É difícil aceitar que o tempo caminha apenas num sentido, aliás, parece-me que tudo o que fazemos serve para enganar essa unívoca direcção do tempo. Não é a criação artística uma forma de tentar fixar o tempo de alguma forma? De tentar esquecer que ele avança sempre. Esquecemo-nos do tempo quando mergulhamos num filme, numa sinfonia ou numa canção, numa pintura, num romance, esquecemos tudo. E esse tudo surge maleável, o relógio retorce-se e a nossa percepção do ritmo das coisas é outra. Somos levados para outro lugar, um lugar longínquo, onde o tempo é de todas a menos importante das variáveis. E se o artista deixa de nos guiar a esse lugar de maravilhamento? Se de repente o passe para o êxtase expira? Ficamos atolados na berma da estrada, à espera de outra boleia, de um novo moto-artista. E se essa boleia nunca chega? Ou nenhuma que nos aproxime do destino? Lá teremos que caminhar… o caminho é menos agradável mas no bater do passo esquecemos o incómodo e deixamo-nos levar ao mesmo fim, à mesma interrupção do tempo, ao mesmo limbo.
João Bénard da Costa deixou de fazer a sua carreira e muitos de nós ficámos apeados. Ninguém veio – como podiam? – e o tempo foi passando, inexorável. Há que enganar o tempo! há que o fazer parar por instantes! Há que fazer alguma coisa, mesmo que esse alguma coisa seja frágil e desconjuntado. Este texto é a tentativa de por momentos me enganar, de por momentos sentir que Bénard está de novo por cá, de que há um novo texto seu, uma nova folha de sala, uma nova sessão na Cinemateca, um novo filme de Ray, um novo entusiasmo, um novo fascínio contagiante, uma nova avalanche de “momentos perfeitos” e “inadjectivaveis”.
Algures entre o hiper-romantismo de uma Amélie Poulain de tesoura em riste e cola na mão, a mórbida “recoreografia” de Blake Edwards, o jeito para a bricolage de uma carta de um raptor e o filme-ensaio-montagem de Norbert Pfaffenbichler sobre Lon Chaney e Boris Karloff tentei construir um texto de João Bénard da Costa a partir de outros textos de João Bénard da Costa – no fundo uma versão em crítica de cinema narrativa de um “cut up” à William S. Burroughs. Porque o trabalho seria incomportável reduzi a pesquisa às folhas sobre os filmes de Nicholas Ray: li-as, sublinhei-as, copiei-as, recortei os sublinhados e rearranjei-os num “novo” texto, colei tudo e o que agora se publica é o resultado dessa operação. Uma imaginada folha de sala de Bénard, para um imaginado filme de Ray. E a escolha de Ray não é inocente; só com ele (e só por ele) a mão de Bénard se lançava em tão ousadas sublimações.
Um texto-costura onde as costuras estão por vezes muito evidentes. Texto desequilibrado como não podia deixar de o ser, texto falhado como teria sempre que o ser, texto até nojento na apropriação e manipulação indevida do trabalho do outro. Tudo isso. Mas como o beijo no morto em S.O.B (Tudo Boa Gente, 1981) de Edwards, “It was blhergh because that’s not Felix, just something Felix walked around in. But it’s important because it serves as a reminder to those who loved what he was”. Um texto-blhergh que tenta operar a rememoração daqueles que amaram Bénard e o seu trabalho. Ou como por momentos podemos deixar de nos preocupar e acreditar que há um texto novo de Bénard.
The Twisted Road (1968) de Nicholas Ray
Em 1963, depois do estrondoso fracasso de Fifty-Five Days at Peking, Nick Ray nunca mais conseguiu voltar ao cinema dito comercial, apesar de inúmeras tentativas. Anos e anos calcorreou a Europa à espera dum projecto que se lograsse. Nessa altura – e particularmente na Checoslováquia, onde esteve em 67-68 – iniciou a sua experiência com os “multimedia” de que pouco se sabe. Se tivessem subsistido – ou algum dia se encontrassem – as experiências que Nick fez na Checoslováquia nos anos 60 com o split-screen technique, ou se tivessem subsistido – ou se um dia se encontrassem – os milhões de metros que filmou em 69 e 70 quando do processo de Chicago, talvez se pudesse compreender melhor o género de revolução que culmina em We Can’t Go Home Again. Mas houve. Um dos principais motivos da paixão de Ray pela história era a oportunidade que tinha de utilizar (tantas vezes se referiu a isto) a recolha que fizera dessa e de outras regiões. Como é que Nicholas Ray veio parar a esta história? O cineasta estava nessa altura na Europa e há muito (agora posso à vontade remeter para o catálogo) desempregado – e isto não é pequena história para história tão grande, atravessou à época, uma crise grave, com uma mais acentuada dependência do álcool e das drogas. A carreira do “Hollywood Director” terminou, de facto, com Fifty-Five Days at Peking, quinze anos depois do seu início em They Live by Night. Era, desde Hollywood, amigo de Max Fischer e este sugeriu-lhe que entrasse na aventura, dando-lhe total liberdade. Nicholas Ray veio fazer este filme à Europa, à espera de uma liberdade total e prometida, mas só se acumularam conflitos.
Era um projecto antigo, que vinha de 1947 e do tempo em que Dore Schary era ainda o senhor da RKO. Mas, quando Hughes chegou à RKO, vetou esse e muitos outros projectos de Schary (que a 1 de Julho de 1948, por causa dessas e doutras, saiu da RKO a bater com a porta). Ray, vacinado pelo caso de Woman’s Secret, quis interferir em tudo: argumento, montagem, toda a concepção da redacção. Dois argumentistas secundários (Richard Maibaum e Cyril Hume) foram encarregados de redigir o primeiro script. O que parece certo é que Nick não estava satisfeito com essa versão, e que recusou sempre a classificação do filme underground (“I don’t know what the fuck that means”). “Para quê usar a palavra underground? Só se for para dar um toque de distinção a filmes péssimos, feitos por gente inapta”. Respondeu que aceitava fazer o filme, desde que o script fosse todo mudado. Pediu a colaboração do seu velho amigo (do teatro e das lutas políticas), o famoso dramaturgo Clifford Odets. Chegava e dizia – era a mania dele – ‘a história é péssima, escolheram a pior maneira de a contar’ e começava a fazer tudo de novo. “The closer I get to my ending, the closer I am getting to rewriting my beginning”. Não era nada fácil trabalhar assim.
Não sabiam como “lançar” um “produto” daquele género, que sabia perfeitamente desafiar muitas convenções estabelecidas. Nessa altura, o filme chamava-se (ainda) Your Red Wagon (quem o viu recordará que era o título da canção escutada na sequência do restaurante). “Rebentou então” – conta Eisenschitz – “um conflito acerca do título do filme. Hesitou entre Never Let Me Go, Hold Close To Me ou The Twisted Road. Decidiu se por este último que comprou a um tal Sangster, que tinha intitulado assim, dez anos antes, uma novela publicada numa revista”. E foi como The Twisted Road que o filme se estreou mundialmente. No Festival de Veneza desse ano (onde o filme teve a sua première europeia) a critica dividiu-se entre o delírio e a execração. “O pobre Nick, completamente gágá, mete dó e filma às três pancadas”. Dum modo geral, a crítica alinhou por considerações deste género, lamentando tão triste regresso. Continuavam tão míopes como dantes, benza-os Deus. As palavras terríveis já foram ditas. “I love him but I’m afraid of him. He acts like a maniac”, “you just no good”, figura de justiça, figura de punição, pai terrível, pai vingador. “O que é que estás a tentar provar?” perguntam-lhe. Como digo no catálogo, parafraseando-o, “it’s a very painful film for me to talk about”, é-me dolorosíssimo falar deste filme, lembro-me que, uma noite, acordei e disse à minha mulher: “Alguém ou alguma coisa veio ter comigo e disse-me que se eu fizer este filme, nunca mais faço outro. “I’m out for good” é muito menos o patrão do que o homem quem lhe responde “Nobody ever quit me”.
Começa numa noite e acaba na madrugada do dia que nasce depois do dia seguinte. Mas é, de facto, o filme de um só tempo (ou um só dia, ou uma só noite) e o filme de todo o espaço. É uma obra de “maturidade”, obra de um Nicholas Ray pacificado para o qual o problema essencial já não é entre o “inocente” e o “culpado”, entre o “rebelde” e o “polícia”, mas a compreensão entre os dois? Não julgo que se possa ir tão depressa. Em Ray o que prevalece, sobre a história dos amantes acossados, é a fragilidade e o espanto de que tal “acossamento” exista, é o “labelo pessoal” a que tantas vezes se referiu, é o tema dos que são “strangers in this world”. Além do tema da oposição do “rebelde” e do “justo” continuava, nesta obra, o tema dos amantes acossados e do precário e efémero amor deles. É a viagem ao fim do amor.
Nick ama Morton muito mais que Morton o ama a ele, e é isso que Morton jamais percebeu. Vai encontrar alguém que confia tão naturalmente como ele desconfia. Até ao fim, esse fabuloso personagem selará essa confiança, mesmo depois de uma sova injusta, de óculos partidos e olhos feridos, no mais belo dos apertos de mão, numa casa de banho. “Don’t leave me. Don’t ever leave me.” No primeiro campo-contra-campo dos dois, o que fica é o espanto dessa “confiança sem fiança”, o que lhe diz – nessa cena de amor infinito – é que ele é exactamente o tal falhado, o tal tipo que já não presta para nada, senão para partir ossos e garrafas. E o que, ao longo do filme, fora sinal de agressividade entre os dois, torna-se nessa sequência, o sinal de amor, como se ambos finalmente percebessem que nessa permanente referência ao passado, ao impossível e ao incontrolável, se encontra e se acha a única e verdadeira grandeza. Pergunta-lhe: “You’re still sure?” Há um enorme silêncio e tudo está consumado.
Depois do portentoso beijo anterior (no fim da festa, funcionando como sinal exterior e interior) é a única vez em que a aproximação física é possível, numa das grandes sequências eróticas da obra de Ray. “Can you do it?” pergunta, e o tiro do amor supremo… O sangue passado de veia em veia não é vão, como não é vã a fabulosa troca de beijos no ombro, para comer o pão, colocado em cada um deles. A explosão entre os dois é a acumulação de todas essas tensões. E, mais do que qualquer conversa, fala essa assombrosa sucessão de campos-contra-campos, no final. Ou o plano incrível em que diz, quando o vê domar o bicho: “He is the best.“
É mais um capítulo da relação entre dois protagonistas masculinos com a ambiguidade que sempre teve na obra de Ray. E como sempre na obra de Ray, ambos são fugitivos do passado, por ele atraídos, dele se procurando libertar. É a mesma interacção entre o espaço exterior e o tempo interior, entre o décor e as paixões, entre a morte e o amor. Vê simultaneamente a imagem oposta à sua (o olhar como lugar de desconfiança é outro dos temas de Ray) e a imagem que reforça a sua e é o conflito entre essas duas imagens e a sua própria o que mais o dilacera.
Alguém se refere à personagem como “um homem doente” e essa expressão engloba-os a ambos. “O que é que se passa com ele?“, a pergunta é feita expressamente no filme como expressamente é sublinhada a sua imensa solidão. Ele é o homem que assume até ao fim essa generalizada hostilidade. E a paga em redobrada moeda. A mise-en-scéne esvazia-se perante a aprendizagem final e póstuma de um homem que já não tem aonde regressar e a libertação pacificada pela morte, dum homem que neste mundo só podia ser estrangeiro (Nick). É ele quem emerge como a grande figura do filme, como se, aos 57 anos que Nick então tinha, descobrisse na “maturidade” a “carne tenra”, que, no final, convida os abutres a devorar, num dos mais pasmosos diálogos da obra de Ray, também ele domador de muitas provas, e as mais terríveis, também ele finalmente atirado ao chão. Talvez também por isso, no fim da vida, tanto se tenha lembrado desta obra.
Nick já tivera uma rapariga loura que não fora “nice with him”, e a mulher, que de outro sendo, dele, simultaneamente, é e não é. É muito difícil estar assim, tão sozinho, no lugar do mais geral e do mais pessoal. Tão difícil que é preciso ser-se genial para o conseguir. À segunda libertação de Nick corresponde no filme o tal “momento perfeito” que sempre há nos filmes de Nick. E Ray só sabe que nada sabe, Ray é de todos o mais jovem, o único jovem; Ray nada ensina; Ray quase não fala; Ray não bate às portas. Escuta, no negro e no encarnado da noite mais funda, a sua solidão e a dos outros.
Começa a ouvir-se uma música muito doce e numa daquelas incertas horas de que só Ray tinha o mistério (crepúsculo? madrugada?) apeia-se e avança, em plano geral, enquadrado por uma enorme árvore, até uma velha e pobre casa, cercada por uns restos de vedação de madeira, cuja casa é invadida pelo exterior (o tal décor das árvores, citação expressa de Frank Lloyd Wright), e com a qual vai viver a mais “griffithiana” das histórias de amor. A partir daí o décor e espaço fundem-se e dividem-se cada vez mais. Em fundo negro fazem festas um ao outro, como quem brinca, como quem se perde. Ao fim de alguns instantes, beijam-se. Uns aos outros se fazem brandas festas nos cabelos, esse “momento perfeito” da mais bela relação a três de que o cinema conserva memória. Os que o amaram não foram capazes de velar até ao fim. De permanecer os três, nas festas e no colo uns dos outros.
A transição à angústia começa nessa magistral sequência, esta é dada numa sucessão de planos de estarrecer. “I believe you Nick” ou good-bye Nick? A proximidade da morte, se permite ao protagonista o envolvimento dum conforto (as assombrosas sequências no hospital), não dissolve essa inquietação. A sequência final com esta (antes do suicídio, portentosamente elidido) é um dos grandes momentos da arte Ray na captação da inelutável divisão dos homens. O enterro é visto em plongé por Nick, mostrado em grande plano; as mãos escorregando, agarrando a grade que já não consentem outro destino senão o da vingança por tudo o que de tão grande foi destruído. E mente-lhe, dizendo que não houve palavras finais. Ou seja, deliberadamente oculta o que lhe podia servir de reabilitação, recusando-se a que a sua imagem fosse recuperada através da mensagem póstuma. Diante dos seus homens e diante da sua mulher, assume o lado vil que lhe colavam e desce – ele também – ao fundo do seu próprio abismo. A sequência final ilumina (e obscurece). É também um filme sobre quem escolhe “live fast, die young and have a good-looking corpse” (Nick), ou viver devagar e morrer respeitável (Morton).
A tragédia da história é que as intenções dos dois homens não servem para nada. As pessoas têm muitas coisas para dar umas às outras, mas a sociedade separa-as, como as separa a incapacidade de comunicar que a todos nos caracteriza. Por isso, cada um dos protagonistas tem que voltar ao seu ambiente. Nos limites da terra e da água, nem uma nem outra existem. Existem apenas o avanço, o travelling – e a chegada ao limite final. Porque já é (mau grado as aparências) um ser marginal, e porque se tem sempre que encontrar uma causa reconfortante (o móbil) para um modo de estar e ser que o não são. Já “pecou”. Contra “aquilo tudo”, a que chamam felicidade.
Depois, todas as descobertas são possíveis: a de que a solidão é o destino de algumas pessoas, a de que só existe solidão quando se não comunga nessa solidão, a de que não é possível confiar em toda a gente nem desconfiar de toda a gente, a de que as vozes podem dizer mais que os olhares.
Na manhã seguinte, desenvolvem-se as pistas do amor e da traição. Tempo do café a subir, dos últimos beijos e das últimas mentiras. Todo o barroquismo de Ray, toda a arte de Ray, está nessa sequência capital. Como está no seu desfecho. Fim dos travellings, chegada a casa, plano fixo e abrir a boca pela primeira vez: “I’ll take that cigarette now“. O que era barroquismo, excesso, crispação, aqui, no magnifico Technicolor e VistaVision, espraia-se – desde o plano inicial – numa elegia que, como notou Demonsablon, não deixa de invocar Murnau. Já se pode dizer que há por aqui um cheiro de Murnau (mas em que grandes filmes não há?) como há um cheiro de Sternberg (os planos da cabana e do grupo de Cottonmouth lembram-me Anatahan) e um cheiro de Vidor (o pântano, que é água e terra, e não é uma nem outra coisa, embora com conotações muito diversas da obra do autor de Ruby Gentry). Esses fantasmas aparecem a espaços, embora o tempo nada deva a Murnau, a Sternberg ou a Vidor. Ray pode é ter fechado os olhos (ou tê-los aberto) e ter ficado com certas imagens.
Abrir a “quarta dimensão” no cinema (a dimensão do absoluto imaginário); dispersar as linhas rectas em linhas curvas, cruzando temas centrais com laterais, sem se decidir pela centralidade ou pela lateralidade (cada qual é livre de ver o que quer); criar impressões compósitas e simultaneamente afirmar que a narratividade é tão clara (ou tão óbvia) como nos seus filmes mais clássicos (Rebel). O processo permite sair para além da narratividade, para além do espaço e do tempo, para além da integração do espectador, tão dividido e tão traído (ou tão divisor e tão traidor) como Nick cineasta e actor se pretende assumir – o actor é o realizador, ou o realizador é o actor? A única sequência em que saímos dela só prepara a entrada noutra, mais cósmica e mais misteriosa, que comanda tudo e imprime todo o sentido fatal ao filme: refiro-me, obviamente, à antológica sequência do planetário, onde, não por acaso, Nick regressou no final, para as grandes traições e as grandes fidelidades. Já estamos “para além das estrelas”. Ou seja , no cinema.
Na noite e no nevoeiro, há um décor que Ray reconstrói. No regresso à casa da neve e à montanha, tudo se tornou finalmente branco e finalmente pacificado, essa noite, momento único, momento perfeito, em que tudo parece possível, como em todos os filmes de Ray. “Do you think the end of the world will come at night time?” É um filme deslumbrante, uma elegia docemente melancólica e desmedidamente lírica, é um filme sobre qualquer coisa situada muito longe. Mas há obras que não podem ser iluminadas, senão pela luz que dentro de si trazem, uterinamente, intrinsecamente. Quem não se convencer disso com esta obra, nunca mais se convence com nenhuma.
O resto é o negro, o Cinemascope despovoado, o fazer do amor, o fazer amor. Muito cedo ou muito tarde, o que era possível era já impossível – na contradição, para quê dizer, para quê interpretar? Ali cabe um mundo.. Filme “entre a espada e a parede” como disse Eisenschitz, a um passo do abismo, do caos? É verdade. Mas nisso mesmo reside, como em todos os grandes filmes de Ray, o seu imenso fascínio. Uma só falha, ou um só excesso e toda a estrutura se desmoronaria, de tal modo se articula em torno do insólito, de tal modo são frágeis os seus alicerces. Mas nunca há esse passo em falso. Como nas grandes tragédias ou nas grandes confissões, a harmonia resulta da discordância e, como Nietzsche ensinava, a finalidade da tragédia e da arte em geral resulta da união de divindades opostas. Faz parte dos filmes que escapam a qualquer crítica, porque o movimento que o anima é estranho aos nossos instrumentos de medidas habituais. Há aqui como que um fogo devorador, uma incandescência elementar.
Verso e reverso da mesma medalha. Tudo é uno. Quase se podia dizer, metaforicamente, que essa inscrição resume o conflito do filme. Não há saída de emergência, ou só há emergência sem saídas. É um filme que nunca se substancia nem se substantiza. Faz-nos fugir o chão debaixo dos pés. Tem o mais portentoso diálogo da história do cinema e as palavras não dizem nada. Tem aquela música e aquela música é um enigma. Tem os mais belos movimentos de câmara, a mais bela montagem e nada se move, nem nada se articula.
Como muito, muito mais tarde, diria Godard (ele que tanto amou este filme) as imagens iludem mas os sons não. E é pela voz e pela espantosa partitura (insólita e genialmente aproveitada por Ray) que a luz se faz no filme com o último longo plano da neve. Um écran que abrira em negro, fecha em branco. Entre estas duas cores, tudo cabe. Pois que essa verdade, nesse sentido godardiano, não só não se deixa ver como se não deixa ouvir. Tão invisível quanto inaudível. É um filme construído em flash-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma coisa? É o olhar sobre o verbo: de como as palavras e as ideias nada podem contra a imagem, de como tudo o que é morte e amor é cinema, ou vice-versa.
Não fui muito didáctico. Mas é possível sê-lo em face do mistério? É possível ensinar o amor? A única coisa que é possível é filmar assim, ou dizer, como Godard nos bons tempos, “Ce n’est pas du cinéma, c’est mieux que le cinéma.” Todo o cinema, nada a não ser o cinema, dizia eu de Nicholas Ray. Este elogio implica uma restrição. Nada a não ser o cinema, talvez não seja todo o cinema. Dar apenas a Ray o que é de Ray. Guardião da lei e da culpa, guardião do espaço sagrado da imagem, guardião do cinema, guardião do rubi, guardião do fogo, só lhe resta, no final, colar essas imagens todas e fazer arder a tela – teia em que este filme magistral é urdido. Percebam-no e amem-no os que também não.
Direi que nunca os personagens “odiosos” foram tão semelhantes e opostos aos personagens “belos”. Direi que não há filme em que a câmara “agarre” com tal “estremecimento interior” os personagens. Só os olhos, enchendo a tela toda. É inadjectivavel? É. E direi que não há raccord mais belo do que o que nos leva duma rapariga a ver-se ao espelho, ao vento nos fios telegráficos da estrada, numa sucessão vertiginosa de planos, com três vértices e todo o espaço redondo à volta, que é absolutamente estarrecedor. Direi que na sequência do casamento irrompe (é o termo) o sacral da relação entre aqueles dois miúdos (“I don’t know how to kiss”). Tempo de tudo se consumar, com desculpas e descobertas, como se não se tivesse tratado de destruir um homem e a sua última possibilidade. E mais, por hoje, não direi.
João Bénard da Costa