu Seagalogy de Vern, não leu a entrevista que aqui citámos e vamos continuar a citar até ao fim dos nossos dias, «Even Steven», nem deve ter usufruído convenientemente da nossa televisão, que passa Steven Seagal quase em regime diário (em dois meses consegui ver “somente” nove dos seus filmes em quatro canais diferentes). Ao mesmo tempo, Ricardo Araújo Pereira esqueceu-se que falar mal de Seagal pelas costas é definitivamente “pior do que falecer”. Entenda-se: Seagal é um auteur badass e a um auteur badass ninguém mete palavras alheias na boca. O script muda pouco, para que ninguém confunda o “homem-urso” com uma qualquer personagem dramaticamente desenvolvida, que o faça desviar um milímetro da sua imagem de marca, da sua imagem que tanto marca.
Nos filmes, Seagal encarna quase sempre um oficial do exército ou da polícia com um qualquer passado obscuro na CIA e com uma ainda mais remota backstory desenrolada no Oriente, donde se explica a aparência exótica, o domínio do chinês ou do japonês (ou de ambos) e, acima de tudo, a capacidade para, com precisos e bruscos golpes de aikido, quebrar membros humanos. Este último ponto é, aliás, motivo de orgulho para o próprio: “Esta coisa de partir membros é algo que eu faço melhor do que qualquer outra pessoa no cinema”, disse na supracitada entrevista. Por outro lado, Seagal interpreta quase sempre heróis eivados de uma forte consciência política, especialmente com uma apurada sensibilidade para assuntos ambientais e para quem nada é mais abjecto que a corrupção que empesta os corredores do poder. Disse: assim é Seagal “nos filmes”. Falta, então, perguntar: como é Seagal, fora dos filmes? Ricardo Araújo Pereira considera-o “clinicamente imbecil”. Andrew Davis, seu realizador no filme que o estreou, Above the Law (Nico – À Margem da Lei, 1988), e em Under Siege (A Força em Alerta, 1992), queixava-se dos tiques de diva que foram aparecendo com a fama. Poucos são os actores com quem trabalhou a pronuciarem-se publicamente sobre a sua relação com a estrela ou a sentirem-se aptos a lançar alguma luz sobre a dúvida “quem é Steven Seagal?”. Com efeito, pouco se sabe sobre o seu passado, nomeadamente sobre a veracidade da sua história de vida, por exemplo, a sua experiência no Japão, onde, alega, foi o primeiro homem branco a abrir um dojô e onde aprendeu a arte de partir membros pela mão do maior mestre de aikido. Para mais, e veremos como o cinema se confundirá (tão convenientemente, dirão os mais desconfiados) com a vida, Seagal alega ter trabalhado para o exército norte-americano, em missões secretíssimas, sobre as quais gosta muito pouco de falar.
Desde o início da sua carreira até aos dias de hoje, parece que Seagal interpretou sempre a mesma personagem: Steven Seagal. Mesmo hoje poucas são as certezas sobre onde termina a máscara e começa o homem. A certa altura, no seu artigo «Bad Movies» (1980), J. Hoberman cita o realizador avant-garde Jack Smith: “Um mau actor é rico, único, idiossincrático, revelador”. No caso de Seagal, sob pena de este não ser, de facto, um mau actor (mas como assim?!), concordo com todos estes pontos, salvo com o último: por muito mau actor que Seagal seja, portanto, rico, único e idiossincrático, em mais de vinte anos de carreira pouco se tem revelado para lá de uma história sobre si mesmo que parece ter sido fantasiada por um miúdo de 10 anos num qualquer teatro de escola. Ainda assim, os jornalistas, pondo em risco a sua própria integridade física, têm-se esforçado por saber mais. Em «Even Steven», à pergunta “Já agora, deixe-me perguntar a mais óbvia pergunta seguinte: alguma vez matou um homem?”, Seagal responde: “Não, mas estou prestes a fazer isso agora mesmo”.
O mythmaking seagalógico começa logo com a história que o lança, de facto “do nada”, para as luzes da ribalta. Above the Law é Seagal de uma ponta à outra. Escreveu a história, produziu e protagonizou. Os seus primeiros minutos contam aquilo que, para lá das câmaras, será o pouco que haveremos de saber sobre ele. Seagal é Nico, Nico é Seagal, o polícia sem papas na língua que não sucumbe à corrupção reinante entre os seus, o que é o mesmo que dizer: o actor sem papas na língua que não se deixa subjugar a ninguém, nem a nada, muito menos a Hollywood. Se alguma vez este esteve em boa forma física – porque nem disso estamos alguma vez 100% certos -, esta é a vez. Aliás, arrisco a dizer – e sei que aqui os riscos nunca são pequenos – que Seagal corre mais neste seu primeiro filme do que no resto da sua carreira. Contudo, também aqui recebe mais golpes dos seus oponentes do que em todos os filmes que iria fazer a seguir. Juntos. Dito de outro modo, ágil e enérgico, Seagal, na pele de Nico, ainda não é o homem minimal, estóico, quase estatual, de futuros filmes. Aqui, ele ainda é um carinha laroca, longe da máquina de matar… russos em que se torna num Driven to Kill (Ruslan – A Vingança, 2009), filme analisado na primeira parte desta crónica. A sua beleza é, aliás, motivo de uma espécie de gag – entenda-se, tudo é uma espécie de gag em Seagal. Nico está numa operação undercover, apresentando-se com uma bata branca de talhante. Um dos seus colegas vira-se para ele e, num tom de galhofa mas sem esconder a inveja, solta a observação: “és demasiado bonito para um embalador de carne”. A frase situa-nos Seagal no tempo ou não iria essa frase-piropo soar ainda mais estranha hoje se lhe fosse dirigida num dos seus últimos telefilmes. Decididamente, um Ruslan não é demasiado bonito para embalador de carne. Na realidade, o aparato físico em que Seagal se tornou lembra menos quem embala e mais o que é embalado: carne, muita.
O tempo passava e Seagal celebrava a bela idade de quarenta anos com a maior produção da sua carreira, de novo realizada por Andrew Davis, Under Siege, filme que passou este mês no canal Hollywood. Aqui, acautelando-se, o undercover de Seagal surge “por defeito”, mais concretamente, ele é um ex-agente da marinha tornado num “mero cozinheiro” após ter esbofeteado um superior, mor de “más informações” que comprometeram uma missão top secret em que esteve implicado. Um grupo de terroristas faz de uma “festa surpresa” reservada ao capitão um cavalo de Tróia para penetrar no histórico navio norte-americano Missouri, onde os japoneses formalizaram a capitulação na Segunda Guerra Mundial. O agora cozinheiro Casey Ryback será o imprevisível primeiro e último obstáculo às intenções do tresloucado comandante Krill, papel de Garey Busey que relativiza a própria noção de overacting, e do lunático ex-agente secreto William Stranix, interpretado este por Tommy Lee Jones quando ainda não era um actor de primeira linha.
No início, depois de cuspir na sopa de modo nada metafórico, Krill leva um murro de Ryback, ao qual aquele responde com um castigo nada meigo e ainda menos protocolar: fechá-lo na arca frigorífica. Coisa desumana, terrível, diabólica? Nem tanto. Vá, no máximo dos máximos, esta é uma situação algo desconfortável para Steven Seagal. Ora, caro leitor, tente lá resolver esta adivinha: qual é a diferença entre um Steven Seagal debaixo de 40º negativos e um Steven Seagal a temperatura normal? O primeiro Steven Seagal diz que está muito frio, ao passo que o segundo não tem razões para o dizer e, daí, não o diz. De resto, pela expressão, no rosto, no corpo, nenhuma diferença é detectável entre os dois. Tanta coolness raia o super-humano. Fora dos desagradáveis 40º negativos, Seagal será o inferno na terra para a tripulação de bad guys e a maior das revelações para a Miss July 1989. Ela que, quase nua, sairá do bolo faustoso destinado ao capitão, mas já quando a festa fez há muito “sair fora de si” uma situação de sequestro que vai pôr em alarme os mais altos responsáveis pela segurança dos Estados Unidos. Felizmente para eles, o “cozinheiro, um reles, reles cozinheiro”, como se auto-ironiza Ryback aos olhos de Miss July (pico da inteligência seagalógica: a Humildade auto-ironiza-se ante o Sexo Mais Fraco), saberá cozinhar um way out para a América e para o mundo. Se no início a stripper, imagine-se, fica desiludida com a profissão de Ryback, logo depois torna-se evidente, mesmo para os seus dois neurónios, que… pois, o tipo era demasiado bonito para ser apenas um reles, reles cozinheiro da marinha. “Pronto, sou um agente que domina todas as técnicas de guerrilha que existem nos livros, mas… também cozinho”, justifica-se assim – e parafraseio – Ryback.
Seagal voltará a interpretar um oficial do exército, expert em acções anti-terroristas pelo ar, naquele que será, muito provavelmente, o ataque mais baixo à sua persona mítica: Executive Decision (Decisão Crítica, 1996), em transmissão no canal Fox. O que se ensaia aqui só terá como paralelo na história do cinema o desaparecimento precoce da (falsa-)protagonista de Psycho (Psico, 1960), interpretada por Janet Leigh. Mas, neste caso, o impacto e a chocante surpresa são ainda superiores. É preciso reforçar a seguinte ideia: nunca como até aqui, ou depois daqui, alguém ousou desafiar o protagonismo de Steven Seagal num filme. Mais: nunca como até aqui, ou depois daqui, alguém ousou desafiar à séria Steven Seagal. Ponto final. Numa decisão cinematográfica que decerto terá ressoado em todo o universo, desalinhando planetas e, inclusivamente, acordando Deus do seu coma profundo, o cineasta com mais lata da história da Sétima Arte, de nome Stuart Baird (hoje, enquanto tal, em paradeiro incerto), decidiu aniquilar a personagem interpretada por Steven Seagal passados que estavam apenas 43 minutos de filme. Escreve Vern, dominado pela estupefacção que, por norma, nos furta todas as palavras justas: “A festa estava quase a começar e Seagal é sugado para fora do avião. Não terá sequer a oportunidade de ver o seu rosto quando isso acontece”. No navio, Seagal, isto é, o não-apenas-cozinheiro Ryback, tratara da saúde aos ignóbeis terroristas sem que isso lhe causasse um arranhão que fosse na cara. No avião, os highjackers islâmicos nem chegaram a cruzar olhares com o grande especialista em operações do género, que até livros sobre o assunto – diz-se algures – terá escrito. Não, nada disso: em Executive Decision, filme tomado de assalto por um badass em modo choninhas ou um choninhas em modo badass, interpretado por Kurt Russell, o grande efeito especial é a forma inglória como Seagal é lançado avião fora, leia-se, para fora do filme, para fora de si, para fora, enfim, daquilo que o define como o mais inexpugnável dos heróis de acção. Haverá maior “coito interrompido” na centenária história da Sétima Arte? Duvido. E, contudo, até nem se vê mal este filme que prevê o 11 de Setembro com a mesma precisão com que desfaz as nossas naturais expectativas dramáticas em torno do anunciado face-a-face entre Russell e Seagal.
Um ano depois, o acto de auto-refeitura seagalógica correrá bem melhor. Fire Down Below (Corrupção Total, 1997), exibido no canal Hollywood, retoma os temas ambientalistas de On Deadly Gound, mas os resultados serão menos bizarros. Um agente ambiental parte para o Kentucky com o intuito de confirmar a suspeita de que a empresa de um magnata local (interpretado por Kris Kristofferson) anda a despejar lixo tóxico no depósito de água, pondo em risco a saúde da população. É uma espécie de prefiguração de um Erin Brockovich (2000) cruzado com Promised Land (Terra Prometida, 2012), mas nem Julia Roberts nem Matta Damon saberiam dar uma sova, mesmo que apenas retórica, como aquela que Seagal acaba por dar ao poderoso “inimigo do ambiente” que tem pela frente. Na realidade, Seagal não chega a dar a sova do século ao canalha arrogante, porque, como também veremos em Hard to Kill (Duro de Roer, 1990), na batalha final ele tem o cuidado de chamar a si o direito a infligir àquele uma dor maior que a própria morte: tanto em Fire Down Below como em Hard to Kill Seagal procura poupar o grande vilão para que este sofra as piores provações da cadeia, desde logo, aquela que ferirá de morte a sua masculinidade e que classicamente envolve sabonetes caídos no chão do duche… Pior do que falecer? Ya. Moral: pior que matar a pessoa é matar o homem que ainda habita essa pessoa. O hard to kill é também hard on killing.
Não é por acaso que cito agora Hard to Kill, filme entalado entre os dois títulos realizados por Davis que passou no canal AXN. Faço-o para fechar em beleza esta peroração seagalógica dividida em dois tomos. Aqui reside a quintessência de tudo o que é sublimemente ridículo na obra de Steven Seagal, mas, por muito que o esmiucemos, nada o venderá melhor que o seguinte facto cinematográfico: em Hard to Kill, Seagal estreia nos grandes ecrãs de todo o mundo o seu inconfundível e sensualíssimo rabo de cavalo. Vão-me dizer: demasiado belo para um… polícia. Será, mas este é também o filme onde o sex symbolism de Seagal passa das palavras aos actos. Efectivando a ideia de que todos os filmes de Seagal são, de algum modo, home movies impossíveis da/para a sua auto-re-criação mediática, Hard to Kill celebra a paixão ardente entre um polícia saído de um coma de sete anos e uma enfermeira pouco ortodoxa que é interpretada por Kelly LeBrock, a companheira do próprio Seagal na altura – ia escrever “na vida real”, uma parvoíce, se seagalogicamente, como já vimos, tal não existe!
Na noite de Óscares de 1983, o polícia Mason Storm é baleado e a sua mulher assasinada. Os autores do crime hediondo são capangas do político Vernon Trent, que fora apanhado pela câmara de Mason Storm enquanto cozinhava o atentado político que lhe iria valer uma nomeação ao senado. Sem saber que o grande vencedor da noite de Óscares foi Gandhi (1982), Storm irá mergulhar num sono profundo que durará 7 anos. Muito mais cabelo e barba depois, daremos com o nosso herói estendido numa cama de hospital. É-nos dito que está num coma profundo, mas, porque o coma é coisa de meninos, Seagal parece estar antes sob o efeito de um plácido “estado meditativo”. A enfermeira Andy Stewart, depois de lhe trazer um gatinho (a little pussy), assevera que continuará a falar com Storm, até porque não acredita que este não consiga ouvir as suas palavras. As suas palavras não são, de facto, meias-palavras: “falarei contigo, hoje, amanhã e depois…” A enfermeira levanta o lençol e desabafa: “Além disso, és tão avantajado. Por favor, acorda”. Observa Vern: “Não penso que assédio sexual seja uma forma legítima de terapia para o coma”. Pois desengane-se o douto doutor e os outros doutores, pois as provocações de Andy resultam e Storm interrompe a longa meditação para repor a justiça. Ao seu polícia amigo, Storm dá a receita para o seu comeback: “Agora é o momento. Somos muito menos, mas sabes uma coisa? Vamos ganhar e eu digo-te porquê. Atitude superior, estado de espírito superior”. A filosofia barata, que terá sido improvisada por Seagal à revelia, lá está, do que estava escrito, é debitada com coração, mas o espectador nesta altura sabe que não foi nenhuma atitude ou estado de espírito superior que o fez vencer o coma, mas antes a enfermeira e sua dádiva: a little pussy.
Ora, Storm fará a sua recuperação na casa de Andy dando uso a agulhas fumegantes de acupunctura, desferindo socos numas cordas enroladas em tábuas, fazendo meditação zen à luz da lareira e, talvez parte da mesma “ementa dos vencedores”, muito sexo escaldante com a enfermeira atiradiça para quem “o tamanho importa”. O tamanho da doçura, claro: “és tão doce, nunca vou ter medo de ti”, um elogio estranho se pensarmos que de doce Storm ou Seagal tem pouco e que meter medo é algo que lhe está no sangue. Após uma dessas sessões de “terapia”, vemos Storm a contemplar a sua aliança, surgindo, a seguir, a imagem enevoada da mulher assassinada [um gesto muito semelhante, igualmente lamechas, abre Half Past Dead (Duro de Matar, 2002), o mais intragável dos filmes com Seagal que vi, cortesia do canal AXN, para a escrita desta crónica]. Depois do tórrido momento de intimidade, Seagal lembra-se da sua falecida mulher. Sexo ofegante e sentimentalidade arrebatadora. Seagal é o exemplo acabado de como nem os ditos populares lhe fazem frente, porque, como será uma constante sua, ele consegue “comer o bolo e tê-lo”.
Apesar de tudo, o mais interessante de Hard to Kill pode ser desencantado no seu discurso metareferencial em torno de um algo complexo duelo entre aquilo que definiria como o “cinema do cinema” e o “cinema do real”. Falei já da fixação que Storm tem pela cerimónia dos Óscares a que, ossos do ofício, não poderá assistir naquela noite em que terá de salvar a América dos seus demónios (os políticos), mas do que ele não se apercebe logo, pelo menos em 1983, é que a “obra-prima” está à sua frente e é muito mais excitante que Gandhi, o filme, a pessoa e a filosofia. A “obra-prima” é o registo audiovisual das comprometedoras palavras de Trent de que Storm é o exclusivíssimo auteur. Com o filme debaixo do braço, Storm passa por uma loja de conveniência para comprar champagne, antecipando uma celebração caseira com a sua mulher. Junto do homem do balcão, Storm procura saber alguma coisa sobre a noite de Óscares. O homem não sabe e não quer saber. Diz ter cinema de sobra nos televisores de vigilância. Traduzindo: que se lixe se o Gandhi ganha mais ou menos Óscares que o E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982), o bom do espectáculo está ali, à sua frente. “Porque é que precisamos de filmes?”, interroga, interroga-nos. Esta desqualificação do “cinema do cinema” é justificada logo a seguir pelo “cinema do real”: um grupo de rufias, armados com uma faca, um taco de baseball e uma caçadeira, entra de rompante na loja e, bang!, elimina ali, à queima-roupa, o recém revelado apocalíptico da imagem cinematográfica.
Em 1993, já o filme vai a meio, ouvimos o senador corrupto a mandar os seus lacaios assassinarem Storm: “eu protagonizo os filmes caseiros do cabrão. Despachem-no!”. De novo, estamos dentro da temática ou da problemática do “cinema privado”, próximo daquele que tornava o dia-a-dia numa loja de conveniência num belo naco de cinema-espectáculo. As gravações policiais de Mason Storm lançam uma tempestade no meio político, mas enquanto não forem tornadas públicas o espectáculo manter-se-á “assunto particular” entre Storm e o senador Trent. As últimas imagens de Hard to Kill, ecrã de um outro ecrã que exibe ao mundo a tal “obra-prima” gravada por Storm e estrelando Trent, fecham o círculo conceptual deste triunfante cinema do real que prega rasteira a Gandhi – o filme, a pessoa e a filosofia. Em certa medida, o próprio fenómeno seagalógico explica-se por este embate entre a construção do real e a construção do cinema, entre o que Seagal é no ecrã e o que é fora dele. Entre os dois gera-se um mito que nos desfere, como um murro, a questão: porque é que precisamos do (bom) cinema, se temos esse auteur badass que tem por nome Steven Seagal?