Na primeira Sopa de Planos, fomos à praia. Agora é tempo de piscina. O ambiente é urbano, a água tem cloro e depende de nós para ter vida. Águas mortas, higienizadas, a piscina oferece a segurança de não ter tubarões, piranhas ou alforrecas. Tem, contudo, uma concentração, normalmente excessiva, de um bicho repugnante chamado Homem. O espaço é limitado, concentracionário, ao contrário da praia, onde o limite parece ser o horizonte. Estamos, assim, num ambiente fechado, claustrofóbico e urbano. De qualquer modo, o À pala de Walsh vai à água, deixando o mês de Agosto em banho-maria, mas prometendo novas e revigoradas braçadas críticas na rentrée.
Defronte do plano que escolho para este caldo veraneante [de Trail of the Pink Panther (Na Pista da Pantera, 1982)] não posso deixar de o colocar mentalmente ao lado de uma outra imagem que parece funcionar como antónimo desta. Penso em A Bigger Splash, o famosíssimo quadro de David Hockney, onde se vê o resultado de um salto para uma piscina (sem que nunca se veja quem acabou de saltar). A propósito do quadro, Hockney referiu-se a ele como um exercício sobre o movimento e a quietude: “most of the painting was spent on the splash and the splash lasts two seconds and the building is permanent there. That’s what it’s about actually”. Portanto, o que choca na pintura é perceber que a alvenaria, a calma do Verão e a paisagem são coisas que duram tempo infinito quando justapostas com a rapidez ejaculatória de um chapão. O que Blake Edwards faz é exactamente o oposto; ele contraria a própria noção de recorrência, de hábito, de experiência empírica. E contrariando as nossas expectativas faz-nos rir pelo desenlace (é disso que se faz a comédia, não é?). Ou seja, quando o inspector Dreyfus salta para a sua piscina e esta em vez de originar o respingar líquido habitual acolhe-o como que em braços que embalam não podemos resistir a soltar uma alarve gargalhada. Afinal a piscina está cheia de gelatina. O que Edwards faz é portanto desafiar o próprio jogo entre o que perdura e o que perece, produzindo um subproduto cujo poder cómico (esse sim) é infatigável.
Ricardo Vieira Lisboa
Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011) praticamente abre e fecha com duas “piscinas”: uma “natural” (um lago), outra propriamente dita. Entre elas, vida e morte. Tudo começa nesse lago, com Anders tentado pelo suicídio, ideia de que desiste (resiste), voltando “à tona” – da água e da vida. O que se segue é o perturbante acompanhamento do primeiro dia de Anders, em processo de desintoxicação, num paulatino “regresso à normalidade”, visitando alguns amigos na cidade e acorrendo a uma entrevista de emprego. A noite tem tudo para ser agradável: é Verão, Anders vai a festas de amigos, conhece algumas pessoas e revê outras, troca impressões, bebe socialmente. Acaba, já de madrugada, numa piscina com um amigo e duas (belas) estranhas. Mas, tal como durante todo o dia, em nenhum momento Anders está verdadeiramente lá, antes contemplando tudo sob a lente da nostalgia, do já-vivido, do repetido (e do irrepetível, porque o melhor lhe parece irremediavelmente lá atrás), como um espectador – afinal de contas, como nós, espectadores, que, sob a lente das nossas vivências e experiências, (ab)sorvemos os filmes. É isso que Anders vê – e nós também, através do seu olhar – neste plano (et por cause subjectivo): uma cópia, um simulacro do já-vivido (e inelutavelmente perdido). Por isso, apesar da vida (água, luz, cor, a beleza desta mulher que o tenta resgatar ao abismo) que inunda esta manhã – que, tal como a noite que findou, tem tudo para ser feliz –, será ainda a morte que Anders tomará num poderoso shot de heroína. I remember thinking: “I’ll remember this”. Anders dixit.
Francisco Noronha
Não chegam a trinta segundos os planos da piscina de Somewhere (Algures, 2010) de Sofia Coppola mas quem os viu dificilmente os esquece. Stephen Dorff e Elle Fanning, pai e filha, mergulham na piscina, planos separados e depois, num plano de conjunto (e é a escolha da escala aquilo que aqui mais enternece), ambos fingem dançar e tomar chá, submersos na água azul. Momento de idílio [como quase todas as piscinas; ou não tanto, lembro-me de Sunset Blvd. (Crepúsculo dos Deuses, 1950) de Billy Wilder, por exemplo]? Momento de felicidade? Antes o espaço da sincronia entre a acessibilidade das coisas (Dorff é uma estrela que tem tudo à mercê) e a vontade, o desejo, a curiosidade de as ter. Embora estejamos sempre a pensar a partir do interior da redoma, do castelo do protagonista (o Chateau Marmont Hotel onde vive), e a partir da luxuosidade da água límpida em recolhimento resort, Coppola quer captar esse afundamento para o chá, como ídilio no idílio: o sem tempo e sem espaço onde se cortam as ligações com a ansiedade da fama e da solidão e onde interessa o estar com. Depois, já fora da piscina, mas ainda nessa sequência que começara com eles a jogar ping pong, há esse zoom out lento sobre os seus corpos ao sol. No final, Coppola deixa ver uma réstia de piscina, o céu azul e um pássaro que cruza o plano num último momento. Não há aqui paz, felicidade, férias ou paraíso. Trata-se simplesmente da sobrevivência, ou como na letra dos The Strokes que já entrou nos poros destas imagens: “Sit me down /Shut me up / I’ll calm down / And I’ll get along with you”.
Carlos Natálio
(Atenção aos spoilers.)
O elemento água atravessa mais que um filme de Shyamalan – também por isso é, hoje, um dos maiores herdeiros de Jacques Tourneur [lembro a cena na piscina em Cat People (A Pantera, 1942) ou os planos espelhados na fonte em The Leopard Man (O Homem Leopardo, 1943)]. Do mais recente The Last Airbender (O Último Airbender, 2010) até Signs (Sinais, 2002) – o calcanhar de Aquiles dos extraterrestres… – a água vai preenchendo a paisagem dramática do seu cinema. Mas nenhum mergulha nela como Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006), não só a obra-prima maior de Shyamalan mas também um dos mais belos filmes à face da Terra. É dela que emerge a história, digo, Story, a ninfa vinda de outro mundo que vai abalar a vida do porteiro Cleveland Heep. Esta dupla, interpretada magistralmente por Paul Giamatti e a belíssima Bryce Dallas Howard, encontra-se através do elemento água e despede-se numa apoteose líquida que sai do corpo, dos ares, das profundezas… de uma piscina. Chove, chora-se, a câmara, submergida, filma à distância a separação: a chegada da águia Eatlon que leva Story. Que leva a história. E o filme termina, de novo, lançando para as urtigas os lugares comuns caricaturados pela e na personagem do crítico de cinema, que antes, bem antes, associara os momentos de chuva no cinema a instantes de purificação. Não é uma simples purificação que acontece no fim. Bem para lá disso, baptiza-se um renascimento. Com Story, Cleveland Heep afoga os seus fantasmas e reaprende “a acreditar”. Salvar o mundo, para a ninfa, é salvar aquele homem. A câmara encontra na agitação da água da piscina, na pouca clareza da imagem liquefeita (quase fauve), o ângulo justo para encerrar sem encerrar uma fábula sobre o amor e a fé, ou sobre o restauro da fé no amor. E essa fé e esse amor – os únicos temas da obra de Shyamalan, mas que aqui atingem os píncaros em pathos e força poética – precisam de outro mundo. Story, a história, vem de lá para cá para redimir a falta de crença que habitava cada casa, cada vida, do anónimo condomínio, miniatura concentracionária de toda a América massacrada do pós-11 de Setembro.
Luís Mendonça