“A fotografia, muito mais do que o avião, acho eu, encurtou o mundo. Do bilhete-postal ao prospecto de viagens, da revista à imagem por satélite, da telefoto à radiografia, a imagem concorreu para tornar tudo mais familiar, mais próximo, mais objectivo. E paradoxalmente mais ausente. / A fotografia virtualizou o mundo”. Estas palavras de Bernardo Pinto de Almeida, escritas em Imagem da Fotografia, ajudam-nos a situar o “lugar” de onde parte e onde chega o pensamento intrincado e reticular de uma das cabeças que melhor pensou os principais embates dos nossos dias: Harun Farocki. O cineasta alemão deixou-nos no último dia de Julho, mas as suas ideias estão vivas – e sobreviver-nos-ão – nos mais de 90 filmes que realizou desde finais dos anos 60 até hoje (o seu último filme será estreado no próximo DocLisboa, numa homenagem a um dos cineastas que o festival mais e melhor soube dar a ver). O seu território era/é o do documentário e do ensaio cinematográfico. Apesar da força da palavra, ou melhor, como escreve Jonathan Rosenbaum, da força da “escrita”, o objecto central das suas explorações terá sido a imagem: onde começa e onde termina? Quem a começa e quem a (de)termina? Quem a, ou como se, produz e quem é, ou como se é, produzido por ela? Estas perguntas servem-se ao espectador sob a forma de uma desafiante excursão por ideias, na qual a ausência-presença da imagem se deixa envolver num jogo com a palavra. Farocki é um cineasta crítico que faz crítico o próximo espectador, ele situa-o nos grandes debates da nossa época (a tecnologia, o trabalho, a guerra…) como uma bússola orienta o viajante perdido no espaço. Nas próximas linhas, procuro fazer da recordação de um dos seus filmes pretexto para a devida (re)inscrição de Harun Farocki nos nossos espíritos.
Longe de supor que nos deixaria tão precocemente, dei por mim a pensar em Harun Farocki num destes dias. A notícia sobre o uso de drones nas filmagens de The Expendables 3 (Os Mercenários 3, 2014) prendeu a minha atenção. Uma tecnologia de guerra era testada num set de cinema e apresentada como uma solução “zero casualties” para a rodagem, sempre no limite do perigo, de filmes de acção e de destruição de alto orçamento. No Hollywood Reporter, lia: “As drones — also known as UAVs, unmanned aerial vehicles — are being employed for everything from warfare to Las Vegas bottle service, Hollywood is eager to draft them into filmmaking (…)”. Se desde a câmara de filmar em forma de espingarda de Marey a inscrição da guerra no cinema e do cinema na guerra era evidente, o longo romance atingia agora um dos seus pontos mais altos – e a questão da altitude importa aqui. A nova máquina vinha substituir os helicópteros na realização dos mais aventurosos “planos aéreos”. Para além disso, dará azo a inauditas sequências de acção, que privilegiam a continuidade ininterrupta do espectáculo. Naquele que foi, para mim, um dos filmes-ensaio mais incisivos de Farocki, Bilder der Welt und Inschrift des Krieges (Images of the World and the Inscription of War, 1989), a associação entre máxima visibilidade e máxima segurança é-nos dada logo nos primeiros minutos. É dela que o filme parte e é aí que o filme chega.
Em meados do século XIX, o mestre-de-obras Albrecht Meydenbauer substituiu a medição dos edifícios in loco pela tecnologia da câmara escura, produzindo, desse modo, uma “distância segura” na prossecução de uma tarefa “maior que o homem”. Com os drones – apetece dizer, alinhando-me na visão anti-cronológica da história por Farocki, “paralelamente” -, a guerra converte-se num war game onde ganha quem mais conseguir ver sem ser visto. Normalmente controlado à distância, numa sala escura, por um joystick, esta máquina de guerra produzia agora imagens da guerra no set de um filme que metralha a mais básica “distruição”. A razão é a mesma que presidiu à formação do método de medição de edifícios: máxima visibilidade, máxima segurança. Meydenbauer, pela nova tecnologia, já não tinha de subir ao andaime e ficar vulnerável ao perigo, tal como agora o realizador Patrick Hughes não tinha de pôr ninguém em risco para dar ao espectador as mais arrojadas vistas de Deus (god’s eye views).
Escreveu Paul Virilio em War and Cinema que, num conflito armado, “To be survivor is to remain both actor and spectator of a living cinema”. Esse “living cinema” é a guerra, onde ver e não ser visto parece mimetizar o “regime perceptivo” do espectador na sala escura. No seu filme, Farocki explora, em certa medida, as ramificações da tese principal de Virilio: “War is cinema and cinema is war”. Por exemplo, descobre semelhantes sobreposições, entre guerra e cinema, a propósito das manobras de diversão levadas a cabo pelo exército nazi com o fito de iludir as suas vítimas e inimigos. Primeiro, encaminhavam os judeus para carros com inscrições da Cruz Vermelha, transmitindo a estes a ideia de que estavam em segurança. Segundo, camuflavam edifícios estratégicos, por exemplo, pintando árvores nas suas fachadas [Francis Ford Coppola, nem de propósito um dos emblemas da pós-modernidade, também pintou as sombras nas casas de Rumble Fish (Juventude Inquieta, 1983) ao invés de as produzir com “luz e sombra”] ou convertendo a sua aparência exterior naquela de uma comum moradia ou ainda dissimulando aeroportos onde nada de importante havia a atingir (estratégias típicas no cinema de estúdio hollywoodesco, que erguera cidades inteiras feitas de fachadas sem edifícios ou edifícios sem fachadas). A máquina nazi produz o seu “living cinema”, numa tentativa de sossegar a vítima e ludibriar os “mil olhos” do inimigo, que em câmaras fotográficas instaladas nos aviões de guerra ia avançando, a cada imagem, a cada re-velação, no sentido da vitória total num conflito que já era essencialmente “perceptivo”.
A certa altura, as imagens do mundo e a inscrição da guerra transformam-se em imagens do mundo como inscrições da guerra. O plano do rosto feminino a ser maquilhado (imagem do mundo) inscreve o gestus dos nazis. Na guerra, a mise en scène é encarada como uma fundamental operação de sobrevivência ou mesmo de efectivo “ataque” ao inimigo; de novo, a vitória passa por ver e não ser visto. É entre “o aqui e o alhures”, como diria Godard, ou é entre a distância que separa o meu olhar do olhar do outro, que a reflexão de Farocki sobre o poder e a tecnologia ganha forma. Saltitando entre distâncias, constrói-se um terceiro olhar: o olhar crítico, afiado como uma lança, de um cineasta que não cessa de pôr em perspectiva o que é da economia do quotidiano pelo que pertence à grande indústria da destruição e vice-versa. De facto, já em Wie man sieht (As You See, 1986) Farocki descobria no entrelaçamento das vias rápidas uma técnica de corte da paisagem semelhante àquela que opera o talhante sobre o corpo do porco – aliás, Henry Ford vira, em reverso, a futura disposição do trabalho industrial na linha de “decomposição animal” de um matadouro. Parece que o cineasta alemão nos diz, a cada filme, que não há “imagens do mundo” impermeáveis à inscrição ideológica dos tempos (por isso, devemos “desconfiar delas”?); que não só nelas se produzem e reproduzem os conflitos do nosso tempo, como delas se produzem e reproduzem os conflitos por vir. O que, no século XIX, Meydenbauer estava a medir não era apenas e só a fachada da Sé de Wetzlar, mas já a distância que separa o plano de um The Expendables 3 dos nossos olhos ou o tempo que separa um míssil lançado por um drone no Iraque do soldado americano escondido na sua “sala de jogos” situada “alhures”. Farocki promoveu, e continuará a promover como poucos cineastas, o desentrelaçamento crítico de todas estas banais e graves, imeditadas e mediatas, presentes e ausentes “imagens do mundo”. Um pensador do hoje e do amanhã que sobreviverá, inextinguível.