Poucos minutos de Alentejo, Alentejo (2014) passam até que nos deparamos com a seguinte situação: um grupo de homens cantantes viaja para a capital em evidente excitação, vão apresentar a sua arte às gentes da cidade. Não demora para que se perceba que afinal o seu espectáculo é apenas um dos muitos entretenimentos que compõem o Mega Pic-Nic do Continente e quando os homens tentam cantar são interrompidos pela voz de um altifalante que sucessivamente avisa os espectadores que pouco falta para o concerto de Tony Carreira. Serve este momento para situar o Cante alentejano no actual panorama da cultura popular portuguesa: ofício exótico-rural para lisboeta ouvir e símbolo de um nacionalismo de reclame televisivo para grande superfície comercial (evidentemente a baixo da arte romântico-trágica do cantautor da nação lusa neste século XXI).
A intenção por de trás deste filme de Sérgio Tréfaut é pois não só evidente como assumida: dar início a uma revisitação crítica do Cante à imagem daquilo que se procedeu com o Fado no último par de décadas (que passou de canção do regime a canção da moda – com os(as) novos(as) fadistas a surgirem em hordas todos os meses). O filme surge pois em simultâneo com a candidatura do Cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO com patrocínio da câmara de Serpa, uma das principais propulsionadoras da candidatura. Poder-se-ia pois dizer que se trata de um filme de encomenda, e talvez não se fuja muito da realidade se assim se pensar. A questão prende-se no entanto em perceber de que forma isso é ou não uma limitação ao objecto cinematográfico e se essa limitação, a existir, afecta de facto o filme.
Talvez para conseguir responder a esta interrogação seja mais fácil recorrer ao conjunto da obra do realizador. Fora a duas primeiras longa-metragens [Outro País: Memórias, Sonhos, Ilusões… Portugal 1974/1975 (2000) e Fleurette (2002)] – o primeiro talvez por ser primeira obra e por tratar de um assunto ainda dado a muitos apertos de coração e o segundo pela natureza pessoal e íntima do que se aborda destacam-se das restantes – os filmes de Tréfaut pautam-se por um certo distanciamento entre clínico e o anónimo: veja-se Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009) e isso torna-se por demais evidente. E no caso da ficção Viagem a Portugal (2011) o pendor clínico toma sem dúvida preponderância sobre tudo o resto. A juntar a isso não se poderá deixar de notar a importância da intervenção cívica/política dos seus filmes, evidentemente em Outro País pelo novo olhar (olhar de estrangeiros) que lança sobre a revolução, mas também em Lisboetas e Viagem a Portugal nas questões da emigração. Percebe-se portanto que Alentejo, Alentejo não destoa do conjunto da obra, aliás, integra-se perfeitamente, por um lado, o distanciamento clínico-anónimo que a encomenda obrigava, por outro o empenhamento político que está na génese do projecto.
Se o filme peca, fá-lo por seguir um certo retrato sociológico do Cante. Desde a sua origem como cantiga de trabalho feita para auxiliar na jorna os trabalhadores (a apanha da azeitona, a ceifa do cereal, a recolha do arroz) até à sua reabilitação na escola (vemos dois grupos corais de jovens praticando o Cante em horário escolar com o professor), passando pela apresentação da região na actualidade (o desemprego, a emigração e a migração) e no passado recente (ouvimos os depoimentos de mais do que um ancião contando-nos como era a vida antigamente, não havia sapatos, havia uma sardinha para três, havia fome e miséria…). Aí Tréfaut cai numa certa fórmula típica da televisão e aí a coisa descamba para o formulaico (haverá uma versão para televisão com cerca de uma hora – não fosse a RTP um dos principais financiadores do filme).
No entanto aquilo que mais interesse em Alentejo, Alentejo é de outra natureza, é a forma como uma e outra vez Tréfaut faz a ligação entre o cantar e o comer. São as conversas sobre ensopados de borrego e porco com ameijoas (à alentejana quero eu dizer), são os enchidos em pires e copinhos de vinho tinto, e são as açordas de bacalhau. Ai que boas! Ao longo do filme assistimos à preparação e sucessiva degustação desse manjar típico alentejano sempre sucedido de um cantar, por norma com os cantantes ainda sentados à mesa com os pratos vazios defronte. São esses planos de conjuntos (com por vezes mais de uma dúzia de pessoas) diante das mesas de jantar que mais nos envolvem. Aí o realizador consegue visualmente (porque isso já havia sido feito por vários depoimentos) aliar a arte à rotina.
O Cante é pois tanto canção trabalho como também canção de ócio e por isso nele se vêem reflectidas o meio e as condições das gentes (não é por acaso que algumas canções já tratem de temas como a desertificação, as terras abandonadas e o desemprego). Uma arte onde a morte entra com o mesmo peso que os desgostos de amor ou a saudade. E a verdade é que Sérgio Tréfaut consegue por vezes filmar aquelas gentes com tudo isso em mente, enchendo-as de uma solenidade que há muito lhes era merecida.