Ainda nem há uma semana escrevia aqui, a propósito de Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013), sobre a questão da tecnologia e da relação que o cinema arranjou para se lhe referir, quando me cai em mãos um dos filmes que em toda a história do cinema melhor permite perceber essa relação, com a guerra como elemento de charneira de toda a equação. Esse filme é Things to Come (A Vida Futura, 1936) de William Cameron Menzies. Não sendo uma obra-prima ele marca a estreia na realização a solo do art-director transformado em realizador Menzies. Quando o produtor inglês, de origem húngara, Alexander Korda o chamou a Inglaterra para realizar esta adaptação de uma novela do escritor H. G. Wells, a ideia era fazer concorrência à então Gaumont-British, de Michael Balcon, e à B.I.P. de John Maxwell, trazendo nomes norte-americanos e com eles o seu know-how.
O filme abre com uma sequência, uma das melhores, sobre a eminência de chegada da guerra (estamos em 1940 numa cidade chamada sugestivamente Everytown) sob o pano de fundo do Natal. Nela vemos posters em ângulos oblíquos que nos falam dessa ameaça e vemos luzes e perus de Natal. Esse momento quase abstracto nas formas e na montagem marca o tom técnico do filme, um filme precisamente sobre a vida por vir, uma vida “formal”, de movimentos de força. Contudo, e aqui reside a maior fraqueza do filme, essa dimensão da forma – o Menzies touch, como alguém já disse – perde-se algures na relação entre o drama e o discurso (um discurso sobre a técnica).
O drama anda nos limites da verosimilhança com a metáfora nua de everytown e os saltos sucessivos no tempo: a guerra chega e produz a ruína; nos anos 70, parte da população foi dizimada pela guerra e pela doença (“the wandering sickness”), a civilização está morta, não há combustível e os sonhos de voltar a voar parecem quimeras. A ditadura pós-apocalítica que se vive é então resgatada pelas maravilhas da tecnologia, os homens vindos do Médio Oriente em aviões que impõem um governo ditado pelo progresso e pelo princípio materialista; último salto é para o futuro, 2030 (e é nestes cenários “metropolinianos” que o filme e Menzies mais brilham). Neste futuro, o humor já se foi, as pessoas vivem em cidades subterrâneas e coloca-se a questão de disparar os humanos para as estrelas através de uma “space gun”. A réstia do humano que se impõe quer organizar uma revolução cujo mote é, simbolicamente: “destroy the gun”.
Se parecem muitas peripécias, e são de facto, estas são quase sempre veiculadas não pelo drama mas pelo discurso (as cenas flat e palavrosas das personagens e daí tornar-se claro o under directing de Menzies) ou pela composição que em muitos casos não consegue senão sugerir um ambiente, não entra na carne da acção. É a guerra filmada em planos apertados para não se ver as costuras, por exemplo. Talvez por isso mesmo o futuro não esteja no que acontece, mas apenas no que parece, fazendo de Things to Come um mapa de composições elaboradas que corrobora a mensagem materialista: é o progresso técnico (no filme, no mundo) que deixa a marca, o imprint. Isso é pelo menos verdade, com toda a certeza, para o filme de Menzies. É a materialidade do filme, a bizarria do olhar e suas sequências quase abstractas (penso na sequência que constrói a passagem do tempo para 2030) aquilo que permanece como “vida futura”, embora sem a força tónica (e dramática) das composições eisensteinianas.
Ainda sobre o discurso, muito se passou desde 36. Aqui o filme de Menzies fazia alternar a mobilização total, de orgulho futurista, da guerra como estímulo do progresso e a visão da pestilência, da ruína, do mal do avanço tecnológico. A optar entre a distopia e a utopia, o filme parece fazer optar pela segunda: são os homens do céu os que permitem reiniciar a civilização. Ou na conclusão, o sacrifício “trágico” da descendência da governação ao ser a carne para canhão do avanço técnico, com a revolta a produzir resultados infrutíferos. Em 2014 já não se produzem alternâncias entre a euforia e a disforia técnica no cinema. Se todos os filmes são sobre ela (não no sentido lato em que todo o filme é técnico mas mesmo no sentido forte em que cada um produz veladamente o seu discurso sobre ela, fazendo dessa uma “omni-temática”), todos apresentam o lado negro da tecnologia, seja sob a forma dos apocalipses [voltamos a Snowpiercer ou The Day After Tomorrow (O Dia Depois de Amanhã, 2004)], como exemplos quase ao acaso), seja apresentando a melancolia e seus after effects do que outrora se julgava ser o certo e o humano (discussão bem longa): The Congress (O Congresso, 2013), Melancholia (Melancolia, 2011), 4:44 Last Day on Earth (4:44 Último Dia na Terra, 2011), Only Lovers Left Alive (Só os Amantes Sobrevivem, 2013), para continuar no quase acaso. Ficámos apenas, apenas, com a nostalgia e com os gadgets.
E termino, apercebendo-me que não falei de nenhuma personagem em concreto. Talvez isso seja tanto um sinal da força simbólica do filme – everytown-everyone-the present-the future – como um sinal da sua actualidade, dessa vida futura onde cada um é sinónimo de todos e todos de ninguém.