Todos os anos a Feira do Livro recebe-me, e aos meus tostões, para um passeio deliciado por entre banquinhas e muitos livros (e poucas compras, e nada daqueles cachorros quentes). Há uns anos passeei-me por lá num sábado, que me recordo ter sido muito molhado, e, passando na banca da Babel, que aglomerou a antiga editora Guimarães, vi a reedição dos livros de Agustina Bessa-Luís, entre eles A Corte do Norte. Achei tudo caro de mais para o meu desejo de pechinchas. Feita a volta decidi-me regressar à dita banca e reconsiderar. O preço era o mesmo e a minha avareza continuava igual, no entanto, numa prateleira ao lado estava o argumento de A Corte do Norte (2008), que João Botelho editou com o apoio da Câmara do Funchal, por apenas dois míseros euros. Sendo tão grande a pechincha compensou a compra do romance de Agustina e saí da Feira com dois livros e menos uns cobres.
Li o livro nesse Verão e soube-me por mil, mas não é isso que aqui me traz. O propósito deste texto é a já referida adaptação de João Botelho, mas conhecendo a obra do realizador sabe-se que o texto tem importância maior, daí que me vá demorar um pouco sobre as palavras de Agustina. Qualquer obra da nonagenária escritora é de difícil acesso, quero com isto dizer que se nos convida a entrar também nos pede que montemos caminhos tortuosos para dela nos podermos despedir. A Corte do Norte é possivelmente uma das suas obras mais enigmáticas. Conta a história de cinco gerações todas em volta de uma mulher, ou melhor, da morte de uma mulher. Tal criatura é Emília de Sousa, ou Rosalina de Sousa, ou Rosalina de Barros por casamento, ou baronesa da Madalena do Mar, ou boal de cheiro (uma casta de uva que também se chama marota), ou cabrita. Percebemos portanto que tal criatura não é una, não tem arestas bem definidas, não é uma personagem de corpo inteiro, é uma personagem de muitos corpos. Essa é talvez a característica fundamental da escrita de Agustina, o discurso do inacabado, o estilo non finito. O termo, informa-nos Elsa Pereira no artigo A Corte do Norte, de Agustina Bessa-Luís, ou o Romance da Saudade, foi introduzido pela própria Agustina a propósito de uma comparação entre o trabalho de Barnardim Ribeiro e as pinturas de Michelangelo na capela Sistina e que corresponde ao aspecto inacabado da escola florentina que parece ser absorvido para a escrita do referido escritor. A dispersão temporal de A Corte do Norte, e a dispersão das personagens e a recusa da linearidade são os aspectos mais evidentes desse discurso inacabado nesta obra da escritora, que adicionam enigma ao enigma que a história já esconde.
Note-se no entanto que esta estética do inacabado é procurada pela própria Agustina e nada tem que ver com aquela que se associa a obras como o Requiem de Mozart, o Homem Sem Qualidades do Musil e por aí fora. Como refere João Bénard da Costa a propósito de We Can’t Go Home Again (1973-2011), nessas obras o inacabamento esconde uma dúvida entre a falta de apuramento e a impossibilidade de ir mais além. Nada disso acontece em A Corte do Norte e muito menos acontece em A Corte do Norte – onde, de tudo o que tem o livro, a estética do inacabado é aquilo que menos se vê no filme.
E como o artigo de Elsa Pereira é tão explícito não posso deixar de o transcrever aqui em parte: “Quase todos os estudos desenvolvidos em torno dos romances de Agustina Bessa-Luís dão conta de uma certa dificuldade em designá-los como tal, na medida em que, embora haja uma acção, dificilmente se poderá falar aqui de uma intriga propriamente dita, pois ‘para além da sucessividade e do consequente enquadramento temporal dos eventos, esta última implica duas características específicas: a tendência para apresentar os eventos de forma encadeada […] e o facto de tais eventos se encaminharem para um desenlace’, o que manifestamente não acontece nesta escrita, marcada sobretudo por processos como ‘a repetição e a visão directa e imediata, o método cinematográfico do flashback, e a prospectiva implícita.'”
Logo é compreensível que os escritos de Agustina sejam, dos autores nacionais, aqueles que mais vezes se viram adaptados ao cinema, ainda que quase todas essas adaptações venham pela mão de Manoel de Oliveira. Isto porque a própria escrita da autora parece trazer em si métodos e formalismos próprios do cinema. Não só porque o cinema é a arte do século e por isso (de)formadora das outras artes mas porque o cinema é ele mesmo a ponte humana para o mundo do sonho e é esse mesmo mundo que Agustina procura atingir.
Note-se no entanto que todo o cinema de Oliveira funciona no sentido da preservação do texto, e daí que se compreenda a a teatralidade do seus filmes e o alheamento dos seus actores, porque qualquer emoção esconderia as palavras ou passaria-as para um plano outro que não o primeiro. Botelho é um fiel oliveiriano e o seu cinema vive dessa constante homenagem, mas há muito que se libertou de tal peso e é com pena que leio as comparações entre os dois, quase sempre injuriosas para o segundo. Se o cinema de Oliveira fixa o teatro através dos mecanismos da câmara, o cinema de Botelho é (e isto poderá parecer redundante) profundamente cinematográfico. Em ambos a palavra é objecto maior (nomeadamente através da voz off do narrador, mas também pelo prazer infinito que parece dar aos dois a transferência da letra escrita em letra filmada e, como salientou Mário Jorge Torres, a abertura revela desde logo que o que estamos a ver é um objecto independente do livro, logo no primeiro plano do filme, Botelho apresenta o livro de A Corte do Norte com uma dedicatória a José Álvaro Morais – que foi o primeiro a escrever uma adaptação ao romance e sobre a qual Botelho se baseou – assinada pelo próprio Botelho, logo ali está feita a marcação de territórios, e com esse mesmo plano faz-se a homenagem ao livro e ao colega), mas para o segundo a câmara toma igual lugar com o texto e os travellings exaltam cada uma das palavras, e cada um dos olhares. E portanto não é só a sombra de Oliveira que paira sobre o filme, é também a de Visconti – veja-se a cena de baile.
Mas dou a palavra ao próprio João Botelho: “E como a imaginação da escritora é fértil, complexa e inesgotável tive necessidade de expor a minha adaptação por ordem cronológica para conduzir suavemente as almas e os espíritos através de um puzzle misterioso e magnífico. Muitos diálogos são transcrição directa dos de Agustina Bessa-Luís para A Corte do Norte. Outros, são construídos a partir do discurso indirecto de Agustina. Outros, ainda, são inventados para que a narrativa seja fluída no filme. A voz da Narradora corresponde, para mim, à voz da autora do romance.” Note-se portanto estes dois últimos casos: Oliveira dificilmente inventaria diálogos para tornar a narrativa mais fluída (contrariar o inacabado) – por exemplo, os diálogos de Amor de Perdição: Memórias de uma Família (1979) são apenas e só transcrições do discurso directo da obra de Camilo, nunca se torna directo o indirecto ou se inventa diálogos para conduzir suavemente as almas -, segundo, Botelho imagina um género na voz do narrador – trata-se de uma narradora -, portanto dando voz (e também corpo, ainda que invisível) às palavras de Agustina sem esquecer que este é um livro e um filme de mulheres.
A esse respeito encontramos nas páginas de A Corte do Norte a chave para a compreensão dessa natureza feminina do texto, das personagens e da própria escrita. Cito: “Falar de mulheres é sempre partir do nada. Nada é sua história, pelo menos na visitação dos seus inquisidores que são os homens em geral. Alguns, excelentes de inteligência, mas que tratam a mulher como um homem como eles, mas castrado. No discurso que Goethe pronunciou sobre Sakespeare, disse esta coisa extraordinária: ‘Eu sou tudo para mim mesmo.’ É certo. Uma mulher só pode ser um homem delinquente ou falhado, para o homem. A própria mulher não vê nela, socialmente e familiarmente, mais do que isso.” Como pode então um homem filmar uma história de mulheres, partindo de um texto feminino na sua essência sem cair em maneirismos?
O primeiro golpe de asa de Botelho é o de perceber que só poderá dar as cartas se as baralhar primeiro e por isso oferece a multiplicidade das personagens femininas do filme através de uma só actriz, Ana Moreira, que faz da dita Rosalina/Emília de Sousa, mas também de Águeda e Rosamund e da princesa Sissi, todas muito parecidas no livro e todas iguais no ecrã. Este sentido de concentração demonstra logo que a obsessão familiar em torno do funesto acidente (?) passa para o próprio filme onde é a mesma actriz – e portanto o mesmo corpo – que revolve sobre os mesmos assuntos, e mais, ao fazer confluir num só corpo vários, Botelho afasta de si o peso do feminino, como que se escuda dessa imensidão ao colocar em cena uma Ana Moreira que atrai para si (e em si faz convergir) toda a feminilidade do texto.
Mas se referia há pouco que sobre o filme pairavam sombras, não o fiz por acaso, A Corte do Norte é um filme de sombras (e também um filme assombrado – pela memória de Álvaro Morais?). Talvez seja essa a característica que mais se salienta, aquilo que logo reparamos quando o vemos: os filtros e as imagens obscurecidas e a iluminação marcadíssima – estilo que marca de certo modo a forma como Botelho encarou o digital: se o mecanismo é moderno, então que tudo se torne barroco. Nesse sentido a trilogia dedicada a Trás-os-Montes e mais recentemente Filmes do Desassossego (2010) são exemplos cabais deste trabalho quase primitivo da cor e da luz.
A esse propósito destaco um plano maravilhoso: segundo a história de Agustina, Rosamund tinha o hábito de olhar para o quadro da decapitação de Holofernes de Caravaggio da mesma forma de Rosalina fazia. Isto diz-nos a narradora, e Botelho filma-o assim; Ana Moreira/Rosamund olha para o quadro, contracampo do quadro, a iluminação muda e passa a haver apenas um foco localizado, que percebemos ser de um castiçal, e a câmara recua e estamos subitamente com Ana Moreira/Rosalina um século antes a olhar a dita tela. É através da iluminação que se faz o flashback e não através da montagem. Um outro plano digno de igual atenção: Rosamund passeia-se pelos trilhos da ilha da Madeira (como a bisavó fazia) e parece-lhe ver um vulto que sobe uma escadaria que dá para uma falésia, ela sobe-as e lá no topo, vendo o precipício, desequilibra-se (o fado de Rosalina?), mas desta vez não cai como a sua antecessora. O que acontece é que durante o desequilíbrio a imagem clareia-se, e passa das cores saturadas que pintam a imagem desde o início para um branco muito claro, como se do fundo da falésia viesse uma luz que empurrava Rosamund de volta para a sua posição, de volta para a vida. De novo uma estratégia da câmara, de novo uma utilização da iluminação age sobre as próprias personagens e sobre a própria estrutura da narrativa – é o jogo entre luz e sombra (e logo o cinema) que salva a menina de sofrer o mesmo desaire que a obceca.
Mas se a câmara impede que tudo se repita, a narradora vem no fim informar-nos que Rosamund casou e teve três filhas, uma delas muito parecida com a sua trisavó Rosalina de Barros (ou a baronesa de Madalena do Mar, ou a boal de cheiro, ou a cabrita, ou com Emília de Sousa, a grande actriz), garantindo que a história não acaba ali, aliás, a história nunca acaba, é o discurso do inacabado.