Uma versão condensada do presente texto foi publicada, a convite da Direcção do Cineclube de Guimarães, no caderno Ciclo de Cinema Liberdade, no âmbito do ciclo com o mesmo nome que, iniciado em Abril, termina, no próximo dia 17 de Junho, com a exibição do filme Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu um Condenado à Morte, 1956), de Robert Bresson. Tendo presente o – estimulante – propósito do ciclo, o texto abaixo, mais do que uma crítica convencional, procura debater os sentidos da Liberdade que o filme de Robert Bresson – e toda a sua obra, a bem dizer – convoca.
Falar de Liberdade, como se propôs no âmbito deste ciclo dedicado à Revolução de 25 de Abril, e de Robert Bresson é um desafio muitíssimo interessante quando se pensa na relação muito própria que o cineasta francês manteve com o Cinema (ou com o “Cinematógrafo”, como o próprio teorizou). Claro que, em termos estritamente cinematográficos (ou narrativos, no rigor das coisas), reflectir sobre a ideia de Liberdade tendo por referente Un condamné à mort s’est échappé constitui tarefa aparentemente simples, na medida em que, como decorre do próprio título, o filme se debruça sobre a fuga, verídica e então tida por impossível, de um resistente francês (o Comandante André Dévigny) condenado à morte, cativo numa prisão nazi. Neste sentido – demasiado literal e epidérmico, no entanto -, o filme será um ilustrativo perfeito da Liberdade, ou melhor, da luta pela liberdade, do que é viver sem ela entre quatro paredes e, finalmente, do seu sabor (embora isso seja, em bom rigor, o que menos interessa a Bresson, que só “o” filma para fechar o filme e confirmar o sucesso da fuga). Mas quão pobre seria ficarmo-nos por aqui.
Un condamné vai bem mais além da digna luta de um homem pela liberdade, nesse trajecto perscrutador suscitando outras – bem mais estimulantes – reflexões em torno do tema da Liberdade. Para compreendermos a rota desse trajecto, importa ter presente, porém, e muito sumariamente, a formação cristã e, dentro desta, jansenista de Bresson, doutrina que, em França, nos séculos XVII e XVIII, arrancando da leitura crítica de Santo Agostinho, se viria opor às teorias reformistas, pugnando, no que à busca pela Salvação diz respeito, pela primazia (mas não exclusividade) da Graça concedida por Deus em detrimento das acções dos homens. Em termos artísticos, Bresson foi beber ao jansenismo quer a filosofia, quer a estética (e a ética) patentes na sua obra, tão singularmente ao ponto de ter erigido toda uma nova estética cinematográfica, a qual se traduziu na busca incessante por uma absoluta austeridade da imagem (minimalista e despida de artifícios, não se confundindo, no entanto, com uma pobreza de estilo, pelo contrário), pela contenção dos movimentos de câmara ou pela ausência de música (com pontuais, mas “sagradas”, excepções). Por outro lado, Bresson cedo se decidiu – desde Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951) – pela utilização de actores não profissionais, “modèles” que não deviam representar, pensar ou sentir o que dizem ou vêem. Neste capítulo, Un condamné é, aliás, o primeiro filme verdadeiramente 100% bressoniano, se assim o podemos dizer.
É, porém, na filosofia e teologia que o jansenismo empresta ao filme que se geram pertinentes cruzamentos com o sentido a que comummente associamos a ideia de Liberdade. Há um grande plano – um plano quase subjectivo, mas não o sendo, em rigor – que nos ajuda a resolver esse grande mistério (precisamente…) que é o de perceber por que graça (idem) de Deus conseguiu Fontaine evadir-se: é o plano das suas mãos, abertas, que, intuímos, o próprio mira admirado, como que contemplando as suas propriedades. Ajuda-te a ti mesmo, que esteve para ser o título do filme, será a directriz por que Fontaine metodicamente – religiosamente, qual “via sacra” – se orientará, fazendo uso das suas mãos, do seu corpo, da sua inteligência e intuição para executar a fuga. Esta paciência, esta perseverança como domínio absoluto de si mesmo constituem, desde logo, uma liberdade, interior, admirável (por isso é que, mesmo na maior das privações, aquele que consiga continuar a fazer “uso” de si próprio mantém uma inatacável réstia, mais do que sanidade, de liberdade, se é que as duas não se confundem neste contexto). E Deus ajudar-te-á, assim se completa o aforismo: feita a sua parte, o resto virá por acréscimo, que é como quem diz, virá por Deus, ou, mais certeiramente, pela sua Graça. A Graça é “todo” o tema (“Tout est grâce”, assim fechava Journal d’un curé de campagne, o filme imediatamente anterior, num raccord inter-fílmico muitíssimo coerente, além de belo) em Un condamné, no sentido em que os homens por ela bafejados – todos menos os pecadores, no ortodoxo pensamento jansenista – com ela sempre contarão, como um plus, na realização das suas acções. É essa Graça que explica o inexplicável, o mistério, isto é, o facto de tudo se conjugar, quando nada o fazia prever, para o sucesso da fuga – e isso justamente porque, abençoada por essa Graça, ela (a fuga) estava já “escrita” nos insondáveis planos de Deus (no que nos abeiramos da predestinação, outra das linhas de força do pensamento jansenista).
Deste modo, pergunta-se, será que a filosofia que insufla Un condamné casa bem com a ideia de Liberdade (de auto-determinação e auto-responsabilidade), ou, pelo menos, com uma certa ideia moderna (existencialista, em grande parte) de Liberdade? Quando ao homem não chega a sua auto-determinação, antes carecendo do tal plus transcendental, de que Liberdade falamos ao certo? E a que Liberdade podem (se é que podem) aspirar aqueles a quem a Graça não é concedida, isto é, os “pecadores”? Mas, a bem dizer, quantos de nós não remeteram já, ao menos uma vez na vida, póstuma ou antecipadamente, determinado acontecimento (ou parte dele), uma tristeza ou uma alegria profundas, para o Acaso? E o que muda, ao certo, se, em vez disso, lhe chamarmos Graça? Seremos menos livres quando o fazemos?
No que, esticando o passo, nos abeiramos da interrogação essencial: a presença de Deus na vida dos homens retira-lhes liberdade ou acrescenta-lhes liberdade? Na ausência de respostas de sentido único, talvez apenas uma certeza: a de que aquilo que efectivamente cerceia a nossa liberdade, aqui como noutros domínios, é o facto de tendermos a perspectivar as coisas de um ponto de vista demasiado auto-centrado, no caso, a condição de sermos ou não crentes, com isso saindo ferido, quiçá de morte, o primeiríssimo reduto da liberdade – o do pensamento. Ampliando o espectro para estes conturbados tempos que são os nossos, é a persistência de uma orientação política (?) que, procurando fazer-nos crer na existência de uma e apenas uma fuga possível da prisão em que nos encontramos, vem comprimindo, senão a liberdade, pelo menos a importância vital do pensamento heterodoxo.
Como quer que seja, se alguém foi verdadeiramente livre na sua arte e no modo de transpor a sua visão do mundo para a tela, esse alguém foi Robert Bresson, auteur por excelência que, perseguindo os fundamentos últimos (ou primordiais) da imagem-em-movimento, procurou (re)escrevê-la, crismando o Cinematógrafo (e não o cinema, arte contaminada, qual pecado original, pelos tiques de “espectacularidade” do teatro, segundo o próprio Bresson) como uma escrita com imagens em movimento e sons.
O Cineclube de Guimarães exibe Un condamné à mort s’est échappé quarta-feira, dia 17 de Junho, no Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor, pelas 21h45.