Love is a miracle. It’s like a birthmark. You can’t hide it. When you see two people in love, somehow you feel a little bit of it yourself. (Blume dixit)
Onde se lê Blume in Love (Amantes em Veneza, 1973) bem se poderia ler “Paul Mazursky in Love”, não fosse este um filme que revela um Mazursky – falecido em Junho último – completamente “in love” pelo cinema (europeu), pelas mulheres, por Venice (a americana) e por Veneza (a italiana), pelos sixties, pela middle class americana, pelos seus actores, enfim, e muito ternamente, pelas pessoas nas suas idiossincrasias mais profundas e mais comezinhas.
Blume in Love é, por isso, um filme apaixonante e apaixonado – e se atrás colocámos o cinema como um dos objectos dessa paixão, não é por acaso: o filme abre e fecha a citar, com ternura e chalaça, Morte a Venezia (Morte em Veneza, 1971), mais concretamente, a relação homoerótica que perpassa o filme de Luchino Visconti. E, em campo italiano, o desenlace feliz – e altamente improvável – que Mazurksy reserva para Blume e Nina (George Seagal e Susan Anspach, respectivamente, em duas interpretações deslumbrantes e comoventes), se bem que despido da ressonância religiosa, não deixa de evocar o milagre rosselliniano de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954). Retomando a citação viscontiana, a diferença é que Veneza, aqui, serve não de catalisador da morte, mas, pelo contrário, da vida: na Veneza de Mazursky, o amor de Blume e Nina está absolutamente “em flor” na sua lua-de-mel (de resto, “Blume” é um nome que, ainda que involuntariamente, só lembra flores, seja no alemão, seja no inglês de to bloom) e florescerá novamente, depois do divórcio, também em Veneza, com que o filme encerra. E se nos referimos em termos referenciais ao início e ao fim do filme, importa fazê-lo também em termos eminentemente cinematográficos: Mazursky abre e termina o filme com um belíssimo e apertadíssimo plano-sequência da fachada de um edifício majestoso, velho e carcomido, naquele que é um elogio, se assim podemos dizer, à “beleza das coisas antigas”, no sentido em que estas nunca desaparecem verdadeiramente, tal qual, afinal de contas, o amor de Nina e Blume, que apreciamos, no momento da reconciliação (e da sua renovação, a do amor), como um bom vinho velho. Na verdade, o divórcio parece, de certo modo, que “tinha” de acontecer – sobretudo para Nina –, para os fazer crescer, conhecerem-se melhor (a si próprios), e, depois sim, já pessoas diferentes, os fazer amar-se… melhor.
Falámos do amor por Venice e Veneza – como o amor por duas mulheres – e essa linguisticamente engenhosa dualidade (no inglês, Veneza igualmente se pronuncia e escreve “Venice”) tem correspondência na interessante – porque confusa – noção de tempo do filme, fazendo das cidades americana e italiana o seu passado e o seu presente, respectivamente. Durante grande parte do filme – que se inicia com um Blume, barbudo e desleixado, chorando o passado em Veneza pelos erros que o fizeram perder a mulher da sua vida (uma traição pateta com a secretária, que Nina presencia no próprio quarto do casal) –, o tom reinante é fatalista (que indicador mais explícito da noção de tempo que o… destino?), no sentido em que Blume nos remete (em racconto), através de flashbacks, para o passado, para o que “correu mal” em Venice. O que não sabemos, no entanto, e é esse o factor-surpresa que destabiliza a timeline do filme, é que Blume se encontra, nesse preciso momento em que nos narra os acontecimentos, num “período de teste”: Blume deslocou-se a Veneza porque Nina, ponderando voltar para si novamente, lhe pede algum tempo de isolamento para reflectir. Nesta “surpresa” acabando por transparecer uma das marcas da própria personalidade de Blume, a saber, o inquebrantável optimismo: pese embora a dor profunda que a perda de Nina lhe traz, Blume jamais se desliga da vida, jamais se entrega por completo à tristeza, mesmo que para isso se passeie, por vezes (muitas), como um pateta alegre. É por isso que, à sua maneira, Blume in Love não deixa de ser um filme leve (no melhor sentido possível), não se entregando a fatalismos dramáticos fáceis – aliás, esta parece ser, a bem dizer, uma das grandes marcas do cinema mazurskyano, i.e., a capacidade de tratar temas pesados com graça (são muitos e bons os misunderstandings e as gafes) e candura, à semelhança de um Woody Allen. A love story for guys who cheat on their wives foi, de resto, a sinopse do próprio Mazursky para o filme.
Tal como noutros filmes de Mazursky – casos de Bob & Carol & Ted & Alice (Bob, Carol, Ted e Alice, 1969), An Unmarried Woman (Uma Mulher Só, 1978) ou Willie & Phil (O Trio do Amor, 1980, um remake do ménage à trois de Truffaut) –, Blume in Love faz um relato “em cima dos acontecimentos” da década de sessenta, ou seja, de um tempo em que a América conservadora se admirava (confrontava) com toda uma geração jovem que descobria a sexualidade e a libertinagem, o rock psicadélico, as drogas, as filosofias new age (vejam-se as primeiras cenas de Bob & Carol…) e, sobretudo, com uma enorme curiosidade pela autodescoberta individual, como disso é paradigmática a intensa – e, por isso, também cómica – viagem de introspecção que, após o divórcio, Nina empreende ao longo de quase todo o filme, pelo meio apaixonando-se por Elmo, um músico amador sem eira nem beira (nada mais nada menos que Kris Kristofferson, que assina mesmo alguns dos scores do filme, lado a lado com a Tristan und Isolde de Wagner ou a voz de Otis Redding) e rejeitando as convenções da sociedade (a má consciência burguesa é muito astutamente apanhada na money-guilt-trip que acomete Nina ainda antes do divórcio). Este air du temps sócio-cultural é ainda completado por alguns apontamentos sobre o Welfare State americano (se é que lhe podemos chamar assim), seja através da personagem de Nina, uma social worker empenhada (é, aliás, no desempenho destas funções que conhece Elmo), seja mediante a captação de uma greve de trabalhadores (curiosamente, nenhuma alusão é feita à guerra do Vietname).
Quem já viu An Unmarried Woman, um dos melhores e mais premiados filmes de Mazursky, não poderá deixar de notar como esse filme acaba por ser o contra-campo deste Blume in Love: ali, uma mulher emancipada, mas “de família”, era abandonada pelo marido (que a traía) e iniciava um difícil período de depressão e superação; aqui, é o homem o elo mais fraco, aquele que, deixado na valeta, se debate para vir à tona. Une-os o tal optimismo, a capacidade de, no escuro, conseguir entrever sempre o bright side of life (nas coisas mais prosaicas: nos amigos, na comida, na música, no sexo) e dele retirar aspectos positivos. Mazursky não o filma – ao optimismo –, porém, com ligeireza (que é diferente de leveza), prova de que a “happiness” do “end” pode ser tratada de modo honesto e apresentar matizes diversas – em An Unmarried Woman, Erica (maravilhosa Jill Clayburgh), ao contrário do que era expectável (ao menos nessa convencionada happiness hollywoodesca), não vai viver com o pintor que recentemente conheceu e com quem, aparentemente, teria tudo para ser feliz (a questão é essa: não tinha, estava na cara que era apenas um rabo de saias que se embevecia por qualquer mulher bonita à primeira para a largar à segunda).
Pouquíssimo conhecida entre nós, e mesmo underrated nos EUA, a filmografia de Paul Mazursky – a quem já chamaram, passe o exagero, o “Fellini americano” (é ver o final de Bob & Carol… e o argumento, muito otto e mezzo, de Alex in Wonderland (Alex no País das Maravilhas, 1970) – é daquelas que, devidamente recuperada (para fazer jus ao nome desta rubrica), deixará – não temos dúvidas – muito boa gente tal qual o seu criador: apaixonada pelo cinema e pelas pessoas.