Ela: I see you’re moving again.
Ele: That’s right, tonight.
Ela: Why do you move so often?
Ele: It’s a habit with me. Like you are.
Ela: Say, these are good-looking shirts. Why do you cut the labels off?
Ele: The same reason I keep moving: I don’t like labels. (…)
Diálogo de Armored Car Robbery (Brigada Comercial, 1950)
Nesta última crónica Civic TV antes das férias, proponho uma viagem fantástica a dois filmes realizados por um dos maiores cineastas norte-americanos do seu tempo, de todos os tempos: Richard Fleischer. Digo “um dos maiores cineastas”, mas a propósito dele, cortesia da televisão portuguesa, vejo-me forçado a fazer girar a análise em torno de dois dos seus “filmes menores”. Uma menoridade que poderá ser importante, como dita a política dos autores, para desatarmos finalmente o nó à difícil – se não impossível – questão: quem é e onde está o cineasta Fleischer nos seus filmes? Em Fantastic Voyage (Viagem Fantástica, 1969), filme recriado anos mais tarde por Joe Dante no clássico Innerspace (O Micro-Herói, 1987), uma tripulação que percorre o interior do corpo de um diplomata, para desfazer em pedaços um coágulo que tem no cérebro, sai do seu estado de “menoridade” física à boleia de uma lágrima. No laboratório, e recolhendo a lágrima, um dos agentes da CIA localiza os heróicos tripulantes pelo microscópio. É agora por semelhante microscópio que procuramos encontrar Fleischer em Conan the Destroyer (Conan o Destruidor, 1984) e Red Sonja (Kalidor: A Lenda do Talismã, 1985), dois dos seus filmes mais mal amados que tiveram honras de sessão dupla na televisão portuguesa.
Concordo que são muitas as dificuldades, identificadas por João Palhares na sua crítica à magnum opus The New Centurions (Os Centuriões do Século XX, 1972), em “decifrar e rotular” ou “etiquetar” um cinema como o de Richard Fleischer: “se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil”, escreve o colega walshiano. Desde logo, como sintetiza Georges Sadoul no seu Dicionário dos Cineastas, Fleischer é um desses realizadores-operários que “fez tudo”, cujo principal “rótulo” ou “etiqueta” está na maneira, muito justa e rigorosa, como põe em cena cada história. Ele é um “mestre contador” para William Friedkin, provavelmente o realizador que mais directamente soube receber os seus ensinamentos, até porque também ele fez tudo ou quase. O mestre contador é um mestre contentor. É difícil traçar um perfil a alguém que durante mais de 40 anos realizou cerca de 60 filmes, a maior parte dos quais sob o tecto da fábrica clássica de Hollywood – era, conta Friedkin, um dos favoritos de Darryl Zanuck, o homem forte da Fox. Posto isto, não é acidental que tenha assinado The Boston Strangler (O Estrangulador de Boston, 1968) e feito das dificuldades de um inspector (Henry Fonda) em identificar um padrão na acção do assassino o primeiro locus de interesse na narrativa. Primeiro, estrangulou até à morte senhoras caucasianas de idade adiantada. Depois, surgem já cadáveres, nos seus apartamentos, jovens raparigas, uma delas negra. O padrão parecia ser, de igual modo, “impossível” de identificar – os ecrãs múltiplos, proeza visual impressiva, sugerem essa dispersão. O que unia, contudo, estes actos bárbaros entre si era o “modo”, mais concretamente o nó que o estrangulador dava aos farrapos que trituravam as goelas das várias vítimas. Não haja dúvidas de que nesta imagem da violência (a que, como desenvolverei, mais vem à superfície no seu cinema), Fleischer é um pouco como o estrangulador, entenda-se: o assassino e o “seu” filme. O que interessa isolar, para nos desfazermos dos “impossíveis” da sua coerente legibilidade, é a maneira como Fleischer “dá o nó” às suas histórias. Um metteur en scène puro, um dos mais estupidamente subvalorizados da sua geração e aquele que vale a pena “investigar” a sério, mesmo sabendo que, por exemplo, nunca se soube verdadeiramente quem, entre 1962 e 1964, matou 13 mulheres nos seus apartamentos em Boston.
Em Junho, porventura em mais um “sábado violento”, o canal Fox Movies ofereceu aos seus espectadores um double bill dedicado a Fleischer. Certo? Não, claro que não. Todos sabemos as razões das passagens das heroic fantasies Conan the Destroyer e Red Sonja. A primeira é Arnold Schwarzenegger e a segunda é Arnold Schwarzenegger. Ou, se preferirem, a razão é apenas uma: Conan, o Bárbaro, herói criado por Robert Howard nos anos 30 e popularizado numa série BD nos anos 70. A sua visão fantasiosa da Idade Medieval, vagamente aparentada com as histórias de magia e aventura de Merlin e do Rei Artur e do famosíssimo épico parabólico de J.R.R.Tolkien, The Lord of the Rings, tornou-se numa máquina de fazer dinheiro (sobretudo graças à edição em VHS) desde o lançamento do blockbuster de John Milius. Dino de Laurentiis, mítico produtor italiano de realizadores tão diferentes como Fellini e Cimino, tinha faro para este género de produções espectaculares e uma especial propensão para não dar nenhuma história por encerrada. Seguiram-se, então, Conan the Destroyer e, sequela não oficial deste, Red Sonja. Os dois filmes seriam realizados pelo amigo Richard Fleischer, com quem retomava uma colaboração que até então apenas redundara em fracassos comerciais e de crítica: Mandingo (1975) e Armityville 3-D (Amityville III – O Demónio, 1983). Em relação ao primeiro filme de Milius, as diferenças serão notórias e explicarão parte do fracasso popular das duas sequelas. O propósito destas sequelas passava por aligeirar o negrume do primeiro tomo e, aproximando-as do público infantil da banda desenhada, tornar as façanhas de Conan e companhia num bom naco de entretenimento para toda a família: o pai, a mãe, os filhos e o cão.
Conan the Destroyer funde fábula e comédia com a linguagem do western um pouco ao jeito, hélas!, de um Star Wars (Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança, 1975). É um filme de aventuras revolvido por uma mitologia fantástica que vai debitando mensagens sobre a vocação das personagens para o poder e para o heroísmo (do estilo may the force be with you). Temos a princesa Jehnna à procura do diamante mágico que fará dela rainha de todos os reinos e temos Conan, o intrépido guerreiro que a irá acompanhar nessa demanda a pedido da rainha Taramis, que em troca promete devolver à vida a sua amada Valeria. Uma recompensa que a capciosa Taramis não poderá, nem quererá, cumprir, já que o seu único interesse é despertar o temível Deus Dagoth, deitando mão sobre a jóia mágica e sacrificando a princesa. Esta sinopse algo apressada não trairá muito o que se passa em Conan the Destroyer, a saber: uma luta pelo poder. A mesma sinopse, com poucas correcções, e o mesmo tema valem para Red Sonja. De novo, aqui a aventura é narrada sob a forma de uma travessia por mundos fantásticos, habitados por seres míticos e regida por leis extrahumanas. Desta feita, o talismã do mal (my precious…) é roubado pela terrível rainha Gedren e é, numa corrida contra o tempo, que os nossos heróis, Red Sonja e Conan, procurarão travar os seus planos maquiavélicos de dominação mundial. Acresce aqui um subplot de vingança, que é arrumado em poucos minutos na sequência pré-genérico do filme: Sonja (interpretada pela belíssima Brigitte Nielsen) é acordada por um espírito da floresta – um daqueles que Apichatpong Weerasethakul trata por tu – que não só muito convenientemente conta toda a sua história passada como, com um toque de espada, empresta poderes mágicos à nossa heroína. Em poucos planos, o espectador fica inteirado da backstory de Red Sonja, nomeadamente o facto de esta ter rejeitado tornar-se escrava da rainha Gedren, deixando no seu rosto a marca dessa recusa, e em resposta disso a implacável soberana ter mandado os seus homens violarem Sonja e matarem a sua família. Filme de espada e magia com uns pózinhos de revenge flick. O novo condimento não disfarça, contudo, a evidência de que Red Sonja é uma espécie de remake no feminino de Conan the Destroyer, um Johnny Guitar (1954) da heroic fantasy, com os mesmos vermelhos intensos a colorirem a rivalidade de morte entre duas gatas assanhadas.
Apesar do fracasso relativo dos dois filmes, confesso que me parecem hoje mais comestíveis, por causa de todo o seu lado camp descontraído, que o sisudo filme de Milius – essa sisudez “data-o” mais, entenda-se. Tenho mais uma confissão a fazer: apesar de ser uma obra menor na filmografia de Fleischer, que poucas “obras menores” terá, não penso que Red Sonja mereça tantas manifestações de embaraço. Para além do flop comercial que foi, este filme marca um ponto de viragem na carreira de Arnold, que, depois dele, larga em definitivo a personagem de Conan e os filmes de aventuras e magia. Para o protagonista de Junior (1994) este foi o pior filme da sua carreira, ao ponto de o ter usado como “papão” na educação dos filhos: “Eu digo-lhes, se me enervarem, que eles terão de assistir a Red Sonja dez vezes seguidas. Consequentemente, nenhum dos meus filhos me deu muitos problemas”. Com o tempo, filmes ingénuos e apressados [uma velocidade que virá da escola RKO, onde filmou primorosos films noirs como Armored Car Robbery e, um dos meus preferidos, The Narrow Margin (Forças Secretas, 1952)] vão ganhando um certo charme difícil de resistir. O protagonista de Junior bem que se pode ter precipitado. Afinal, o facto de o filme ser toda uma girl fight mitológica torna-o imediatamente excitante, se não para os filhos de Arnie, pelo menos, para este cronista cinéfilo. Depois, subitamente, ares de romance cor-de-rosa invadem personagens nos trajes (e no meio das paisagens) mais invulgares – veja-se o incrível último plano de Red Sonja, com o beijo eterno a ligar as duas action figures.
Em Conan the Destroyer, Conan não se havia reencontrado com a amada Valeria nem encontrado a rainha para o seu reino. Ora, Fleischer e De Laurentiis dão-lhe uma, numa bandeja, em Red Sonja. Ela é o lado feminino de Conan, até porque de modo muito literal lhe dá luta. A princesa virgem com cio do filme anterior, desde os primeiros instantes tomada por um coup de coeur pelos músculos e cabelo longo do Bárbaro, não era o seu tipo. Sonja, por sua vez, é uma mulher de armas, tão ou mais destemida que ele, mas tem um senão, ou melhor, tem ainda mais um ponto a seu favor: não gosta de homens. O trauma da violação mandada por Gedren será o principal campo de batalha para Conan, como em The Vikings (Os Vikings, 1958), o filme de Fleischer que justifica a sua escolha por De Laurentiis para prorrogar o franchise, é a disputa por uma mulher que está no centro da terrível luta fratricida. Para além desse “excesso romântico”, encontro nestes dois títulos pontes interessantes com o grande cinema de aventuras de Raoul Walsh [The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924)] e de Fritz Lang [a saga Die Spinnen (1919-1920) e, acima de tudo, o seu díptico indiano Der Tiger von Eschnapur (O Tigre de Eschnapur, 1959) e Da indische Grabmal (O Túmulo Índio, 1959)], ligando-os, em certo sentido, a estilização dramática, o ritmo da acção e a découpage (planos longos, largos e uma exploração habilidosa, mas como sempre discreta em Fleischer, do “espaço negativo” do quadro).
Falei atrás das dificuldades de encontrar um ponto de fuga no cinema de Fleischer. Este double bill televisivo não nos dá grandes pistas para, aqui, isolarmos o átomo fleischeriano, mas eu arriscaria dizer, tal como o faz Jacques Lourcelles no texto «Un Grand Hollywoodien»
, que há nele qualquer coisa da “sociologia desoladora” que instrui parte ou a melhor parte do seu cinema. A personagem de Gedren, por exemplo, é o símbolo de um conflito – a tal sacramental “imagem da violência” – que está presente em 20000 Under the Sea (Vinte Mil Léguas Submarinas, 1954) e no seu muito escondido contraponto político-sociológico, a obra-prima fleischeriana – neste caso, escandalosamente subvalorizada – intitulada Mandingo. Nestes dois filmes, o que une essa reflexão crua e cruel sobre as relações de poder é a personagem interpretada por James Mason. O famoso mestre dos mares, Nemo, exerce um poder totalitário que lhe é conferido pela sua carapaça metálica, não tão diferente quanto isso da de Fantastic Voyage, uma espécie de jóia de Dagoth – citando Conan the Destroyer – que lhe dá o domínio absoluto sobre toda a actividade marítima. Diz Nemo: “Think of it. On the surface there is hunger and fear. Men still exercise unjust laws. They fight, tear one another to pieces. A mere few feet beneath the waves their reign ceases, their evil drowns. Here on the ocean floor is the only independence. Here I am free!”. Adivinha-se nestas palavras como a liberdade de Nemo será aquela que o irá consumir até à pouco gloriosa queda.
Um aparte: ai do leitor que enjeitar a oportunidade de ver os minutos finais de Snowpiercer (2013), filme de Bong Joon-ho em estreia este mês, que conta com uma espécie de “Nemo on tracks” interpretado por Ed Harris, naquela que será uma das máscaras do ano, e que é uma distopia ecológica na linha do clássico de Fleischer Soylent Green (À Beira do Fim, 1973). Voltemos à desolação – mas chegámos mesmo a sair dela? – ou ao programa utópico de Nemo, que tem como inimigo principal os mercenários do alto-mar que transformam mercadorias em homens e homens em mercadorias. Esta é, conclui-se no ending… desolador, apenas e só o reverso do que ela própria combate. “What you fail to understand is the power of hate. It can fill the heart as surely as love can”, diz Nemo como que sabotando o sinal – a sina… – do seu heroísmo. O seu discurso e acção dirigem-se, como um torpedo em direcção ao alvo, contra os de Gedren ou os de Tamaris e, ao mesmo tempo, parecem confundir-se com eles. O inspector de The Boston Strangler incarnado por Henry Fonda também se confrontará com esta “imagem rachada” da sua consciência, que proporciona um imoral “gozo de identificação” com a mente do assassino.
No seu filme de mestre, Violent Saturday (Sábado Trágico, 1955), encontramos uma igualmente perturbante e violenta correspondência, em toda a sua mundanidade, entre os assaltantes e as pessoas da comunidade que eles atacam. Mas o contra-campo mais preci(o)so de Nemo pode ser encontrado em Mandingo, o pai dos mais recentes “filmes da moda” (= incomparavelmente inferiores ao de Fleischer) sobre a escravatura negra no século XIX, 12 Years a Slave (12 Anos Escravo, 2013) e Django Unchained (Django Libertado, 2012). No “original” de Fleischer damos de caras com o anti-Capitão Nemo; James Mason incarnando um fazendeiro esclavagista que “cura” o reumatismo pondo os pés em cima de criancinhas negras. Ele é o emblema da mais inumana forma de capitalismo: o da mercantilização e domesticação do homem pelo homem. É contra ela que Red Sonja se revolta, provocando a série de acontecimentos conducente ao duelo final com Greden, que acaba devorada pelas chamas da sua ganância. Mas a violência, por muito justificada, também é insana. Mas a violência, por muito injustificada, também é sana. Entre imagens da violência, entre a grandeza e a decadência, como diz Lourcelles, o cinema de Fleischer vai ganhando músculo e atingindo, como a nave miniaturizada de Fantastic Voyage, um desses lugares difíceis de penetrar e que estrangulam o (ser) humano. Mesmo que tudo isto esteja diluído num anódino entretenimento familiar, Conan e Sonja servem como miniaturas dos grandes e complexos problemas levantados nos melhores filmes de Fleischer. Pode ser que ocorra à nossa televisão passá-los.
(Agradeço o apoio de Luiz Soares Júnior na localização do texto de Jacques Lourcelles.)
PS: 20 chibatadas nas costas deste redactor. Escrevo sobre o grande Richard Fleischer e não cito duas das suas obras-primas mais marcantes na minha vida: The Girl in the Red Velvet Swing (A Rapariga do Baloiço Vermelho, 1955) e 10 Rillington Place (Violador de Rillington, 1971). Se o primeiro vi na Cinemateca Portuguesa e aprendi a gostar ainda mais depois de ler a folha de João Bénard da Costa – que, em torno desse filme que tanto amara, dedicou um essencial texto sobre Fleischer em 2006, ano da sua morte -, o segundo enregelou-me uma madrugada inteira quando o apanhei no canal TCM, que vai deixando, cada mês/crónica que passa, mais e mais saudades.