Se Die Büchse der Pandora (A Boceta de Pandora, 1929) é hoje um dos mais aclamados filmes mudos e se a sua protagonista, Louise Brooks, se tornou um ícone incontornável da história do cinema isso deve-se em boa parte a Henri Langlois, co-fundador e director da Cinémathèque Française que resgatou – filme e actriz – das brumas da memória nos anos 1950. É nesse contexto que a obra mais célebre de Georg Wilhelm Pabst será exibida, inserida num ciclo de homenagem a Langlois na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
O cinema mudo era coisa do passado quando Henri Langlois, incentivado pelo americano James Card, chamou a atenção para Die Büchse der Pandora. O filme de Pabst, um dos mais famosos realizadores europeus do mudo (cuja carreira entrou pelo sonoro e chegou ao pós-Segunda Guerra Mundial), fora um flop que caíra no esquecimento. A sua estrela, a americana Louise Brooks, há muito que se havia retirado do cinema, vivendo numa reclusão digna de Sunset Blvd (O Crepúsculo dos Deuses, 1950) de Billy Wilder. O que se seguiu à redescoberta do filme de 1929 colocou este no panteão das obras máximas do mudo. Louise Brooks emergiu qual aparição cinematográfica, célebre como nunca tinha sido até então: o icónico corte de cabelo, que fora tão influente, tornar-se-ia para sempre a sua imagem de marca. E gerou descendência, do corte que também ficaria sempre associado à portuguesa Beatriz Costa ou à composição sublime de Anna Karina em Vivre Sa Vie (Viver a Sua Vida, 1962) de Jean-Luc Godard.
Die Büchse der Pandora será das mais sensuais experiências do cinema mudo – e aqui estas estavam longe de ser raras. Tão excessivo foi o filme no seu retrato de liberdade sexual que algumas das cópias foram alteradas à época. Tudo em Pandora irradia desejo e morte, de tal forma que, visto hoje, apetece associar-lhe mil e um subtítulos de outros filmes, livros ou canções, como se o magnetismo desta obra sugasse como um poderoso íman uma miríade de referências culturais.
Baseado em duas peças de Frank Widekind, Die Büchse der Pandora, gira em torno de uma femme fatale, Lulu, mulher que pelo filme salta de homem em homem e vai deixando atrás de si cadáver atrás de cadáver. No filme de Pabst, porém, Lulu agrega uma peculiar inocência à sua inegável libertinagem de tal forma que um rasto de problemas segue num rasto de encantamento, de uma fragilidade tal que enquanto convite à posse convida também ao mais puro amor. Louise Brooks é a chave deste mistério insolúvel, num apogeu de composição feminina em cinema.
Terá sido um acaso do destino que juntou a americana Brooks ao austríaco Pabst na Berlim de todos os riscos. Na altura, como é frequentemente notado, o movimento de estrelas era da Europa para os Estados Unidos e não ao contrário. Mas Brooks, uma dançarina em espectáculos de variedades e depois actriz secundária em cinema, fez o caminho inverso após Pabst a ter visto em A Girl in Every Port (Uma Rapariga em cada Porto, 1928), um dos primeiros filmes de Howard Hawks, e a Paramount lhe recusar um aumento salarial. Diz-se que quando Pabst recebeu o “sim” de Brooks estava a entrevistar uma desconhecida Marlene Dietrich para o papel de Lulu. Ele, que já filmara algumas obras soberbas onde o duro retrato social era alicerçado em interpretações femininas de excepção [Asta Nielsen e Greta Garbo em Die Freudlose Gasse (Rua Sem Sol, 1925), e Édith Jéhanne e Brigitte Helm em Die Liebe der Jeanne Ney (O Amor de Joana Ney, 1927)] encontrou em Brooks a actriz a que mais ficaria associado. Depois de Pandora filmou-a em Tegbuch einer Verlorenen (Diary of a Lost Girl, 1929), considerado o segundo melhor trabalho da actriz.
Lulu seria o papel da vida de Louise Brooks que, aliás, terá reconhecido que a personagem era uma versão dela: bonita, emancipada, libertina, mas também frágil e conhecedora das agruras da vida. A Brooks foram associadas múltiplas relações, que incluíam milionários e uma one night stand com Greta Garbo. Atingiu o auge da carreira antes dos 25 anos, e o que se seguiu teve momentos quase inacreditáveis para quem fora a Lulu de Pabst, incluindo trabalhar como empregada de uns armazéns de luxo em Nova Iorque. A naturalidade com que encarnou a “mulher da vida” (ou deveremos talvez dizer, mulher de vida) do filme de 1929 tem gerado cantos de louvor pela sua representação invisível, mas a mundana Brooks não era apenas uma cara bonita. Nos intervalos das filmagens tanto dançava ao som de jazz tocado por um pianista que pedira a Pabst para trazer para o set, como lia Schopenhauer, como contaram, respectivamente, Kenneth Tynan e Lotte Eisner. No seu seminal “The Haunted Screen“, Eisner vai ao ponto de descrever Brooks como “an actress who needed no directing, but could move across the screen causing the work of art to be born by her mere presence”.
Mas voltemos a Die Büchse der Pandora, ou “caixa de Pandora” (o título português, empregando o termo “boceta” é curioso se tivermos em conta o que pode significar em português do Brasil). O título alude a uma passagem, sensivelmente a meio do filme, quando Lulu está a ser julgada pelo assassínio do seu noivo, o bem mais velho director de um jornal, morto na noite de núpcias após um dos vários mal-entendidos de emoções fortes que povoam o filme. A extraordinária Lulu é comparada à Pandora da lenda, capaz de destruir o mundo. Lulu pode ser, de facto, vista como uma destruidora (ainda que inconsciente), mas talvez só porque o seu brilho [e como brilha a pele branquíssima de Brooks neste filme que partilha com o Nosferatu (1922) de Murnau o director de fotografia, Günther Krampf] é demasiado forte e queima todos os que se aproximam. Não conseguem deixar de se aproximar, tamanha é a atracção dela.
(Atenção ao spoiler)
Todos a querem usar, e muitos estão dispostos a pagar por ela. Lulu poderia ser a mais triste mulher do mundo, mas o seu sorriso mágico remete mais para milagre e menos para pecado. Desde o início do filme, vemos os efeitos de Lulu nos que a rodeiam, sempre consumidos pelo desejo de a ter (e ela, que a todos se dá com natural generosidade, não percebe o mal que causa nos outros e, no limite, a si própria). Do antigo sugar daddy caído em desgraça a Schön, o director do jornal, do seu filho Alwa à colaboradora artística deste e, no final, o próprio Jack o Estripador a quem ela se entrega e que toma, literalmente, a sua vida nesse derradeiro suspiro que não vemos.
Há muitos momentos concebidos para que a aura de Lulu enfeitice também o espectador (por exemplo as cenas iniciais com o patrono e Schön, a visita a Alwa de doce provocação ou as cenas do espectáculo em que Lulu consegue reconquistar Schön). Mas alguns há que atingem o sublime. Veja-se a cena em que Schön lhe coloca uma arma nas mãos e lhe pede que se mate para que ele, consumido pelo ciúme, não tenha de o fazer. É dos minutos mais poderosos do filme, em que dor e desejo, paixão e desespero surgem numa simbiose perfeita sugerida numa exímia montagem.
Die Büchse der Pandora é um dos cantares de cisne do cinema mudo alemão, que tantas obras-primas de sombras deu ao mundo. É também uma interessante fonte histórica para o espírito hedonista da fatídica República de Weimar, que daí a poucos anos daria lugar ao regime nazi que consolidaria a fuga de artistas para os Estados Unidos – entre eles o actor que encarnara o jovem Alwa no filme de Pabst, Franz (depois Francis) Lederer.
Die Büchse der Pandora é o filme de Louise Brooks, não obstante as boas interpretações do conjunto de actores. Brooks é daquelas figuras larger than life, uma estrela cadente no mundo do cinema que teve, para o bem e para o mal, uma vida de filme antes, durante e depois das câmaras se interessarem por ela. Die Büchse der Pandora foi o período breve em que essa estrela passou pelo firmamento, dirigida pela mestria de Pabst. Foi ela que deu ao filme o brilho único que o fez perdurar. E cada vez que o revemos, essa estrela resplandece como se fosse a primeira vez, agora já com o reconhecimento devido. Ruy Belo escreveu sobre Marilyn Monroe – com quem Brooks é por vezes comparada – “em vez de Marilyn dizer mulher”. Nós dizemos também “Mulher” de cada vez que vemos Louise Brooks, o seu “capacete negro” não nos deixando acreditar que um dia alguém viria a dizer que “os homens preferem as loiras”.
Die Büchse der Pandora passa dia 19 de Setembro, às 19h, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema