Ida (2013) marca um ponto de interrogação na obra de Pawel Pawlikowski, no sentido em que rompe brutalmente na forma (mas também na substância) com aquilo que é o conjunto dos seus filmes anteriores deixando por isso mesmo em aberto o que serão os futuros. A este respeito lembro-me de um teorema curioso, o Teorema do Ponto Fixo de Brouwer, que diz que para uma função contínua de um espaço topológico convexo nele mesmo existe sempre pelo menos um ponto cuja imagem por essa função é ele próprio, i.e. imagine-se a cidade de Lisboa e um turista passeando com um mapa nas mãos, sempre que o turista deixe cair o mapa ao chão há sempre um ponto no mapa que coincide exactamente com o local onde o dito mapa caiu. Ainda que tudo o resto mude, há sempre algo que permanece imutável. É esse algo que me parece importante identificar.
O que pode então haver em comum entre um drama social sobre a emigração – Last Resort (A Última Oportunidade, 2000) -, o romance rural de Verão entre duas garotas – My Summer of Lover (Amor de Verão, 2004) – o proto-thriller de um escritor perdido em Paris – La femme du Vème (The Woman from the Fifth, 2011) – e este último Ida onde uma noviça viaja pela Polónia em busca das suas origens familiares?
A reposta é o engano. Todos estes filmes se fundam ou alastram a partir de enganos: Last Resort conta a história de uma mulher que viaja da Rússia para Inglaterra para se encontrar com o seu noivo, mas este nunca aparece para a receber levando-a a pedir asilo, My Summer trata do primeiro amor entre sol quente e flores mas nem tudo são rosas quando as mentiras fazem desmoronar a aparente candura da relação, La femme aborda o envolvimento de Ethan Hawke com Kristin Scott Thomas ainda que tudo isso seja produto da imaginação esquizofrénica do primeiro e Ida inicia-se com a revelação algo chocante da tia da noviça de que na verdade o seu nome não é Anna mas sim Ida e que ela não é de origem católica, como lhe ensinaram no convento, mas sim de origem judaica – e que os seus pais foram mortos durante a guerra.
Nesse predomínio do engano o que se estabelece rapidamente é a ideia de que já não existe o genuíno – de que o amor já não é puro -, de que tudo o que nos contam é passível de ser falso, de que não há em quem se confie, de que as palavras são vãs e as verdades voláteis. Tudo certo. Mas se esta é uma leitura possível a partir das histórias que Pawlikowski nos vem contando (ele que sempre assinou ou co-assinou os argumentos dos seus filmes), o que se pode ler a partir das obras que foi filmando é outra história.
Tanto em My Summer como em La femme sentia-se o desbaratar de ideias e a incapacidade de um realizador se ficar por contar apenas uma história e fazê-lo de forma simples: havia sempre sub-plots e sub-sub-plots e os filmes perdiam-se em personagens secundárias que pouco ou nada acrescentavam ao suposto veio principal. Outro aspecto estranho nesses filmes era o facto de a agitação da câmara ser quase sempre um subterfúgio formal para animar os filmes de uma certa inquietude ou injectar alguma dose de realismo. Saúda-se pois que Pawlikowski tenha mudado de ares com Ida, onde a linha narrativa é a mais simples possível (por vezes tão ténue que chega a confundir-se com desinteresse) e a câmara só por uma vez se solta do enquadramento milimétrico. (Mudança possivelmente motivada pelo regresso do realizador ao seu país de origem, a Polónia, depois de anos a trabalhar no Reino Unido.)
O grande problema de Ida parece ser simultaneamente a sua maior força (isto porque de tanta exuberância se sobrepõe a tudo o resto), a saber, os modos da câmara. Se de facto ela se libertou dos achaques do ombro, agora a câmara de Ryszard Lenczewski (o director de fotografia de todos os referidos filmes de Pawlikowski) virou para um preto e branco de grande contraste, passou a enquadrar tudo e todos num constante exercício sobre o espaço negativo do ecrã colocando todos os actores sempre que possível na parte inferior do quadro – de preferência aos cantos. Estética própria do cinema dos anos 50 e 60 – será possível traçar uma linha que parte dos trabalhos de William Cameron Menzies com Sam Wood, mas que se propaga a tudo em especial aos cinemas novos europeus – que de certo modo enquadra o próprio filme no ambiente estético do período que pretende descrever.
Desconfio no entanto de tão abrasivo pendor formalista por parte de um realizador que nunca disso deu ares. Não só me soa falso este intento (sente-se o desejo de acompanhar a moda, de fazer um filme moderninho) como me parece pouco produtiva esta opção, já que não raras vezes ofusca qualquer noção de credibilidade histórica, mas também emocional. Um filme que se admira de nariz torcido – porque, já se sabe, ainda que tudo mude há sempre algo que permanece.