Akibiyori (O Fim do Outono, 1960) pode não ter recebido a aclamação generalizada de Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) mas reposições recentes ajudarão a compreender porque é não só um dos filmes mais paradigmáticos de Ozu como também, possivelmente, o mais belo dos que foram realizados pelo mestre japonês.
Após os créditos iniciais, Akibiyori abre com um plano da Tokyo Tower, semelhante a uma Torre Eiffel vermelha e branca cuja construção terminara dois anos antes da data de produção do filme. Na altura, esta torre de comunicações era a mais alta estrutura do Japão. Não deixa de ser curioso observar como um realizador associado a um cinema que alguns consideram profundamente tradicional abra este filme com um símbolo de vanguarda e modernidade. Mas tal é seguido por um plano de uma mulher anónima e uma menina (talvez uma avó e uma neta) numas escadas, uma imagem de família intemporal. Quer um, quer outro, estes planos passam despercebidos mas a elegante referência ao que se vai seguir é digna de nota. No resto do filme assistiremos a mais uma das histórias familiares de Ozu (familiares porque habituais no seu cinema e porque centradas numa família). Numa sociedade em transição, uma filha recusa casar-se para poder continuar a viver com a mãe viúva. Há inúmeras variantes desta história na filmografia de Ozu mas talvez nunca ela tenha sido filmada com tanta perfeição: a graça das personagens secundárias, a esperança hesitante no crescimento, a pungência da tristeza da separação, tudo parece apurado num pico de excelência.
Ayako (Yoko Tsukasa) tem 24 anos e toda a gente à sua volta concorda que está na altura de se casar. Há pelo menos um pretendente altamente recomendado de quem Ayako até vai gostar (significativamente, o seu primeiro date é uma ida ao cinema). Mas Ayako não se quer casar – ou pelo menos não ainda. É a única companhia da mãe viúva, Akiko [a magnífica Setsuko Hara, colaboradora habitual de Ozu, que interpretara um papel análogo de filha que recusa o casamento em Banshun (Late Spring, 1949)] e não a quer deixar sozinha. É mais do que um sentimento de dever. Há ali uma cumplicidade silenciosa que é evidenciada nas referências dolorosas (dolorosas mas ditas a sorrir, como deve ser no Japão do cinema de Ozu) à “última vez” que as duas poderão estar juntas assim. Akiko sabe que Ayako tem que se casar, por muito que esse marco de crescimento a entristeça, mas a filha hesita. Os amigos do falecido marido de Akiko desenham então um plano que julgam de sucesso infalível: para convencer Ayako a casar-se, primeiro têm de arranjar um segundo casamento à mãe, e um dos membros do grupo que é viúvo parece ser o candidato ideal.
As estratégias de matchmaking, acompanhadas das reminiscências de adolescência dos amigos – que desde a juventude estão platonicamente apaixonados por Akiko – proporcionam alguns dos momentos mais divertidos do filme. E Akibiyori é tão genuíno no seu humor como é na sua dor, que embora sejam presença concomitante nas obras mais conhecidas de Ozu atingem aqui um grau incomparável de sublime.
O grupo de amigos protagoniza algumas das cenas mais emblemáticas no que toca à representação no filme de uma noção de nostalgia, nostalgia pelo passado que é no fundo nostalgia pela juventude. Isso é notório nas evocações das suas estratégias falhadas para conquistar Akiko quando eram jovens (ela era filha de um boticário e eles compravam imensos medicamentos) mas também está patente nas próprias lembranças de Akiko, que em certas alturas evoca o marido e seu passado conjunto. Se a velha geração relembra com aceitação melancólica o que passou, a nova geração abraça o futuro com entusiasmo (só Ayako o faz com relutância ao início). Isso traduz-se nas joviais saídas de hiking dos colegas da empresa onde Ayako trabalha, nas menções dos vários filhos dos amigos aos seus planos para relações – onde o confronto geracional é mais evidente – em cenas que rimam com as de Higanbana (A Flor do Equinócio, 1958). O contraste entre mães e filhas (já que os pais vestem à ocidental) é ainda patente no vestuário, as mulheres mais velhas usando roupas típicas japoneses como kimono e as jovens roupas ocidentais mais contidas (saias e vestidos mais formais) ou mais exuberantes [a camisola angorá cor-de-rosa de Yuriko (Mariko Okada), a amiga jovial de Ayako]. Este confronto geracional não tem propriamente episódios mais graves como em Higanbana mas está lá. Um dos momentos mais deliciosos do filme inclui uma conversa assertiva entre Yuriko e o grupo de amigos que tenta casar Ayako em que esta assume um tom de desembaraço e autoconfiança impensáveis para os ideais de mulheres silenciosas e submissas no Japão (de que, de certa forma, Akiko é um exemplo).
O quarto filme a cores de Ozu, Akibiyori é um prodígio de fotografia, com lindíssimos vermelhos e verdes como nunca os vimos. Da mesma forma, os típicos planos de Ozu de espaços interiores vazios (nomeadamente dentro de casa ou nos corredores de empresas), que muitas vezes marcam a transição de planos, atingem aqui um equilíbrio notável. Também as paisagens habitadas, como os restaurantes, o telhado onde os empregados relaxam em intervalos, a linha férrea longínqua (não é a primeira vez que os transportes ferroviários têm relevância nos filmes de Ozu mas em também em Akibiyori “ver passar os comboios” tem momentos de difícil superação) pintam frescos do Japão em transição do pós-guerra (não diremos moderno porque ideias de modernidade no Japão serão bastante anteriores ao final da Segunda Guerra).
Com um elenco de habituais de Ozu que em muito contribuem para o tom de familiaridade com que vemos e revemos Akibiyori, o filme não é apenas um marco do cinema deste autor e do cinema japonês. A melancolia que atravessa este retrato de crescimento tem uma força universal, capaz de comover espectadores para além de limites de época ou país. Podem ser japonesas as canções das estudantes em viagem de despedida que ecoam numa cena do filme mas todos nós já ouvimos a melodia triste do tempo que passa. Em Akibiyori podemos, por breves instantes, vê-la também.