A atribuição do Prémio do Júri do Festival de Cannes ex-aequo a Mommy (2014) de Xavier Dolan e a Adieu au Langage (2014) de Jean-Luc Godard causou um semi-escândalo em certo meio cinéfilo. Pôr em pé de igualdade o jovem realizador canadiano e o monstro sagrado franco-suíço pareceu a muitos heresia ou, pelo menos, mais uma prova da degradação do gosto de quase todos. Sem querer escolher um lado nesta guerra, dá-me ideia que Dolan sofre sobretudo da reacção violenta que reconhecimentos instantâneos – logo ao primeiro filme, J’ai tué ma mére (2009), realizado aos vinte anos, obteve três prémios em Cannes – e talvez não inteiramente merecidos costumam provocar. Não será o menino prodígio que alguns viram nele nem a sua obra é tão desprezável como outros querem fazer crer.
Não tendo visto as duas primeiras longas-metragens de Dolan, é-me difícil aferir se são de facto “insuportáveis”, narcisistas e (auto-)indulgentes (como se diz por aí) e se houve uma evolução tão prenunciada que não me permite agora entrever essas características ou essas características como defeitos. No entanto, há uma óbvia distanciação neste Tom à la ferme (Tom na Quinta, 2013) [que já não é o último de Dolan, esse é o atrás mencionado Mommy] em relação ao anterior Laurence Anyways (Laurence Para Sempre, 2012), em que se assistia ao demorado processo de transformação de um homem em mulher, por entre synth pop manhosa dos anos 80 (elogio), ralentis de teledisco e demais diversões cinematográficas de alguém claramente maravilhado com o brinquedo que tinha nas mãos – ou como Xavier Dolan era mesmo um puto. Ao invés, Tom à la ferme é um filme mais “maduro”, uma espécie de resposta às críticas.
Como em tudo, quando se muda (ou se cresce, neste caso), perde-se qualquer coisa. Embora haja uma curiosa (e diria apropriada) mudança de dimensão da imagem numa sequência – o ecrã que se fecha, enclausurando ainda mais Tom, o protagonista -, já não há tantas brincadeiras (contei um ralenti) e a ligeireza que aguentava as três horas de Laurence Anyways desaparece; o tom fica mais escuro, mais pesado. Em Tom à la ferme, adaptado de uma peça homónima do também quebequense Michel Marc Bouchard, Xavier Dolan ensaia uma espécie de filme de terror numa pequena localidade rural (parecida com tantas outras localidades rurais americanas, com campos de cereais, silos, casas isoladas e estradas estreitas que levam a lugar nenhum), em que o monstro é Francis, o irmão do namorado de Tom (que morreu entretanto – o namorado, não Tom), um homem homofóbico que só consegue mascarar o desejo que sente pelo protagonista através de socos, pontapés e ameaças de morte (e cuja cara, da primeira que surge, por breves segundos, é manipulada digitalmente para lhe tirar as feições e evidenciar a monstruosidade).
Esta “paixão”, representada numa dança de tango ao som de Gotan Project, é um tanto esquemática e previsível – misturar sexualidade e violência, homossexualidade e a repulsa da atracção não é particularmente inovador, nem Dolan tem algo de substancialmente novo a acrescentar -, contudo a atmosfera de tensão criada à volta daquela invulgar família – a mãe de Francis, dada a histerismos e a negar a realidade, não é menos assustadora do que este -, da claustrofobia da terra pequena, da quinta de onde não se consegue escapar (nem Tom nem o espectador) funciona bastante bem. Para tal, muito ajuda a ominosa e cortante banda sonora de Gabriel Yared, assim como a interpretação de actores (diga-se o que se disser, Dolan é um bom director de actores). Presumo que as críticas de narcisismo tenham a ver com o facto de Dolan se ter escolhido a si mesmo para interpretar Tom e é inegável que gosta de se filmar, com os caracóis loiros a caírem-lhe permanentemente para a cara. Mas também gosta de se torturar, de se macerar – o rosto de Xavier Dolan é um dos principais alvos da fúria de Francis, acabando com nódoas, feridas várias e um fio de sangue à volta da boca que faz com que pareça que ficou aberta num sorriso horrendo (como se vê nalguns cartazes do filme) e deixa patente o que até aí estava mais ou menos subentendido: o grande tema de Tom à la ferme é a desfiguração.