Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000) é um filme difícil de rotular. Co-produção chinesa, americana, de Hong Kong e Taiwan, tornou-se num dos filmes de maior sucesso associado à “China” embora seja na verdade um perfeito exemplo de obra transnacional – Ang Lee sendo, aliás, também ele um perfeito cineasta transnacional. A “China” de Wo hu cang long é uma fantasia, mas uma que tem fascinado e irritado cinéfilos, académicos e o público em geral desde a sua estreia. A Cinemateca Júnior passa-o dia 28, uma boa oportunidade para redescobrir o filme.
Ang Lee é hoje um cineasta deveras famoso e quando filmou Wo hu cang long, embora não tivesse a aura de hoje, era já um profissional com uma boa dose de reconhecimento desde a sua trilogia inicial entre os Estados Unidos e Taipé [Tui shou (Pushing Hands – A Arte de Viver, 1992), The Wedding Banquet (O Banquete de Casamento, 1993), Eat Drink Man Woman (Comer Beber Homem Mulher, 1994)], uma adaptação de Jane Austen [Sense and Sensibility (Sensibilidade e Bom Senso, 1995)], um inteligente drama americano ambientado nos anos 1970s [The Ice Storm (A Tempestade de Gelo, 1997)] e um outro passado na Guerra Civil Americana [Ride with the Devil (Cavalgar com o Diabo, 1999)]. Mas a escala de Wo hu cang long foi de uma outra ordem de grandiosidade. Ang Lee, que à excepção do terceiro filme, sempre filmara histórias anglo-saxónicas (embora nem sempre fossem apenas isso) deslocava a acção totalmente para a Ásia, mais precisamente para a China da última dinastia imperial. Mas Wo hu cang long não é um filme histórico. É uma fantasia que homenageia os wuxia dos anos 1960 e 1970 [veja-se a presença no elenco da veterana Cheng Pei-pei, protagonista de clássicos como Da zui xia (Come Drink with Me, 1966)], épicos de artes marciais cujos protagonistas se movem no mundo paralelo do jianghu, ou mundo marcial, uma para-sociedade com um rígido código moral. É ao jianghu que pertencem duas das figuras centrais de Wo hu cang long, Li Mu Bai (Chow Yun-fat) e Yu Shu Lien (Michelle Yeoh), cujo amor sabido mas inconfessado é impossibilitado precisamente por esse código moral devido um acontecimento passado. Ang Lee já aflorara a questão do amor impossível que continuaria a explorar em filmes posteriores [nomeadamente Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005) ou Se jie (Sedução, Conspiração, 2007)] mas em Wo hu cang long esse amor conduz totalmente o filme. Por muitos icónicos momentos de acção que o filme tenha, Wo hu cang long é, diríamos, antes de mais um filme de amor romântico, daquele enorme, trágico e profundamente cinematográfico, que o filme dá em dose dupla. Além de Li Mu Bai e Yu Shu Lien, a outra história de amor impossível é a de Jen (Zhang Ziyi) e Lo (Chang Chen). Ela, uma menina de boas famílias manchu a caminho de um casamento arranjado que se movimenta secretamente no jianghu mentorada pela criada, e assassina procurada, Jade Fox (Cheng Pei-pei). Ele, um nómada de Xinjiang, chefe de um bando de bandidos para quem a liberdade da vida no deserto só faz sentido com ela. Um outro amor, o amor pela excelência – própria e dos discípulos – pode ainda descortinar-se nas relações que tanto Li Bu Mai como Jade Fox têm com Jen.
Há várias leituras que se podem fazer de Wo hu cang long, e, de facto, muitas foram feitas desde a estreia do filme. De filme feminista a um produto que vende descaradamente uma versão falsa da China a públicos ocidentais, Wo hu cang long, certamente impulsionado pelo seu fabuloso sucesso (que incluiu quatro Óscares e outras seis nomeações, caso raro para um filme rodado na China, interpretado por estrelas asiáticas e falado em mandarim), tem gerado inúmeras apreciações. Essa pluralidade de reacções é testemunho da riqueza do filme, um prodígio técnico (magnífica montagem, coreografias de lutas que mais parecem bailados, detalhado guarda-roupa, localizações e cenários extraordinários) e uma excelente história (Ang Lee é um excelente contador de histórias), aliado a uma exploração única das possibilidades de um cinema que problematiza e transcende barreiras nacionais.
É Wo hu cang long um filme chinês? Sim e não. Talvez melhor vê-lo como um filme chinês transnacional. Começando logo pela “China” reflectida no sotaque dos actores: do mandarim com toque cantonense de Chow Yun-fat – um dos maiores gigantes do cinema de Hong Kong – ao com sotaque de Pequim de Zhang Ziyi, passando pelo sotaque taiwanês de Chang Chen às deixas que Michelle Yeoh terá memorizado foneticamente, já que a actriz é Hokkien da Malásia e não era fluente em mandarim. A “China” do filme vai das montanhas de Wudang aos desertos de Xinjiang, passando pelo bulício das reimaginadas ruas pequinenses. Na “China” de Wo hu cang long cabe a acção popularizada por filmes de Hong Kong e os wuxia filmados na então ilha britânica e em Taiwan nos 1960s e 70s. Na “China” de Ang Lee as mulheres reclamam o seu lugar justo numa sociedade que as oprime (dirão os cínicos, a suprema fantasia?). Na “China” de Ang Lee os corpos voam e balançam nos ramos de bambu como pássaros. É falso? E quem disse que tinha de ser verdadeiro? É cinema. E é belo.
Wo hu cang long passa sábado, dia 28 de Junho, às 15h na Cinemateca Júnior