OS FILMES-FETICHE
A discussão foi aberta. Reuniu-se a uma mesa imaginária um bando de cinéfilos para discutir o que parece possível de se alastrar infinitamente sob todos os ângulos: a eterna relação entre cinefilia e fetichismo. As respostas chegaram em vídeo – assinadas por Pedro Treno, Luís Mendonça, Ricardo Vieira Lisboa, João Lameira, Bruno Leal e Carlos Carrilho – e com elas se inaugura no À pala de Walsh uma nova rubrica de Filmes-Fetiche. Sobre a mesa, solto algumas notas sobre o tema, convites possíveis à reflexão numa rubrica nascida para sempre renascer.
1. FETICHISMO & FEITICISMO
Começamos por desabotoar o ”fetichismo”, conceito intrinsecamente ligado à construção da modernidade. A origem etimológica da palavra francesa “fétiche’’ vem do português ‘‘feitiço’’ e foi inicialmente usada para referir a atribuição de poderes sobrenaturais a objectos inanimados envolvidos nos cultos religiosos da África Ocidental, e a outras práticas que incluem a divinização de animais e de fenómenos irregulares da natureza. É em 1756 que Charles de Brosses, membro da Académie des Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, apresenta pela primeira vez o termo derivado do português antigo “fetisso”, à procura de distanciar as sociedades iluminadas das sociedades primitivas, vítimas de superstição e de encantamento, numa obra com um título ilustrativo: Do Culto dos Deuses Fetiches ou Paralelo da Antiga Religião do Egipto com a Religião Actual da Nigritia (1760). Após extensa associação pela antropologia do conceito às sociedades ditas primitivas, o termo aparece pela primeira vez num contexto nosográfico de estudo das perversões pelo psicólogo francês Alfred Binet. Em O Fetichismo no Amor (1887) descreve como patalogias os modos de investimento libidinal em objectos inanimados e partes do corpo. Aqui se explicita a continuidade da conotação negativa na utilização do termo, neste caso como estádio regressivo em relação a um ideal de maturidade sexual e de comportamento social esperado, demonstrando como, no contexto iluminista, as primeiras bases de legitimação clínica da psicologia se propõem ao combate de um suposto ‘‘pensamento primitivo’’, que torna o sujeito menor ou ‘‘tribal’’, como escreveria o neurologista português Egas Moniz em A vida sexual. Neste contexto, como dirá Hartmut Böhme, tudo se passou como se o fetichismo fosse “a África no sujeito” e os perversos, “selvagens entre europeus”.
2. REVOLUÇÃO SADE
“Por muito que se castigue a língua, a extensão da confissão, da confissão da carne, cresce constantemente.” Michel Foucault em História da Sexualidade I
“O espírito mais livre que jamais viveu.” Apollinaire sobre Sade
“Sade, que se divorciou da humanidade, só teve, na sua longa vida, uma ocupação que o absorveu realmente – a de enumerar até à exaustão as possibilidades de destruir seres humanos, não só de os destruir como de apreciar a consciência da sua morte ou do seu sofrimento.” Bataille sobre Sade
O legado incendiário de Marquês de Sade (1740-1814), em ímpeto oposto ao racionalismo iluminista da sua época, acrescenta à terminologia da psicologia o conceito de sadismo – a perversão de ter prazer na dor física ou moral de parceiros. Mas o radicalismo da sua filosofia é, em suma, um trabalho de direito à liberdade que caminha através da negação extrema da sociedade: um desprezo sistemático pela existência de leis, de estado, de direito à propriedade, e de convenções instituídas como a moralidade social e a auto-análise cristã. Na edição holandesa de Juliette, a obscenidade das gravuras pornográficas que ilustram a obra descreve a vontade do seu autor, Claude Bornet (1733 – 1804) de sublinhar o prazer da explicitação – o gesto de tornar visível a fantasia que o cinema também reclamará para si. Isto talvez explique as inúmeras adaptações de Sade ao cinema, principalmente por Jesús Franco, mas também por Pasolini, Buñuel, Skorecki, entre tantos outros. Apesar da proibição das obras de Sade, à época perseguido pela monarquia, a arte pornográfica que Bornet acrescenta ao texto não vem apenas tornar manifesta a existência encoberta e marginal das práticas narradas e vividas pelo próprio Sade, mas ainda sublinhar o carácter material do livro enquanto possível objecto-fetiche. E a excitação secreta da transgressão que decorre da posse do objecto moralmente condenável, encontrará correspondências nos lugares secretos dos cinéfilos – se é inerente ao homem a vivência em sociedade, todos os constrangimentos aí implicados não se coadunam com liberdade natural do espírito e o desejo de escape é tão privado quanto universal (como naquela cena em Contes Immoraux de Walerian Borowczyk (1974), em que a jovem menina católica abre o livro ilustrado de Sade na igreja). Esta crueldade egoísta de Sade, que Pierre Klossowski identifica como um niilismo fundamental, é a mesma base insubmissa em que o cinema se afasta de realismo e se permite construir todo o tipo de mundos invertidos e de fantasias onde tudo é em absoluto possível. A recusa de um certo cinema em participar da realidade (alheio à política, à moral, à catarse) de onde provém transforma-o num lugar de fuga, que só a um bando de párias fetichistas poderia interessar.
‘‘Alguns espíritos abrasam-se com a ideia de derrubar de cabo a rabo os valores mais estabelecidos.’’ Georges Bataille, em O Erotismo
3. SADO-MASOQUISMO E AS RELAÇÕES DO CAPITALISMO
“Não podemos deixar que os terroristas nos impeçam de consumir.” George Bush, Setembro, 2001
É na sua obra nuclear, O Capital (1897), que Marx desenvolve o conceito de Fetichismo da Mercadoria, a partir do facto de que a troca de mercadoria é decorrência indissociável das relações sociais e um elo de mediação entre elas, evidenciando o fetichismo como uma demonstração de valorização irreal e infundada com base numa relação imaginária de valor que “desumaniza’’ a mercadoria e lhe concede uma carga simbólica autónoma, assim obliterando o princípio de base de que esta é produto de força de trabalho humana. Num presente em que sociedade ocidental e sociedade de consumo são sinónimos, não pára de crescer o massivo aparato em que a publicidade explode para elaborar artificialmente o significado de cada gesto de consumo, fetichizando produtos e despertando faltas imaginárias no consumidor manipulado. É tão auto-evidente o sadismo desta ambição do ocidente de conquistar subrepticiamente o desejo de posse no passivo, de alargar e submeter os novos mercados ao seu poder de influência como o hedonismo do que se move pelo desejo de ter. A dinâmica sado-masoquista está tão presente em cada pilar ideológico do capitalismo liberal que sublinhar-lhe as vocações monopolizadoras, hegemónicas e imperialistas, e as respectivas consequências junto das sociedades e indivíduos a elas submetidos, facilmente se tornaria num exercício lúbrico de obscenidade à escala política (deixaríamos estas sátiras junto dos rasgos de Žižek ou João César ou Bocage.)
“Estamos completamente enfiados na merda, e sabemos. Mas secretamente, não acreditamos realmente que possamos cair.” Slavoj Žižek no documentário Marx Reloaded (2011)
4. SOCIEDADE DE CONSUMO E CINEMA
Como meio de comunicação (para massas) da sociedade de consumo em que se insere, o cinema pode ser uma mercadoria cultural e não está excluído dos circuitos de consumo, participando enquanto veículo de signos, símbolos e representações do processo de significação cultural. O mercado mainstream do cinema, como qualquer outro que dirija produtos às massas, oferece como valor a integração num mundo simbólico comum. Numa esfera social tão centrada, à escala global, nos processos cíclicos de produção e consumo, o desejo colectivo por objectos materiais não sabota o desenvolvimento cultural em prol de uma realidade artificial? Arendt escreve acerca de um “nivelamento de todas as actividades humanas até ao denominador comum de assegurar as necessidades da vida providenciando a sua abundância”.
“O objecto/sistema publicitário consiste num sistema de significação mas não de linguagem, pois falta-lhe uma sintaxe activa : tem a simplicidade e a eficácia de um código. (…) É, sem dúvida, a mais empobrecida das linguagens: cheia de significação e vazia de significado. É uma linguagem de sinais.” Jean Baudrillard
Se a hegemonia económica não é apenas um domínio dos meios de produção, mas principalmente um domínio dos meios de produção de símbolos e de consumo, o domínio das salas pelo cinema americano começou no pós-segunda guerra. E é o cinema americano que inventa o star system, inserindo os actores num pedestal de visibilidade social onde todos os dados relativos a todas etapas da sua vida são comercializados. Não por acaso, a invenção do close-up é precoce (atribui-se a David W. Griffith) e segue o desenvolvimento do método analítico freudiano – sabendo-se que o inconsciente fala à superfície do corpo, aqui estava a técnica capaz de aproximar o espectador destas colossais figuras que saíam do ecrã negro, belas e na proporção de estátuas sobre-humanas. No glamour dos seus halos, as stars transformam-se em ícones e a imprensa cor-de-rosa em mitografia da contemporaneidade. ( Os ícones da sociedade são as suas mercadorias, lembra Carpenter em They Live). Junto do espectador, rostos e corpos desconhecidos tornam-se familiares. Os seus nomes evocam o prazer das expressões que já se conhecem de cor, entre memórias de demandas heróicas, aventuras, fantasias, mundos novos, momentos ideais. Os close-ups, enquanto porta mais imediata do cinema para uma experiência de comoção com o semelhante humano, tanto atraem a adoração quanto aproximam a atenção dos mais mundanos sentimentos que por todos os rostos passam. (E às vezes, muito secretamente, eis que o cinéfilo, de tanto ver, acha-se a desejar profundamente ser visto de volta.)
“O close-up não arranca o seu objecto do cenário de que faz parte, (…) pelo contrário, torna-o abstracto em relação às suas coordenadas espacio-temporais, o que significa que o faz evoluir até ao estádio de Entidade”. Gilles Deleuze em Cinema 1: Imagem-Movimento
“Lembro-me que em 1964 conhecemos Cukor e confidenciámos-lhe que Wind Across the Everglades (A Floresta Interdita, 1958) de Nicholas Ray era um dos mais belos filmes americanos. Ele rebentou num riso onde se podia ler todo o desprezo que ele tinha por aquele filmezinho. Ficámos bastante feridos, mas nunca mudámos de ideias.” Louis Skorecki ”
“O cinema é um fenómeno idealista.” André Bazin
Quanto à cinefilia e aos cinéfilos, não me atreveria a definições, e elas pouco importam. Para ilustrar a correspondência que aqui nos traz, restam as suspeições – a que não escapo – que denunciam na índole cinéfila os traços do fetichismo:
Uma fantasia. Chegue depressa a ficção ao desejo de ir submerso pela mão de um impostor que se é, como quando se está colado à pele do protagonista de um bom romance. Não que o espectador habite um lugar de evasão – mas uma relação mediada com o mundo, na qual ele está em controlo. Num misto de fascínio e medo da sua própria humanidade, o voyeurista estuda-se no quadro a que assiste, como se se visse ao espelho.
Uma marginalidade. Não há um cinema, há vários, e uns derrubam outros. A repressão sempre foi pródiga e, à margem do domínio homogéneo do mainstream, brotam lugares para todas as ilegitimidades. Tudo o que a hipocrisia da sociedade baniu dos seus códigos em prol da ordem, o cinema abre para ensinar como todos os prazeres reprimidos estão fundamentalmente inscritos no desejo colectivo. Hitchcock sabia-o e não teve de filmar uma única cena de nudez para criar alguns dos filmes sexualmente mais explícitos da história do cinema. Freud soube sublinhar o que qualquer bom perverso nos diria – o que é mais excitante é o que não é visível. (Que, afinal, o joelho da Claire é sinédoque para o seu corpo todo…)
Um voyeurismo. De lá se vai quieto no escuro o perverso a deixar cair o filme sobre os olhos, uma e outra e outra vez – o olhar obsessivo sobre o objecto de desejo e tudo o que o rodeia está na cinefilia como em qualquer fixação fetichista. Se o personagem de um filme é um voyeur (Psycho, Peeping Tom, Blow Up, Rear Window…), ouve-se de imediato que é o cinema o que ali se refere, recordando o bando de fantasistas que substituem os olhos por máquinas-de-filmar.
Um coleccionismo. Ver, mapear um sistema de nomes por génese própria, reconhecer paternidade a uns e desprezar outros, revestir de auras magníficas objectos que mais ninguém entenderá. A cinefilia é reprodutiva, traduz-se em renovação e tende a ampliar-se ao colectivo. Sob o signo da era da hipercomunicação, as possibilidades de aceder à história do cinema à distância de um torrent ou de um streaming multiplicam exponencialmente as comunidades cinéfilas: o acesso ao consumo de filmes cresce quantitativamente e a experiência diversifica-se.
Uma nostalgia. Viagens aos tempos que se passaram, e aos que nunca se passarão. Serge Daney acerta ao descrever-se como um cine-filho, evocando a descedência em que o cinéfilo se inscreve, coordenadas em mudança a partir das quais se posiciona para chamar ao presente o passado que para si deseja. Daney ainda disse, em Itinéraire d’un cine-fils, que o “cinema era a infância”, tal é a intensidade, tal é a liberdade, tal é a seriedade com que não se faz parte do mundo.
Um ritualismo. Um ”país chamado cinema” (a bela expressão de Daney que outro grande cinéfilo, João Mário Grilo, pede emprestada) é uma pátria a que se volta pelo ímpeto de sempre ver.
Uma sacralização. A disponibilidade inefável para a idolatria e a capacidade de encontrar manifestações de autenticidade, pureza e verdade nos objectos idolatrados – num ritual de adoração primordial e directa, sem o amparo de justificações racionais ou lógicas – aproxima a cinefilia da concepção primodial de fetichismo, descrevendo o fetiche como manifestação fundamental de uma individualidade.
Um desejo de posse. Se qualquer paixão transporta uma virulenta vontade de posse, não é comum que se acendam entre os cinéfilos discussões que são afinal tentativas de provar o que é amar certos filmes da ‘‘maneira certa’’? Provas disso são textos como Cinephilia as a war machine de Adrian Martin ou o famoso Contra a nova cinefilia (1977) de Louis Skorecki. Uma anarquia. Contra o tempo, contra o espaço, um filme age como uma vingança contra o presente – e só pela inserção na descontinuidade da abstracção chegará o prazer.