Nas últimas conversas à pala sobre o futuro da cinefilia falámos dele. Francisco Rocha há já vários anos que vem sendo uma espécie de “cinemateca/videoclube” não oficial na blogosfera nacional, dando a ver muitos filmes da história do cinema, devidamente contextualizados, que a internet permitiu mostrar a muito mais público. Agora chegou a vez de prolongar a sua actividade de programação que mantém no blog M2TM (My Two Thousand Movies) e iniciar-se in loco na apresentação de filmes. O ciclo é dedicado a cinema italiano de género mostrando um filme de terror gótico, um spaghetti western, uma commedia all’italiana, um giallo e um macaroni combat.
O terceiro dos filmes que compõem a programação é um dos mais conhecidos de Sergio Corbucci de quem aliás se pode dizer que podia representar quase todos os géneros do ciclo. Produção franco-italiana de 1968 com Jean-Louis Trnitignant [Un homme et une femme (Um Homem, Uma Mulher, 1966) ; Et Dieu… créa la femme (E Deus Criou a Mulher, 1956); Amour (Amor, 2012)] a aceitar ser o protagonista de um western spaghetti apenas se não tivesse que decorar falas. O resultado foi Silence, um pistoleiro mudo, contratado para matar (em legítima defesa, sempre, é esse o seu método) o caçador de recompensas Loco (Klaus Kinski).
Se se pode pensar na legítima defesa como o atributo da dignidade do herói, ela aqui está mais relacionada com a questão do silêncio. Passado durante o grande nevão de 1898 no Utah, no qual, devido às condições adversas, muitas povoações ficavam isoladas e as carências das populações chegavam ao ponto do canibalismo, o que aqui está em causa é a luta para ter voz. Isto é, saber como se articulam os sistemas de poder e quem tem “voz” ou autoridade, sobretudo em momento de desnorte, no qual muitos bandoleiros aproveitavam para pilhar as propriedades. Assim entre Silêncio, os bandidos, os caçadores de recompensas, o xerife, o que se instala é uma luta encoberta de jurisdições, sendo que naquele o traço de actuar em legítima defesa tem a ver antes com uma concepção algo legalista do que com bondade.
Nesse sentido ainda “o grande silêncio” é menos o do protagonista (e sabe-se que o final foi um dos motivos pelos quais Il grande silenzio (1968) não agradou muito ao grande público) e mais o do sistema de justiça no falhanço em impor a sua “voz”. Além dessa dualidade entre a fala e o silêncio (que surge adensada pela presença “gritante” de Ennio Morricone na banda sonora), o filme de Corbucci impõe trazer para quem o vê a dualidade que o cinema sempre carregou entre “o rosto e a paisagem”. Se ela normalmente suporta a ideia de que o cinema se joga algures entre a proximidade e a intimidade do rosto e a afastamento e o realismo da paisagem, aqui essa dualidade mantém-se mas em tensão. Digo tensão, não inversão, como no cinema da contemplação do rosto como paisagem (Carl Dreyer) ou no da leitura da paisagem como rosto (James Benning, por exemplo).
Os grandes planos das cenas de acção, sobre os rostos ou os dedos nas armas, servem para fazer acelerar o pulso do espectador e escapar às limitações orçamentais. O afastamento sobre a neve feita de espuma de barbear, contudo, “explica” com o branco uma certa proximidade ao espaço do realismo negro do filme. Quer-se dizer que o branco produz o negro, a serenidade da natureza, a crueldade da violência. Nesse sentido, Il grande silenzio é um filme extravagante e rude onde ninguém consegue muito bem o que quer (nem Corbucci, talvez) e onde paira o outro lado da paródia, uma espécie de alma indecidível do western spaghetti. E na morte do silêncio não posso não me lembrar de Vincent Gallo (esse que tanto fala) nas neves de Skolimowski.