Convidado pelo IndieLisboa para apresentar o seu mais recente filme, Orlando Ferito (2013) – em competição na secção Pulsar do Mundo -, Vincent Dieutre esteve em Lisboa alguns dias. Na véspera da sua partida arranjou tempo para uma conversa de final de tarde na esplanada do bar da Cinemateca Portuguesa, em que ao longo de uma hora, e entre uma água das pedras e alguns cigarros, falou do seu cinema e do cinema que o apaixona. Os seus filmes não são estranhos aos espectadores portugueses, tendo Bonne Nouvelle (2001) e Fragments sur la grâce (2006) sido exibidos no DocLisboa, assim como o mais recente Jaurès (2012), que pude ver no QueerLisboa e onde acabou por vencer a competição para melhor longa documental. Esta foi a primeira vez que foi seleccionado para o IndieLisboa e Orlando foi o centro da nossa conversa, um filme “híbrido” – nas palavras do próprio – que junta o lado diarístico do filme de viagens (como quase sempre acontece nos seus filmes), o ensaio filosófico (tudo parte do livro catastrofista de Pasolini, Survivance des lucioles), o retrato político de uma Europa fragmentada e uma fábula quase infantil sobre o mito de Orlando no corpo de um teatro de marionetas. Dieutre mostrou-se como um homem dedicado à beleza e ao trabalho de a encontrar nos sítios mais inesperados. Um homem cheio de projectos (falou de pelo menos três que está terminando ou em vias de começar) e cheio de um desejo de (se) filmar, como se só assim desse sentido às coisas.
Já está a trabalhar…
Eu usei um gravador como este para uma instalação de vídeo. Sabes, eu uso a minha voz nos filmes e se por vezes gravo num magnífico estúdio o texto, outras vezes gosto de improvisar no local de rodagem. Uma vez usei este, deu um som estranho à voz, mas também cheguei a usar daqueles antigos com pequenas cassetes, que dá um outro som. Eu gosto de trabalhar sobre todas as possibilidades de gravar a voz, porque é algo muito importante nos meu filmes. No Jaurès gravei uma conversa com outra pessoa [Eva Truffaut]. Enfim, tento todas as possibilidades.
Li um artigo que escreveu para o jornal Libération, onde destacava datas importantes da sua vida. Uma dessas datas correspondia aos seus 15 anos, quando viu o Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) da Chantal Akerman. Nos anos 70, sendo-se adolescente e indo-se ao cinema, os filmes que se podiam ver eram diferentes dos de hoje em dia. Hoje em dia vão ver o novo Harry Potter ou o Twilight e não vão ver o novo filme da Chantal Akerman.
Eu era bastante… eu estava dois anos à frente na escola e por isso comecei a ver filmes. Estava também a viver em Paris, e tu sabes, em Paris tens todos os filmes que quiseres. E os meus pais também tinham o hábito de ler o guia de TV Télérama, que era até bastante bom quanto ao cinema – eles aconselhavam e promoviam sempre os ditos filmes difíceis. Por isso, quando tinha 14 ou 15 – e lembro-me bem porque tinha acabado de completar a idade mínima para guiar uma pequena motorizada – fui ver o Jeanne Dielman. Eu já tinha lido algumas críticas, do Télérama (e a verdade é que a minha mãe também se interessava bastante por cinema e por isso deixava-me ir), mas o problema foi que o filme era muito longo e quando terminou eu fiquei tão maravilhado que tive que o ver uma segunda vez. Por isso, quando regressei a casa já era tardíssimo, eu expliquei à minha mãe que o filme era tão extraordinário que tive de o ver de novo. Não sei o que era… mas naquela altura, aqueles enormes planos-sequência eram incríveis, diferentes de tudo o que eu já tinha visto. Quando a conheci, anos mais tarde, ela contou-me que tinha tido uma experiência muito semelhante com um filme do Michael Snow, um filme muito belo chamado Wavelength (1967). Ela também o viu muito nova, 15 ou 16, num festival, e foi por isso que se decidiu por fazer cinema. Sim, foi qualquer coisa… mas também era uma questão de modernidade, eu queria ver o que se estava a fazer. Eu ia a galerias muito novo e as pessoas ficavam espantadas porque eu fazia perguntas sobre arte. As coisas avant-garde atraíam-me, não só no cinema, nessa altura eu nunca diria que o cinema sobressaía, interessavam-me muito as artes plásticas, as artes minimalistas, e só mais tarde vieram os filmes. Mas eu nunca fui aquilo que se chama um cinéfilo, não passava o tempo todo na cinemateca a ver John Ford, sempre me interessaram experiências fortes que lidassem com o tempo e o espaço, um certo cinema conceptual. Por exemplo, descobri muito cedo o cinema do Jean-Marie Straub, comecei por um filme, o Trop tôt, trop tard (1982), que se compunha de enormes planos-sequência no Egipto e em Paris, que me maravilharam. Também vi bastantes filmes do Andy Warhol, que me atraíam muito. Fiz uma primeira viagem a Nova Iorque quando tinha 17 anos e lá descobri toda uma nova estética, poderia chamar-lhe cinema de galeria. Sabes, nas salas só passavam ficções com actores, filmes de acção e aventuras, filmes narrativos com histórias. Eu preferia algo mais reflexivo, filmes onde a contribuição do realizador fosse mais evidente. Mas claro, quando fiz a escola de cinema tive que aprender tudo.
Eu estava a referir a Chantal Akerman porque ela usa muitas vezes – não a inventou claro… – a panorâmica de 360º. Que é um movimento que o Vincent também aprecia bastante.
Ah, isso é uma coisa do Michael Snow, não o conheces?
Não…
Ele é um artista, mas também faz filmes. Ela fala muito dele. Ele fez um filme chamado La Région centrale (1971), no Canadá todo sobre o espaço e como filmar o espaço. Um filme muito conceptual e quando ela o viu… O Wavelength é outro dispositivo, uma câmara atravessa um loft, um compridíssimo corredor e vão acontecendo coisas (também técnicas, porque ele tem que ir mudando a película). É um plano contínuo que se move muito lentamente, a certa altura há um homicídio, mas tu não o vês e a câmara vai, vai, vai. Muito engraçado, mas sempre problematizando todas estas figuras, todas estas possibilidades da câmara. O Jean-Marie Straub também usa essa panorâmica de 360º. Para mim eu creio que é uma coisa muito importante, porque com esses planos o ponto de vista da câmara torna-se o centro do mundo. Matematicamente, com um plano destes, uma pessoa mostra tudo aquilo que se pode ver de um certo ponto, e, de um ponto de vista filosófico, este é um plano de máxima generosidade. Mas eu tento não o usar sistematicamente, mas há algo que me alegra muito quando o faço. Por vezes até gosto de o fazer duas vezes. No Orlando Ferito era suposto o filme começar com um e terminar com outro, mas o primeiro não correu muito bem – uma parte da torre ocupava o enquadramento e não ficava nada bem. Mas de facto em quase todos os meu filmes existe uma figura dessas. A Chantal também as usa, assim como os longos travellings – que é aquilo que eu acho que ela faz melhor -, em Nova Iorque, no México, onde quer que seja. É uma forma de viajar com o espectador pela cidade, fazê-lo sentir o espaço, aquilo que é muito particular na cidade, e por vezes esses movimentos de câmara são oferecidos pela própria cidade, umas escadas rolantes por exemplo, ou elevadores e corredores. Por vezes seguir apenas os movimentos da cidade pode ser muito forte. Eu penso sempre que se não é aborrecido para mim, não o será para o espectador. Eu escolho fazer longos planos porque me interessa explorar as possibilidades do espaço, ainda mais quando se viaja – e a maioria dos meus filmes são noutros países, em viagem. Enfim, a relação entre tempo e espaço é o que me interessa, o que é no fundo a essência do cinema.
Para a sua geração, que cresceu a ver os filmes da nouvelle vague, não sente que existiu uma herança demasiado pesada a seguir? No entanto, no seu caso, com um cinema mais diarístico, aproximou-se mais de realizadores como Agnès Varda, Boris Lehman ou Alain Cavalier – realizadores oriundos da nouvelle vague. Gostava de saber se essa herança foi de facto um peso, ou foi, por seu lado, como juntar-se a uma família.
É muito estranho. A nouvelle vague deu-se mais ou menos quando eu nasci, eu era jovem e quando comecei a ir ao cinema já se estava na chamada segunda nouvelle vague ou, como se diz em França, nouvelle vague rive gauche. Porque a nouvelle vague rive droite era composta pelo Godard, Chabrol, Truffaut, maioritariamente homens, machões – depois o Godard mudou… -, que costumavam ir ao cinema nos Campos Elísios e à cinemateca, enquanto que a nouvelle vague rive gauche era mais a Agnès Varda, Jacques Demy, Alain Resnais, mais ligados à literatura e ao nouveau roman. Por isso, sim, nesse sentido tens razão, eu estou mais próximo dessa nouvelle vague rive gauche, no entanto o Godard foi muito importante para mim. Isto porque quando eu comecei a ver os seus filmes, ele estava no auge do seu período esquerdista dos anos 70, por isso ele era para mim como um herói do cinema. Mas estranhamente sempre me senti muito mais próximo do cinema do Demy e da Varda – talvez por causa da coisa gay, não sei… – assim como do Resnais, eu adorava o Hiroshima Mon Amour (1959) ou quando eu tinha vinte anos, o filme que ele fez, o Providence (1977). Quando comecei a fazer filmes, o meu primeiro filme é de 1995, tinha eu 34, apareceu o vídeo e isso foi muito importante para mim. Quanto ao Alain Cavalier, eu não sei se gosto… claro que gosto, são lindos os seus primeiros filmes nouvelle vague, mas foi a sua atitude quando surgiu o vídeo que me marcou. Eu comparo-o sempre a São Francisco, porque ele prescindiu de tudo o que tem o grande cinema, actores – ele trabalhou com o Alain Delon e a Catherine Deneuve… Ele teve uma grande depressão nervosa em 78 (ou por aí) e fez um filme, ainda não havia vídeo nessa altura, em 16mm chamado Ce répondeur ne prend pas de messages (1979) e, na verdade, conta a história da sua depressão, ele não se mostra, só com uma máscara, mas eu não o vi à época, era algo muito experimental e passou-me. Mas depois ele esteve quase dez anos sem fazer o que quer que seja e, com o aparecimento do vídeo, ele encontrou uma nova forma de fazer cinema. Ele é o único a originar na nouvelle vague e a mudar-se para o “meu movimento”. E tornámo-nos amigos… bem, não somos bem amigos, eu não o vejo frequentemente, mas conhecemo-nos e eu admiro-o muito como homem, muito generoso e terno, e, além disso, gosto muito da mulher com quem ele vive, que é a montadora dos filmes dele, a Françoise Widhoff. É engraçado, porque estava a falar disto ontem, com um dos organizadores de um festival em Florença e, como te disse, ele lembra-me o São Francisco: gostava de ir com ele a Florença e conversar, em vídeo, sobre essa pessoa que se desprende de tudo, das roupas, das jóias, e que diz esta é a minha verdadeira vida com Deus. E acho que ele é assim e eu levava-o a um convento onde há frescos que contam esta história e lá falaríamos de filosofia, sobre o que é arte, sobre o que é o cinema. No Orlando, eu uso o Georges Didi Huberman não como o mestre ou coeficiente intelectual, como faz o Godard por vezes, mas incluindo-o também como corpo, como um actor do filme. Eu filmei-o com um plano fixo e parece-me que ele até está mais próximo do mundo das marionetas do que do mundo real. Tento dar forma cinemática a ideias. Parece-me que o cinema está a ficar… não queria dizer estúpido, mas dá cada vez menos importância a coisas abstractas. Como digo no Orlando, uma pessoa inteligente que transpõe para palavras as suas ideias é sexy. Exactamente como o que dizia sobre os planos-sequência, não é por provocação nem nada do género, eu gosto porque sinto, como espectador, um verdadeiro prazer ao ver um plano assim. Parece-me que deves usar uma linguagem apenas se sentires que funciona contigo.
O primeiro dos seus filmes que vi foi o Jaurès e aquilo que mais me surpreendeu foi a forma como, por um lado, estávamos a assistir às suas memórias de vida com aquele homem e naquele apartamento, mas, como sabemos, as nossas memórias nem sempre reflectem o que realmente aconteceu. Nesse filme, tudo aquilo que a câmara captou estava infectado por pequenas animações e isso foi muito surpreendente para mim, afinal a câmara também se pode esquecer…
Exactamente as palavras que eu usaria.
A minha pergunta é, pois: no seu cinema filma para lembrar ou filma para esquecer?
Não sei se será apenas por uma questão de memória. É mais uma necessidade de dar forma. Por exemplo, no caso do Jaurès não foi um filme que eu tivesse escrito, por cujo financiamento esperei – como é habitual -, foi diferente. Eu estava separado desse homem, e apercebi-me a certa altura de que a única recordação que eu tinha dele eram aquelas filmagens, não tinha fotografias, nem nada. E, se ouvires o som do filme, ouve-lo, era o único registo físico que eu tinha dele, a sua voz, por vezes os seus gestos. Foi muito emotivo para mim ver essas imagens, porque representavam a única ligação que eu ainda tinha com ele. Eu acabei por falar com o meu produtor e ele explicou-me que quando eu lhe falava sobre as imagens ele era capaz de sentir as minhas emoções sobre toda a situação (ele não conhecia a história), por isso desafiou-me a fazer algo com essas imagens que se reportasse a essas emoções mas também à questão dos emigrantes afegãos que estava à altura já resolvida. Acabou por ser um híbrido.
O filme está dividido entre aquilo que se passa do lado de dentro da janela e aquilo que se passa do lado de fora.
O principal objectivo era mostrar que a vida privada e a vida colectiva não têm fronteira. As pessoas hoje em dia crêem que se pode separar de um lado o político e do outro o privado, nos anos 70 ninguém diria uma coisa dessas, estava tudo misturado… acho que é uma ideia muito poderosa. O Georges Didi Huberman di-lo: a política é também feita de emoções, de amor, de carinho. O pensamento queer diz mais ou menos isso também, que a subjectividade é linguagem política, que pode ser usada como força de mudança. Mais e mais nos vamos apercebendo que a política tradicional é cada vez menos capaz de produzir mudança, veja-se a situação de Portugal e da Grécia. Jaurès era sobretudo isso. Eu nunca criei aquela situação, aconteceu assim. O mais importante era dar uma forma, mais do que esquecer ou lembrar. Construir e transmitir uma emoção ao espectador. Mas talvez tenhas razão, aquilo serviu também para eu provar a mim mesmo que eu vivi aquela história. Mas não me parece que seja uma questão de esquecer… não, estás certo, é uma questão de esquecer. Hoje em dia estamos obcecados com o presente – é disso que o sistema capitalista se alimenta -, sempre com receio de perder o que já tivemos. Fazer uma obra de arte, qualquer que ela seja, é uma forma de desafiar essa primazia do presente. Não é por eu não o ver mais que acabou. As pessoas hoje em dia, quando há um acidente, a queda de um avião, dizem que querem fazer o travail de deuil, que querem aceitar a morte do outro. Eu não quero aceitar! É um escândalo aceitar a morte de uma pessoa que se ama, eu quero que essa pessoa me acompanhe toda a vida, faz parte de mim, da minha riqueza. Mas a sociedade moderna não quer isso, uma história de amor acabou, vem outra pessoa e já esqueceste. Não! Eu mudei, mudei para sempre, é o que digo no final do filme. E mais, não fui só eu que mudei, todo o mundo mudou por causa daquela coisa tão pequenina. É poético mas sincero. Além do mais, as pessoas dos documentários estão sempre a interrogar-se sobre a forma ética de filmar, será que posso filmar pessoas, será que posso falar-me a mim, eu acho que isso é tudo… não é que não seja interessante, mas hoje em dia todos nós somos filmados 300 vezes por dia sem sequer sabermos. Há todo um trabalho a fazer sobre essa coisa da tradição do documentário, há que inventar novas formas e o Jaurès foi a minha tentativa de fazer um documentário honesto. Eu nunca na minha vida diria que ia fazer um filme sobre os emigrantes afegãos em França… Também por isso foi bom ter a Eva Truffaut ao meu lado, porque ela conheceu o homem, sabia da história, e por isso podíamos falar honestamente. E tens razão, no final eu quis fazer algo mais complexo, porque apesar de tudo aquelas imagens não eram prova de coisa nenhuma, eu não fiz o filme para me lembrar mas sim para ter a certeza de que vivi aquela história, neste caso, mais do que lembrar ou esquecer, tenho a certeza de que amei aquele homem e de que ele me amou a mim. E tive que fazer o filme para estar certo disso. E fiquei feliz porque com o filme ganhei um prémio gay em Berlim, o Teddy (e também no QueerLisboa) e ao mesmo tempo o Hans-Reimer-Preis em Hamburgo, um prémio político. Era isso que queria, ter as duas coisas. Por vezes não tenho nem uma, nem outra, mas tento sempre seguir nessa direcção de não aceitar as regras do documentário com os temas… o tema é sempre Eu. Não é egoísta, actualmente quando todas as ideologias e linguagens são inseguras – tem-se feito tantas coisas terríveis com o documentário, a começar pela propaganda dos regimes fascistas… -, temos de e podemos, com uma pequena câmara, reinventar tudo assumindo sempre que é subjectivo. A chamada objectividade é enganadora, muito do que vemos é falso. Por exemplo, no Orlando a certa altura vês um pequeno vídeo da Internet do Berlusconi a simular uma foda e é falso. Mas eu gosto, independentemente da sua veracidade. É! E temos que lidar com essa imagem, porque existe. É interessante trabalhar sobre isso, mas há que dar aos espectadores as ferramentas para também poderem duvidar, eles têm que perceber quando os estamos a enganar. Eu estou a enganá-los, eu sou um artista, faço cinema, é um truque. É isto que eu gosto no cinema, a forma como se lida tanto com a realidade como com a criação poética, e a emoção está entre essas duas coisas. É mais a dúvida entre a mentira e a verdade do que entre o esquecer e o lembrar.
Tudo isso me faz lembrar do último plano na última cena do Mon voyage d’hiver (2003), em que num fade uma rua da Alemanha Oriental da actualidade se transforma nela mesma anos antes. Como se o passado estivesse a regressar, porque a cidade também tem memória. Tanto no Orlando, como no Mon voyage filma muitos graffitis. É porque eles são como o grito de uma cidade ou porque correspondem à versão moderna da escrita na pedra?
No Mon voyage d’hiver não estávamos assim tão longe da queda do muro na Alemanha e havia muitos graffitis de suásticas nas ruas. E quando tu passeias pelas vilas alemãs todas arranjadinhas e depois vês aquilo é muito poderoso. Eu queria incluir isso nesta ideia de contar a um jovem rapaz a sensação da história – não quis ensinar história, mas sim a sensação que temos dela -, e para isso a Alemanha era ideal, mais ainda do que Itália, porque há buracos, muros caídos, vestígios de história… mesmo que não vejas, sentes. Ou sentias. O esquecimento pós-moderno está também a afectar Berlim. Eu vou fazer um filme em Berlim sobre isso, sobre como a história é apagada pelas intervenções pós-modernas na cidade – também de artistas. Mas nessa altura sentia-se as feridas ainda abertas, literalmente, nos corpos dos homens que eu conheci, que nasceram em 44 e 45, no meio das ruínas. Se te lembras eu falo disso, dos vestígios nos corpos deles desse passado, de como tinham sido crianças mal nutridas. Mas é como disseste, é como um grito, mas pode ser um grito maldoso. Veja-se as suásticas…
Fez-me lembrar o Mur murs (1981) da Agnès Varda…
Claro. Mas também tem que ver com outra coisa: cada vez mais as cidades são assépticas, tem que estar tudo limpo, tem que se respeitar os monumentos antigos. Quando estás em Itália encontras graffitis do período romano que ainda subsistem. Escrever na parede é uma forma ligeira de arte, que por vezes pode permanecer por muito tempo. No Orlando isso vê-se muito por exemplo nas casas de banho…
É logo o primeiro plano do filme.
É fascinante, e foi por acidente. Eu estava no aeroporto de Palermo e fui à casa de banho e as paredes estavam cobertas de anos e anos de escritos, todos gay…
Cá em Portugal o fenómeno é semelhante.
Sim, sim. Eu filmei essas casas de banho com a minha pequena câmara e depois, quando estávamos a fazer as sequências com as marionetas falei com a minha directora de arte e disse-lhe que queria ir para as casas de banho do aeroporto filmar, com uma câmara melhor, planos magníficos desses graffitis. Mas, quando lá voltei, tinha sido tudo limpo… 20 anos de desejos apagados num instante. E porquê? Porque tinham vergonha daquilo. Na Sicília não há gays, toda a gente sabe isso [risos]. E depois chegava-se ao aeroporto e via-se aquele espectáculo… não podia ser. Mas as coisas estão todas viradas nesse sentido – e não é uma coisa só das pessoas da direita -, a necessidade de ter tudo arranjado e limpo. Mas todas essas palavras – podem ser políticas, sexuais, o que seja – e pinturas são por vezes muito boas, proibi-las e escondê-las é uma forma de… É um grande problema quando a cidade não aceita os seus – especialmente na Alemanha, porque em Itália eles tentaram mas não resultou. E é algo que não estraga a cidade de forma nenhuma, se tirassem todos os graffitis de Roma seria uma enorme perda…
Ou em Lisboa…
Ou em Lisboa. Eu andei também pelo centro e vi muitas coisas nas paredes, não são só escritos, vocês têm imensos cartazes rasgados e tudo o mais, para mim isso é muito belo. E é importante para mim que essas coisas entrem no filme, funciona quase como uma colagem. E no Orlando isso é muito evidente de facto, existem vários ao longo filme, sobre o Berlusconi, sobre as manifestações estudantis. São parte da beleza da cidade, e eu mostro-a sem nunca a procurar – eu não ando em busca nos muros -, se me aparece no caminho, e está de encontro ao meu estado de alma e àquilo que quero dizer, então filmo-a. Por exemplo, não sei se te lembras, mas quando eu estou na Catânia à conversa com uma prostituta, uma zona muito antiga no centro da cidade – zona da qual as pessoas se envergonham muito -, uma conversa muito improvisada (porque na verdade eu queria ir falar com os travestis mas quando apareci com a câmara eles esfumaram-se num ápice) que ela aceitou fazer. Depois disso, quando estávamos a sair desse bairro, numa parede aparece escrito Lampedusa sta bruciando – Lampedusa está a arder – e eu nessa altura já sabia que mais tarde iríamos filmar em Lampedusa, por isso funcionou quase como um sinal de que estava no caminho certo.
Quando vi o Orlando Ferito, surpreendeu-me a forma como, ao contrário dos seus filmes anteriores, este está a olhar para a frente (os outros estão sempre a olhar para o passado, para uma relação que acabou, para os vestígios da guerra…). Senti uma certa esperança no filme, de que ainda era possível recuperar da catástrofe. E a certa altura diz-nos no filme, quando conhece um homem, que o sorriso dele fê-lo esquecer-se de todos os problemas. Essa esperança que se sente no filme só se encontra através do amor? Conhecendo outras pessoas?
Sim, claro, é sempre a ideia do Georges Didi Huberman. Mas tens toda a razão, quando decidi fazer o Orlando eu nunca tinha estado na Sicília – não foi um regresso…
Mas já filmou várias vezes em Itália…
Sim, mas na Sicília nunca tinha estado. Escolhi-a pela ideia que tinha da Sicília, e pela oportunidade que tive de lá ir, alojamento e tudo isso. Decidi então filmar lá, fosse o que fosse, como se se tratasse da primeira regra de um jogo, tem que ser na Sicília, depois redescobri as marionetas da minha infância – sempre as adorei – e o incrível mestre marionetista. E ainda, por mero acaso, a Eva Truffaut deu-me o livro The Survival of the Fireflies: a politics of survival (La survivance des lucioles) que li durante a viagem. Tudo se compôs dessa forma. A princípio comecei a fazer o filme com um pouco de dinheiro que eu tinha recebido para escrever, fui com o meu director de fotografia (tudo isso surge no filme) para começar a filmar e de repente o meu amigo de Turim decide emigrar e abandonar Itália em direcção ao México, deixando o seu cargo de deputado municipal. E o filme surgiu assim: o nosso único luxo é não termos prazos. Depois os filmes são como uma máquina que ganha vida própria e funciona por si, só na montagem é que o recupero. Depois de Lampedusa comecei a escrever os diálogos das marionetas e visitei o Georges Didi Huberman, disse-lhe que se ele não entrasse não haveria filme e felizmente ele aceitou – também porque ele tinha visto o Jaurès e tinha gostado bastante, além do mais foi muito importante para mim que ele aceitasse porque ele tinha recusado um convite do Jean-Luc Godard para entrar no Film Socialisme (Filme Socialismo, 2010), ele recusou porque sabia que o Godard edita demasiado e não respeita os contributos das pessoas. Ao fim de três anos não tinha assim tanto material, cerca de 72 horas onde mais de metade eram as cenas das marionetas, porque foi algo que envolveu muitas repetições, mas mesmo assim deu um longo período de montagem. Mas sinto que o que disseste é perfeito, eu não estava a regressar a um local, não estava focado no passado, mas sim no que se está a passar no momento, agora. Mas isto aconteceu também porque o filme acompanha aquilo que são as minhas preocupações com o caminho da Europa, quando comecei o filme havia uma grande crise de identidade na Europa – a crise na Grécia e em Portugal e também em França, os países a começarem a fechar e a acusarem os outros, e também a xenofobia para com os emigrantes (Lampedusa era nesse sentido um local simbólico do estado da Europa). E também à ideia do Walter Benjamin, e agora do Georges Didi Huberman, e do Pasolini, aquilo que eles chamam a ditadura do presente, as possibilidades, a utopia, a esperança só pode aparecer com o choque entre passado e futuro, o presente não existe. O presente é apenas um conceito e no entanto somos todos governados por esse conceito, o que é absurdo, há que dizer não. No filme, o passado surge com as marionetas e com os próprios locais e o futuro na forma das luccioles, os pirilampos – adoro a palavra. Mas já em 1975 o Pasolini dizia que era tarde demais e acabou por ser assassinado um ano depois. O Georges Didi Huberman pegou nesta ideia das luccioles e, embora continue a adorar o Pasolini e todo o seu universo trágico, percebeu que ninguém pode viver com isso, nem todos vamos ser assassinados numa praia perto de Roma ou de Lisboa, temos que lidar com outro nível de complexidade. É isso que eu gosto nele, a forma como o seu pensamento é modesto e terno, ele não é bem um filósofo, é mais um historiador de arte e ele defende que temos que andar à procura, estar atentos, preocupar-nos com as coisas pequenas e envergonhadas e é isso que eu tento fazer. Acho que é uma óptima lição para o futuro. Muita gente na Sicília acha que eu sou demasiado optimista – porque não havendo pirilampos eu inventei-os -, que a Sicília é um antro de problemas, máfia, drogas, e tudo o mais. Isso não me interessava. Embora a situação seja terrível, acho que era importante ir à procura de outras coisas.
Com o Mon voyage d’hiver trabalha lado a lado com a ópera…
Música, mais do que simplesmente ópera. Piano…
… no Orlando mais proximamente com o espectáculo de palco com as marionetas e no Leçons de ténèbres (1999) mais junto da pintura. O cinema é uma arte que absorve todas as outras. Interessa-lhe esse cinema que absorve ou acredita num cinema puro que existe por si?
Como espectador sinto que o cinema é uma arte mais sintética, usa-se música, usa-se escrita, usa-se pintura, fotografia, um pouco de tudo. O cinema faz confluir todas as artes, é algo híbrido. Embora aprecie todos os tipos de beleza, o cinema tem algo diferente, é colectivo tanto na feitura (é toda uma equipa), como na exibição, é suposto ser visto em colectivo, no escuro. A emoção mais forte que eu alguma vez tive foi no cinema. O cinema permite-nos viajar, conhecer países longínquos. Por exemplo, eu sou muito amigo do Nobushiro Suwa, um realizador japonês que fez belíssimos filmes como o M/Other (1999) e o H Story (2001), filmes de que eu verdadeiramente gosto, e é incrível o quão próximo eu me sinto daquele homem que não é gay e que vive no Japão. É como se eu estivesse lá, e isso só acontece no cinema. Estabelece-se uma ligação directa de sensações com outros países e outras estéticas. De certo modo, sinto que antes de haver cinema a mais sintética das artes era a ópera – escrita, música, cenários. O cinema pediu emprestado as forças da ópera antes de partir, ele é feito de todas estas coisas e eu tento brincar com tudo isso, com essa ideia de colagem. Há que relembrar ao espectador que em cinema não se inventa nada, já tudo foi filmado. O problema não é o assunto, é a forma, todas as situações já foram filmadas, até a pornografia. Uma semana após o primeiro filme já havia o primeiro porno. É importante estar-se consciente disso, que quando filmas uma parede estás também a fazer uma homenagem à arte do graffiti, à arte povera, à abstracção lírica. O cinema está cheio de referências e eu prefiro ser o mestre dessas referências, tentar controlá-las. As pessoas pensam que é muito espontâneo mas não é, é tudo uma escolha, não tem nada de intuitivo, há que trabalhar muito para conseguir juntar tudo, para encontrar as conexões. Por exemplo, há um cena de mim com o Luigi a dançar no enorme palácio. Para mim era uma cena do Visconti, eu assumo isso, não tenho que ter medo ou fazê-lo de forma inconsciente, tenho que afirmá-lo. Eu trabalho com referências com muita facilidade, produzo ligações sem esforço, encontro beleza onde por vezes ela não se vê porque a relaciono com outras coisas. Orlando foi também uma forma de ligar a ópera, o teatro, o barroco, as marionetas, tudo misturado com coisas tecnológicas muito modernas como o meu iPhone ou a Internet. Mas, por outro lado, também filmei em Super 8, que é quase a forma mais primitiva de cinema. Eu gosto de trabalhar com tudo isto e não creio que seja algo pesado. Em muitos filmes tenta-se não fazer referências, só que depois tornam-se vítimas das próprias referências quando não as trabalham. Comecei recentemente um projecto, que não foi mostrado ainda em Portugal, uma série de filmes chamada Exercise of Admiration onde eu me confronto com obras que me transformaram, porque eu tenho a consciência de que as minhas ideias não vêm de parte nenhuma. Por exemplo, estávamos a falar da nouvelle vague, quando era adolescente fiquei muito impressionado com o La maman et la putain (1973) do Jean Eustache e como eu tive oportunidade de trabalhar com a Françoise Lebrun (a actriz que faz de Veronika), decidimos refazer a última cena do filme onde eu digo o texto e ela me filma e deu origem a uma curta metragem – que eu espero que seja bastante boa – a preto e branco que usa Super 8 e vídeo. Depois há outro com a realizadora japonesa Naomi Kawase, outro sobre o Cocteau e acabei agora de fazer, como epílogo para o Orlando sobre o filme do Rossellini, Viaggio in Italia (1954), onde nós o refizemos completamente mas sei que haverá problemas com os direitos, por isso vou convidar a Isabella Rossellini para o ver… No fundo isto simboliza essa ideia de que tudo o que tu fazes alguém o fez antes de ti, por isso tens que o assumir e dar forma a essa admiração que te moldou, que me moldou como artista, mas também como homem. Nós somos o resultado de todas as influências, obras de arte e lugares que nos construíram. É um bocadinho análise freudiana mas a grande questão em termos estéticos é perceber de onde é que vimos. Todos os meus filmes tratam disso, mas esta nova série encara a questão de frente.