“Tirem o apetite de um homem por foder e comer, e com o que é que ele fica? Sem essas duas coisas temos porra nenhuma, por mais pensamentos e palavras grandiosas que usemos.” Para que a mensagem fique clara, Shintaro Ibuki (Jô Shishido, génio) acrescenta trinta segundos depois: “A partir de agora vou viver para foder e comer”. Estas palavras são proferidas por Shintaro enquanto enche vorazmente a barriga de rodelas de ananás em conserva [se calhar foi aqui que o Kar-Wai foi buscar a cena dos ananases no Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994)] e são dirigidas a quatro prostitutas que vivem todas juntas numa casa a cair aos bocados na Tóquio decadente do pós-guerra. As senhoras ouvem atenciosamente as sábias palavras do nosso herói, aceitando de bom grado os insultos que ele lhes dirige, agraciando-o com mais comida e palavras simpáticas. Tão bonito. É Seijun Suzuki e seus excessos no seu melhor.
Seijun Suzuki afirmou que não lhe interessavam os filmes de consciência social, preferindo antes o entretenimento, uma tirada que é sempre de saudar, nem que seja para chatear os radicais adeptos das mensagens de correio postas nos filmes, prontas a sair do forno e a dar ao seu espectador, num lacinho, as “ideias” que ele anseia por ver; respeitamos mais um fã dos Transformers. Sem perigo de se contradizer, Nikutai no mon (Gate of Flesh, 1964) é um possível retrato da vida caótica no Japão e em particular na Tóquio de 1947, inundada em tráfico ilegal de várias substâncias, assassinos à solta, animais ao relento e ruínas ao virar da esquina. Com um bocado de má vontade, ainda se pode descortinar uma crítica à presença norte-americana em terras nipónicas. Felizmente, o absurdo de Seijun impede que isto encaixe em perigosas águas de “filme político”. “Faço filmes sem lógica e que não fazem dinheiro nenhum.”
Esta estilhaçada Tóquio é reproduzida nos estúdios da Nikkatsu, a produtora onde Seijun trabalhou durante uma década antes de ser despedido em 1968, porque “os seus filmes eram incompreensíveis e não faziam dinheiro nenhum”, palavras do director da Nikkatsu. O estúdio permite que Nikutai no mon seja uma versão kitsch e irreal do mundo abordado, com cores vivas e corpos suados a mostrar que estamos, de facto, muito longe da “elegância” e “discrição” dos velhos mestres nipónicos na arte dos cinemas; imaginamos o Ozu a ver isto e a dirigir-se ao bar mais próximo onde beberia dois garrafões de litro cheios de saké.
No início do filme, Maya (Yumiko Nogawa), jovem sem rumo, esclarece-nos, em voz off, que na capital japonesa “ou matas ou morres”. E depois de assistir a uma rusga policial sobre prostitutas, transforma-se também ela numa, juntando-se a um grupo que domina as ruas a seu bel-prazer. Eram tempos perigosos na bela cidade japonesa, em que um homem ia descansado na rua, a beber saké e a comer sardinha ainda meio-viva, e era violentamente abordado por uma ou mais mulheres, que o obrigavam a ter sexo com ela(s), não respeitando os seus direitos à liberdade de circulação e de fazer o amor com quem bem lhe apetecesse. Mas como disse a Maya, “ou matas ou morres”. Também aqui se sobrepõe uma perspectiva de mera sobrevivência (em grupo) à de uma qualquer visão feminista sobre a sociedade japonesa de 1947. A rusga acima mencionada traz-nos à memória o que o Scorsese faria anos depois nalgumas cenas de pancadaria e violência: canção melancólica a combinar harmoniosamente com slow motions de pessoas a serem tratadas com pouco respeito.
As vestes uniformes dos polícias são facilmente obliteradas pelos vestidos garridos das dignas senhoras que, mesmo arrastadas pelo chão, permanecem impecavelmente aprumadas. O orgulho fará com que se revoltem contra as autoridades, na forma de insultos dirigidos à própria câmara. Não se brinca com o ganha-pão de uma pessoa numa Tóquio a fingir. Voltando às palavras de Shintaro, temos a escrever que é muito redutor afirmar que nesta vida só existem os primordiais actos de comer e de fazer o amor (ou “foder”, como diz a rude personagem). Há tanta coisa para fazer e apreciar na vida: ir à praia, ir ao campo, ir ao cinema, dar duas lambadas no Serra, ler, beber bagaço, ouvir o David Bowie e, claro está, ver muitos filmes do Seijun Suzuki, um homem cuja sensibilidade cinematográfica está mais próxima de um Jones ou Avery do que propriamente de nomes que lhe são mais próximos. Ainda vive.
http://www.youtube.com/watch?v=LsUT4kX9BCs