Numa altura em que a aceleração técnica continua a produzir sentimentos de culpa pela extinção da raça humana avant la lettre, o cinema aproveita-se para seguir vendendo distopias que nem castanhas quentes. Neste Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013) – que tradução para português tão bonita, não é? – aquilo que salta mais à vista é o aproveitamento da já estafada metáfora da marcha do progresso do Modernismo simbolizada na força do comboio e a conversão desse símbolo em algo do domínio do refúgio (nostálgico?) do que resta da vida biológica.
Aqui a marcha do progresso já não é em frente mas sim em contenção circular: uma experiência mal sucedida para combater o arrefecimento global levou a terra ao gelo global. A pouca vida que resta sobrevive a bordo do comboio-Arca-de-Noé Snowpiercer que, lá está, anda perpetuamente sem parar num circuito que percorre o globo à espera que haja condições para sair. Lá dentro o comboio é a metáfora da sociedade, onde o povão comedor de caca vai nas traseiras e a classe rica burguesa e branca vai à frente encabeçada pelo divino criador. O criador da máquina, entenda-se: “Wilfred is divine” é um dos slogans do endoutrinamento da micro-sociedade.
Há dois anos Leos Carax já nos tinha mostrado que os motores eram sagrados. Aqui a expressão é “the engine is sacred” e é por isso que a nova revolta dos pobres tem o objectivo de ir à frente do comboio e controlar o mecanismo. Quem controla o mecanismo controla o futuro. Essa expressão do poder parece ter mudado radicalmente com o cenário pós-apocalítico, isto é, com a experiência das duas guerras mundiais. Entre estas, Walter Benjamin escrevia: “Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de accionar o travão de emergência por parte do género humano que viaja nesse comboio.”
Pelo contrário, o filme de Bong Joon-ho mostra como o comboio (a técnica) é aqui a expressão da opressão e não da revolução e também que travar não é a solução (uma das revoltas passadas, intitulada a “revolta dos sete” tinha precisamente esse intuito e fracassou rotundamente). Se a mensagem parece ser materialista q.b. (é ir ver o filme) já o invólucro é também uns furos acima do expectável deste tipo de evangelhos mainstream da luta pela dignidade do humano quando tudo o mais já foi para o beleléu.
O realizador coreano do extraordinário Gwoemul (A Criatura, 2006), agora a filmar pela primeira vez em língua inglesa, consegue gerir bem a progressão da revolta pelas sucessivos compartimentos do comboio (como se por níveis dos videojogos se tratasse) de forma a não deixar morrer a tensão. Ou outros pormenores como a celebração do ano novo já não se fazer no tempo mas no espaço ou a sequência de luta entre a claridade natural e a escuridão dos túneis pelos quais passa o “Snowpiercer”. No elenco, John Hurt – já habitué noutras distopias como o próximo Ninety Eighty Four (1984) ou V for Vendetta (2005) -, Tilda Swinton (em registo caricatural) ou Song Kang-ho [Boksuneun naui geot (Sympathy for Mr. Vengeance, 2002)] a destilar estilo – emprestam credibilidade e talento a um bom e gelado filme de acção mais do que apropriado para o quente do Verão.