Exibido na secção Fora de Jogo, Al doilea joc (O Segundo Jogo, 2014) é um exercício radical no seu gesto, uma obra difícil de classificar. O novo filme de Corneliu Porumboiu apresenta-nos uma gravação em VHS de um jogo de futebol entre duas equipas romenas, um derby de Bucareste, entre o Steaua e o Dínamo, disputado em 1988, pouco antes do fim do regime de Ceausescu, comentado por Porumboiu e o seu pai, o árbitro desse jogo. Exibindo o jogo na íntegra, é como assistir a um filme com faixa de comentário por cima, enquanto Porumboiu e o seu pai revisitam as histórias à volta do jogo, como desculpa para falar sobre a Roménia de então, através deste jogo que surge aqui como relíquia, recordação de um outro tempo. É também o revisitar de Porumboiu do seu primeiro filme, A fost sau n-a fost? (12:08 a Este de Bucareste, 2006), maravilhosa fábula em que um grupo de personagens reunia-se à volta de um programa de televisão para discutir os primeiros momentos da revolução romena, para tentar perceber se esta realmente aconteceu. Em Al doilea joc, há algum fascínio pela iconografia e beleza fora do comum das imagens deste jogo, disputado debaixo de uma intensa tempestade de neve que mal deixa perceber a bola, e da entrega dos jogadores, como se estivesse em disputa algo mais que um simples resultado, mas no fundo é apenas um jogo de futebol. Mesmo que Porumboiu pareça querer acreditar que o jogo tem um simbolismo maior do que aparenta e se também é interessante acompanhar a dinâmica hierárquica do diálogo entre pai e filho, acabamos a seguir o jogo pelo resultado.
A competição nacional prosseguiu na quarta e quinta-feira com mais dois segmentos. O Canto dos 4 Caminhos (2014) de Nuno Amorim é uma animação, que acompanha um personagem solitário nas suas aventuras de birdwatching, por entre passeios pelo campo. Cheio de cor, movimento e música, não tem diálogos e mesmo a narrativa é quase inexistente. É um pequeno episódio que serve apenas para mostrar o domínio de várias técnicas, mas que da mesma maneira que aparece, acaba por passar sem grande rasto.
Levantamento (2014) de Jacinto Lucas Pires revela-se rapidamente como um comentário ao cinema, com o seu casal de personagens que vivem assumidamente dentro de um filme. Com momentos encenados, sequências coreografadas, diálogos propositadamente a carregar no artificial e falas a olhar directamente para a câmara, as referências a Godard, e mais em particular a Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961), multiplicam-se. Se cinema é movimento, logo a seguir há até tempo para um intervalo com inquérito ao espectador, numa das várias desmontagens dos diferentes mecanismos do cinema. Assumindo que o tempo em que se acreditava nas imagens, em que o cinema era a verdade 24 frames por segundo, já lá vai, esta é uma comédia de olhar ligeiro, descomprometida, que, entre avanços e alguns solavancos, não tem ambição a ser mais do que isso.
O Triângulo Dourado (2014) de Miguel Clara Vasconcelos é uma aproximação a um filme poema, um diário sobre sentimentos em viagem. O filme começa com uma personagem feminina solitária, que irá ao longo do filme recitar um poema em voz off, perante uma sucessão de imagens de aparência velha sobre a vida moderna, que mistura elementos da natureza e a sua contaminação pelo homem. Estas imagens expressivas da periferia, filmadas em 16mm e trabalhadas depois para terem um aspecto mais artesanal, acabam por ser um par feliz para a narração do poema, como que dando corpo às palavras, excepto nos pequenos desvios quando nas imagens surgem outras pessoas, interrompendo o ciclo solitário. Ao mesmo tempo é evocativo dos filmes-ensaio de Chris Marker, das suas composições de imagens para ilustrar uma narração filosófica e memórias fragmentadas e, se muito dependente visualmente dessa estética, acaba por ser um retrato afectivo.
Dedicado a Pedro Hestnes, Os Sonâmbulos (2014) de Patrick Mendes é um filme conceptual, sobre uma fábrica que se alimenta da sua mão-de-obra. Sem qualquer contexto, a acção desenrola-se em interiores escurecidos e opressivos, de paisagens industriais dominadas por máquinas e sons repetitivos. Uma personagem só, um autómato, segue instruções e executa tarefa atrás de tarefa, como que preso a um emprego do qual não consegue escapar, enquanto a câmara vibra constantemente, aumentando a inquietação. Se com o esticar da ideia inicial o filme ameaça esvaziar-se, pela repetição das acções e o longo caminho até ao final, há pelo menos um compromisso com algo original.
Primeiro filme exibido no terceiro segmento da competição nacional, Cinema (2014) de Rodrigo Areias é um pequeno exercício, uma dedicatória ao cinema enquanto espaço físico e quase templo. Um homem percorre um velho cinema abandonado, numa elegia de longos planos estáticos, entre silêncios e resquícios, como uma tela rasgada e bobines abandonadas ao pó. Conciso mas monocórdico, o silêncio apenas é interrompido quando o projector é ligado, para reflectir as primeiras imagens de Silvestre (1981) de João César Monteiro, nos olhos gastos do homem tornado espectador.
O Pesadelo de João (2014) de Francisco Botelho apresenta uma narrativa dividida em dois, cuja relação só é desvendada no final. No início acompanhamos João, estudante universitário, que ainda vive em casa dos pais, sinal dos tempos de austeridade. Os pais ora aparecem fora de campo, ora filmados como sombras, mas é João quem ameaça desaparecer na sua própria sombra, quando se vira para a câmara para avisar que vai tudo correr mal. No segundo momento, um toxicodependente ameaça também evaporar-se, mas surge como uma projecção, um fantasma do futuro de João. É mais tarde no encontro dos dois, no confronto pela sobrevivência que se segue, que o filme joga o seu destino, algures entre o formalismo mais convencional e um inteligente puzzle narrativo.
False Twins (2014) de Sandro Aguilar começa com imagens de animais num zoo, com uma voz feminina por cima, distorcida, que continua um texto enquanto as imagens se sucedem num ritmo desconcertante, para criar uma fantasia assustadora e bizarra a partir de imagens reais. Quando a voz dá lugar a uma canção abafada e os animais são substituídos por imagens de maquinarias indecifráveis, o filme aproxima-se do terreno da ficção científica, com alusões aos mundos de Aldous Huxley e H.R. Giger. Pouco surpreendente e anestesiado, os planos sem vida sucedem-se, e o resultado é um filme distante e alienante.
Parte de uma longa-metragem composta por diversos segmentos do projecto colectivo Ponts de Sarajevo (Pontes de Sarajevo,2014), Sara e a sua Mãe (2014) mostra-nos a incursão de Teresa Villaverde por essa cidade. Pequena mas afectiva composição inspirada por uma cidade com feridas abertas por todo o lado, especialmente nas ausências, mostra-nos no início um museu encerrado indefinidamente. Mas mostra-nos também uma criança e a sua mãe que, ao invés de falarem sobre coisas indizíveis, vasculham entre pertences, em mais uma mudança de casa. Enquanto decidem o que guardar ou não, a mãe acaba à noite sozinha a queimar um diário da filha com palavras para o pai desaparecido, enquanto a varanda da nova casa lembra as colinas que cercam Sarajevo – é um breve mas poderoso gesto.
Miami (2014) de Simão Cayatte acompanha a história de uma rapariga decidida a tornar-se famosa, como salvação para a sua condição anónima. Com uma forte componente narrativa, à medida que a trama se desenvolve, acaba por revelar um universo juvenil e vazio, de ideias esparsas. A excepção é a forma como a câmara segue a sua personagem principal, numa curiosa obsessão que mimetiza a da personagem, criando assim um sentimento de claustrofobia, que retira espaço à rapariga, reduzida assim a poucas opções.