(…). Sim, alguns indivíduos-tipo que só possuem como único ponto em comum a juventude
Jean-Luc Godard, entrevistado por Yvonne Baby, Le Monde 1967
Os ativistas da Berlin ocidental e os Vietcongs (…) possuem ambos – em maior ou menor medida – a fórmula através da qual a minoria militante poderá infligir o terror à indiferente maioria, ou mesmo chegar a governá-los.
Werner Titzrath, Die Welt, 7 de fevereiro de 1968
Câmera entrincheirada à altura do dorso de uma mulher, rente à parede. Ela fala: um monocórdico, taciturno fluxo. O filho está diante da mãe, sentado à mesa e frontal para nós (entrevisto no intervalo entre a parede e o dorso da mãe). A atenção do filho e do marido parece suspensa, absorvida e neutralizada pelo tom benfazejo com que a voz da mãe vai circunscrevendo um estado de coisas (o filho pode ser mandado para uma instituição de correção, ou mesmo para a prisão), sugerindo outros – que ela, apesar de sua timidez em se exprimir, preferia ter o filho junto a si, aconchegado no regaço deste relato sussurrado… fala pouco e baixo, fala entrecortadamente; mas fala. Filho e marido pontuam aqui e ali, debuxando o diapasão da fala da mulher: precipitada aqui, ilhada pelo silêncio, e mais adiante desvanecendo-se em um muxoxo… mas se há descontinuidade entre a narrativa de um e a expectativa de outro, permanece subjacente à cisão dos discursos a continuidade do plano fixo e do tempo que se cristaliza, reverente para com a palavra doméstica e hebdomadária: o importante, aqui como no resto do filme, será capturar estes conciliábulos, íntimos ou gregários (as rodas de amigos, as festas na rua, os rachas), onde uma geração se experimenta “pela primeira vez”, neste face a face com o Outro, institucional ou existencial, onde tudo o que é enfim advém à significação.
É ao narrarmos e sermos narrados que um Bildungsroman geracional parece advir à superfície, encrespá-la e torná-la enfim porosa a nós mesmos. Se os personagens de Goddo supiido yuu! Burakku emparaa (Godspeed you! Black emperor, 1976) relatam, comentam, divagam entre si (e para este grande Si mesmo que é o olho polimorfo perverso da câmera, sempre à espreita e no encalço de seus sujeitos), é porque não há outro itinerário a seguir, senão o demarcado pelas reentrâncias da linguagem. Sopesados e desvelados pela palavra, os corpos adolescentes revelam-se como containeres de devires – de possível; como esta massa de permeabilidade absoluta aos acidentes da pequena história: a história de seus pais, presente nesta interlocução ora intermitente e casmurra, ora atentamente galhofeira; mas também como uma superfície magneticamente vibrante, que imanta os afetos dos poderes coercitivos (a Polícia, o Juizado de Menores, o Trabalho), ativa-os: imprime-lhes um telos. Os jovens são objetos privilegiados para seus experimentos de Vigiar e Punir- é sobre estas existências ainda vacilantes, no lusco-fusco entre o Mesmo e o Outro, que vão se “provar” os princípios e as regras deontológicos vigentes; no início do filme, o pai de um adolescente preso se/nos indaga, atordoado: “Por que meu filho foi preso? Porque estava com um bando de arruaceiros e estava bêbado? E isso é proibido?” A polícia também “brinca de”… Mais adiante, veremos como este status de incerteza hermenêutica (o caráter arbitrário do Poder, que diz o que tem de significar e como) também vai se espelhar nas relações do grupo. Ao ser espancado por ter desviado dinheiro, um dos membros questiona o líder do Black emperor: “Não foi uma punição. Você me espancou”, ao que o outro redargüe: “Você acha que não foi punição. Foi uma punição. Eu não exagerei. Você saiu da rota e eu o castiguei, como manda a norma”. E o espanca novamente. Em um plano médio entre lúgubre e funcional (todos são enquadrados de forma eqüidistante ao centro do quadro), o rapaz nos aparece julgado por uma arena de participantes.
A linguagem é o meio por intercessão do qual a experiência se torna vidente; falada (contada), como aqui, acrescenta-se o tônus afetivo (as forças), mas idem a inflexão política, de que a gang faz uso semelhante. Ao falar, não apenas narramos nossa história (sendo enfim afetados por ela), mas somos “fichados”, estatuídos, carimbados em uma identidade – de raça, gênero…; as entrevistas buscam antes configurar um espaço intersticial de jogo, onde falar é um dom mas também uma maldição: aparecer e integrar-se a; ser para um Outro num sentido epifânico e predatório. A gangue punk de motociclistas Black emperor não apenas picha muros e ronda pelas noites em rachas, não só representa o desgarro e a deambulação de uma comunidade incipiente, empenhada em provas de fogo iniciáticas; não lhes basta a vivência errática, “minha”: o essencial aqui é a necessária cristalização desta nomadismo em um gregarismo semi-institucional, em uma micro-sociedade cujos fins e funções se assemelham muito, pelo menos em intenção, ao universo dos adultos “fardados”, portadores de um status quo privilegiado: em uma cena no início de Godspeed!, Mitsuo Yanagimachi nos mostra que a “turma” do Black emperor busca meios sistemáticos de integrar os seus membros, cadastrando-os (os instantâneos dos garotos em poses descontraídas, as caretas); os meninos atendem à “chamada”, declinando seu nome e tempo de filiação. Oito anos de fundação. Como no Exército, a perambulação pelas noites pode ser vista como um treinamento para a guerra iminente…
Se a filiação ao grupo implica, para um imaginário romântico, uma vivência das margens e dos atalhos da vida institucional, ela representa igualmente um primeiro assomo do que será a vida regrada sob os auspícios do establishment. Inclusive o Outro do Outro, o marginal (social e econômico, no caso) também já está previsto neste sistema, mesmo que em uma versão ainda paternalista, amical: a trupe dos rapazes de Ibaragi deve ser respeitada, porque afinal “eles vem de uma cidade pequena, vem de Ibaragi no meio da chuva, olhem bem para as caras deles e vão saber quem é”… O importante a se salientar é que já se identifica e qualifica uma figura de Outro a que os rapazes serão irremissivelmente ligados, “não-identificados”; como em toda cultura (Kultur é coisa de adultos, meninos!), trata-se de balizar a Identidade a partir de sua Experiência Limítrofe de Alteridade – o Outro é o Não-Eu… Outros para o Mesmo representado pelos Pais e a Polícia, os rapazes do Black emperor já acharam seu Outro, aquele ex-voto que destinamos ao altar (tabu) ou à fogueira – na ocasião e segundo os deuses propícios…
Falei acima do jogar desenvolvido pelo uso das conversações contrapostas ao cinéma verité das ações, deste uso da palavra como dom mas também como instância de integração… Ele se reflete na matéria do filme. O jogo se joga nestas zonas fronteiriças entre falar e agir/divertir-se/deambular, quando Yanagimashi nos mostra um relato em off que se intersecta a brincadeiras que já não correspondem ao que se narra; ou quando a narração é suspensa pela inserção desta cláusula suplementarmente lírica de sentido, a música – sobrepondo-se sempre a cenas de perambulação dos rapazes (o passeio de bicicleta subindo o morro!), inscrições da “forme balade” moderna num contexto rugoso de subúrbio industrial: a teluricidade lumpen do 16 mm, câmera na mão orquestrada por stacatti, o zoom que achata as superfícies, consignando-as ao háptico…
Uma estranha aura crepuscular irradia daquelas fotos que irisam, aqui e ali, os planos de Godspeed! – como se as aventuras noturnas, os esbarrões regados a uísque e cigarros, as noites brancas em plano geral e meditabundo, as noites “zona cinzenta” em hotéis baratos e seus planos médio inventariantes, esmiuçando a epiderme dos folgazões sob a luz bruxuleante da madrugada; ou o avanço, entre feérico e acabrunhante, daqueles halos esféricos que transfixam uma cratera ondulante na noite de Tokyo constituíssem atos de uma cerimônia do adeus, de que o filme registrasse impassivelmente (entomologicamente) a celebração… porque pertencer ao Godspeed! é estar ainda aqui (ainda somos únicos, ainda acreditamos no futuro, ainda podemos tudo) e já lá, do lado dos Pais e dos agentes de segurança: o Black emperor é um espaço de recreio e de afirmação do ethos adolescente; mas também uma seita, uma organização, caserna ou igrejinha: “Eu te puni porque você violou as regras. É justo”. Ainda crianças (um dos meninos mimetiza para a câmera os esgares de um adolescente suicida, cuja história é contada pela balada diegética ao fundo), mas já arrendatários de um espaço urbano, com suas normas e infrações. Zona fronteiriça, limbo que qualquer de nós já habitou algum dia (ou fomos habitados por?) – conjugação oscilante e ambígua do tempo, pretérita imperfeita: aqui, o Eu se afirma plenamente e de direito, apenas para mais adiante diferir-se e perder-se irremissivelmente…
Em seu quê de collage foto-romanesco, Godspeed! Black emperor dá-nos a ver precisamente a consangüinidade destas dimensões na vida daqueles personagens, tão perdidos quanto vívidos (porque…); roídos ab ovo pelo verme da vida adulta (Jesus, filho de Sirach), do dever ser e para-si… Roland Barthes, em um texto sobre o plano de detalhe em Eisenstein (O terceiro sentido, Cahiers du cinéma 222), propõe-nos uma teoria do fotograma: “O fotograma nos mostra o ‘lado de dentro’ do fragmento. (…) e o centro de gravidade do fragmento não está mais entre os planos – o choque -, mas no elemento dentro do plano, a acentuação no interior do fragmento; (…) o fotograma não é algo pinçado, colhido quimicamente na substância do filme, mas antes o rastro de uma distribuição superior de traços de que o filme vivido, projetado, animado, não seria em suma mais que um texto, dentre outros. O fotograma constitui-se então em fragmento de um segundo texto cujo ser não excede jamais o caráter de fragmento; filme e fotograma se encontram em uma relação de palimpsesto, sem que se possa dizer que um é a projeção do outro ou o extrato de outro”.
Os instantâneos de Godspeed! operam uma conversão do que Barthes chama de “tempo operatório” do filme; sucessivo, cronológico. Eles o diacronizam, sustém e diferem. Para onde? Talvez para o pretérito imperfeito onde abandonamos os personagens, em sua eterna nova ronda (o flash congelado final sobre as lanternas das motocicletas) pelas noites irrecuperáveis de Tokyo.