Do Otelo de Veneza ao senhor Leonel de Vila Franca de Xira, o ciúme sempre foi um sentimento capaz de arrebatar as mais iradas tropelias. Até certo ponto, La jalousie (Ciúme, 2013), o último filme de Philippe Garrel, é portador dessa mesma ira, mas carrega-a de forma velada, serena. Não é contudo fácil de diagnosticar essa serenidade. Ela pode vir de muitos lados e chegar-nos aos olhos e transformar-se em ironia que passa com a espuma dos dias. A fórmula “a girl and a gun”, com que Godard descrevia o cinema reportando-se a Griffith, verte-se aqui numa espécie de melancolia francesa de “a guy and a girl… and another girl… and a gun… and a daugther”. Mas aqui a arma não mexe com a excitação do filme, ela é apenas ponto de viragem, que é como quem diz, de acalmia dos deuses da jalousie.
Parando de falar em código diga-se que este pequeno (77 minutos) grande filme surge a partir de duas contrariedades da carreira de Garrel. Uma menor – a falta de financiamento para uma continuação de Un été brûlant (2011) onde entrava o seu filho (Louis) e o seu pai (Maurice) – e uma maior, a morte deste último antes de completado o filme. Assim a memória de Maurice é o eixo desta sua última obra quer recriando um episódio da sua infância – o pai deixou-o a ele a à sua mãe quando era criança por outra mulher [evento que Garrel já havia filmado aos 17 anos numa curta chamada Droit de visite (1965)] – quer fixando, de forma directa e autobiográfica, como é marca de todo o seu cinema, um lamento pelo desaparecimento da pessoa que mais amava.
É em toda esta trama autobiográfica – com o seu filho a representar o seu pai (com toda a marca freudiana que isso implica) entre duas mulheres, e a pequena Charlotte (Olga Milshtein) no lugar do próprio realizador, em criança – que toda a questão do ciúme se coloca. Não admira pois que este seja posto de forma complexa, isto é, como realidade que habita, naturalmente, o dia-a-dia. Louis começa a sentir ciúmes da sua actual companheira, Claudia (Anna Mouglalis), pela qual deixou a sua anterior esposa, quando aquela se resolve mudar para um apartamento oferecido por um amante. Esse envolvimento é por sua vez espoletado pelo receio de que Louis a deixe, como fez com a mãe de Charlotte, Clothilde (Rebecca Convenant). O ciúme sente-o, à sua maneira, infantil, a filha em relação ao pai, quando à mesa pergunta a Claudia de quem ela acha que o pai mais gosta. A resposta é surpreendente: “Do pai dele”, responde ela.
É aqui que o ciúme se abre, como conceito, a uma noção mais lata, próxima da melancolia de uma perda. O ciúme como vontade de manter no presente uma posse que se tinha no passado. Philippe sente falta de Maurice e quer relembrar o seu passado com ele, transferindo esse sentimento para uma geração a seguir, como que perpetuando os sentimentos de alegria com o pai. Essa jalousie como “falta de” está próxima de uma necessidade de fixar o tempo e por isso se tem falado de Proust e À la recherche du temps perdu, em que o movimento é o mesmo. Mas Garrel tem ao seu dispor as imagens e é nelas, nos tableaux a preto e branco captadas num limpidíssimo widescreen, que os rostos e as paisagens se imortalizam num raro sentimento de pureza e de tranquilidade mesmo ante a tragédia da perda. As promenades, os beijos, os abraços a tiritar de frio nas paragens de autocarro são testemunhas imortalizadas dessa ausência filial e familiar que se converterá para sempre, no cinema de Garrel, em presença fecunda.
Talvez por isso, e volto à questão da serenidade do início, La jalousie encerre, como poucos filmes, uma ideia serena de tragédia via uma simplicidade de meios e imagens que não se fecha, paradoxalmente, no gueto da nostalgia de um cinema de antanho. Seria apressado falar aqui de uma homenagem a um cinema finito, uma vez que o efeito é sempre o de transferência entre a vida e a arte. A Louis dizem-lhe que ele, como actor, compreende melhor as personagens de ficção do que as reais. Se é possível ver aqui o método de Garrel pai talvez este encerre o paradoxo fundamental de onde afinal de contas emerge a serenidade na mais pura das tragédias. É que La jalousie filma com uma extrema eficácia do olhar e uma precisão invulgar na mise en scène as ineficácias da vida. Não por acaso são os quadros de quotidiano, aparentemente soltos entre si, a maneira mais justa (justa como verdadeira) de filmar o todo, a consistência.
Essa é uma consistência que se instala no centro do cinema de Garrel e que sobretudo coloca na devida perspectiva o desaparecimento dos entes mais queridos. Essa é a dimensão mais densa e rica de toda e qualquer tragédia, passional ou não.