Por norma, é sinónimo de rapidez e conforto. Contudo, o elevador também pode significar indolência ou, muito simplesmente, “o caminho mais rápido” para se chegar a certo andar. Seja como for, ninguém quer demasiada rapidez, demasiado conforto e demasiada indolência no ecrã. Buscam-se as situações de emergência, as atribuladas subidas ou descidas pelas escadas ou os sustos de elevador que fazem desta caixa metalizada a mais tenebrosa prefiguração da tumba nas cidades modernas. Mas nessa tumba maciça normalmente não vamos sós: ao nosso lado, à distância de um palmo se for preciso, podemos dar de caras com um estranho ou com um conhecido indesejado – venha o Diabo e escolha. A conversa inútil parece ter sido inventada por elevadores, que, de qualquer modo, já patentearam um certo tipo de música ambiente que sábias e inventivas pessoas denominaram de “música de elevador”. Assim como assim, devíamos ter ido de escadas…
Pertence a Werner Herzog, esse perscrutador dos mistérios do humano, uma das sínteses do século XXI: “A solidão humana aumentará em proporção directa ao avanço nas formas de comunicação”. Pertence a Spike Jonze, goste-se ou não do estilo, um dos filmes que melhor corporiza essa terrível promessa. Se chovemos no molhado, não nos importamos – ipad, iphone, twitter, facebook, whatsapp, email, skype: tudo “invenções”, “maravilhas tecnológicas” e “novos descobrimentos” que, mau grado as suas inegáveis vantagens, nos fazem a todos menos curiosos, atentos, interessados (e interessantes…) e – não receio dizê-lo – inteligentes. Antes de ipads e afins, outras invenções fizeram as delícias do Progresso dos séculos XIX-XX e os elevadores foram uma delas. À sua maneira, os elevadores modernos foram um primeiro indutor dessa solidão contemporânea que é a de estar com toda a gente e não estar com ninguém ao mesmo tempo. O elevador força a convivência involuntária, obriga a que olhemos, mesmo que só por segundos, os rostos de outrem (pior se o elevador for todo espelhado, aí não há mesmo saída…), coage-nos a sentir o toque do casaco que, ao de leve, se cruza com o nosso, impõe-nos perfumes alheios, compele-nos à cordialidade de ocasião (“Bom dia/boa tarde/boa noite”) com total desinteresse pelos humores particulares de cada um. Tudo isto não seria necessariamente mau não fosse o artificialismo, a sensação de imposição e a impessoalidade envolvidas num pequeníssimo – por vezes mesmo claustrofóbico – espaço físico. Jonze junta, então, estes dois tipos de “invenções”, uma mais anciã (elevadores) que outra (um personal manager auricular que lê emails, escolhe músicas conforme o nosso estado de espírito e sumaria os gossip mediáticos do dia), para radicalizar essa ideia: todos – todos mesmo, porque a globalização é esse enquadramento (o deste plano), no mesmo espaço, de um asiático e de um ocidental – ouvem, todos conversam (com o personal manager), todos se olham, mas ninguém comunica, ao menos no genuíno sentido que o termo encerra, isto é, gregário, comunitário, enfim… humano.
Francisco Noronha
Se podemos distinguir as pessoas pela mão pela qual primeiro cortam as unhas, também as poderemos distinguir pelo meio por que optam quando se trata de subir (ou descer) patamares. Se se vai pelas escadas é sinal de que se está numa dieta ou de que não se vive em andar elevado, se se opta pelo elevador evidencia-se o pecado mortal da preguiça. Nesta dicotomia entre o exercício e a claustrofobia a comédia tem dado graças da sua inteligência, Hulot é um homem puro de coração e livre de empecilhos tecnológicos por isso sobe de escadas. Lewis é claramente um mandrião empenhado e é sempre de ascensor que se movimenta (uma e outra vez), apesar de todo o desconforto. Bean vive de provocar pirraça e como tal preferiria o elevador mas vê-se obrigado ao método tradicional. E antes de todos eles Keaton já andava para cima e para baixo ao sabor da mais acrobática das perseguições. A sequência final de The Goat (A Cabra, 1921) é exemplo perfeito disso mesmo, aliás, todos os 22 minutos que compõe este pequeno filme são dedicados aos transportes e à forma como afinal de pouco nos servem: por muito que neles nos movamos a verdade é que nunca saímos do mesmo sítio. A esse respeito vemos Keaton num comboio que o abandona, a pedir boleia de um carro que o deixa para trás, a entrar num elevador que não desce. Enfim, dependemos deles, mas não podemos fiar-nos. Keaton impõe-se a essa ditadura mecânica e manipula o indicador do ascensor para mais depressa ver suprida a sua necessidade de movimento. Haverá coisa mais revoltante que esperar por um elevador? Apre que chatice! E todos sabemos que a chatice dos outros para o espectador é refresco.
Ricardo Vieira Lisboa
Dir-me-ão que é só um plano do elevador de um hotel manhoso em Nova Iorque nos anos 70. Dizem-me isso e eu respondo: não viram Hotel Monterey (1972), ou melhor, não o habitaram devidamente. Tudo o que por aqui passa nasce de uma tensão difícil de pôr em palavras e, por isso, apenas traduzível na atmosfera mortificante deste filme de Chantal Akerman que serve (até porque não tem som) para ser percorrido pelos olhos. A câmara quer apropriar-se de um espaço que não se quer habitável, mas local de passagem, de trânsito. É isso que é um hotel, qualquer hotel, mas neste os recantos na escuridão, os corredores sinistros e os estranhos vultos humanos que aparecem formam a ideia de que, pese embora pouco ou nada aconteça, o hotel – qualquer um, mas especialmente este – se é habitável, apenas o é pelo terror paradoxal de não o ser e, ao mesmo tempo, de não servir para outra coisa que não receber pessoas, de modo quase indiscriminado. O ambiente é, então, como o de uma morgue para os vivos e Akerman sabe, por exemplo neste plano dos elevadores, como transformar as pessoas em espectros sem rosto. Às vezes as portas abrem-se e não vemos ninguém, mas a visão da presença de alguém (de algo…) não será, estranhamente, mais reconfortante. Há um vazio nestas presenças, nestas “aparições”, que é comparável aos modos como a câmara habita, como corpo que é e afirma ser, os vários vazios deste lugar inabitável. Todo o filme é, em si mesmo, uma assombração de uma assombração e um convite a uma inquietude muito fria posta à flor da pele. Não direi “sem medos”, mas, por favor, entre nele.
Luís Mendonça
Vindo do nada, Ventura. Chamaram-no vozes de longe e de perto, corpos hirtos na noite, escaladas e arrancadas de mota, miúdos em árvores, sentinelas de cabras aos ombros. Caras conhecidas. Parece estar num hospital, mas quando entra no elevador já começamos a ter dúvidas… O que se segue a isso é uma viagem demencial por memórias, traumas, arrependimentos e todo o passado que toma forma nesse agente dos anjos ou dos demónios que faz Ventura reviver tudo isso… Uma noite inteira e o elevador nunca deixa de descer (ou vai a subir?) e nunca Pedro Costa esteve tão próximo das atmosferas da RKO. Sweet Exorcist (2012), também canção do grande Curtis Mayfield, pode dar-nos vislumbres breves de soluções pelo título, que poderá ser um exorcismo o que ali se passa, mas de doce o que tem? Há esse sorriso lindíssimo quando se fala de Zulmira e há a estória do vestido de sete contos. Mas o resto é arrancado à testilhada. Falam crianças dos seus netos e dos seus filhos e o passado, o presente e o futuro fundem-se numa viagem através dos tempos onde os mortos estão vivos e os vivos estão junto a eles. “Fechados em silêncio”. Até a estátua mostrar finalmente ao que vinha e dizê-lo quando anuncia que “falta pouco para que se saiba porque vivemos e porque sofremos”. E acorda-se do sonho, comanda-se a sentinela e abrem-se as portas desse elevador que desce mais, em busca dessas almas que pelo que viveram podem presenciar os mistérios mais insondáveis à face desta nossa terra e que, depois de os presenciarem, conseguem dizer a quem notou a sua ausência que só “foram ao médico”. I believe in the spirit…
João Palhares