De entre as muitas coisas estranhas que me têm passado pelas mãos nos últimos tempos (notificações de dívida da segurança social escritas numa língua que não a portuguesa, e por aí fora), a que mais me divertiu foi, sem dúvida, o último álbum dos já velhinhos Sparks: The Seduction of Ingmar Bergman (que, datando embora de 2009, só agora me perfurou os tímpanos).
Trata-se aqui de uma obra que nasceu por encomenda. Eis os factos: em meados da década passada, os Sparks foram contactados pela Sveriges Radio (a rádio nacional sueca), no sentido de criarem um rádio drama que, no seu enredo, deveria obrigatoriamente comportar um «elemento sueco». A escolha da banda – uma vez eliminada a opção IKEA –, essa, recaiu sobre Bergman.
A relação dos Sparks com o cinema não é nova: nos anos 70, os membros da banda foram convidados por Jacques Tati a colaborar, como actores e compositores, na construção de um filme que haveria de ser abortado pela morte do cineasta (Confusion, para o qual chegaram a gravar a canção com o mesmo nome que se encontra no álbum Big Beat, de 1976). No entanto, mesmo tomando em linha de conta estas afinidades electivas, há que convir que a combinação dos falsetes dos Sparks com a gravidade de Bergman é, no mínimo, um bocado esdrúxula. Pois bem: apesar de todas as probabilidades em contrário, a mixórdia funciona, resultando numa ópera-bufa-pop-todo-o-terreno (porque sem género definido) que, ao longo de vinte e quatro canções, mergulha num pesadelo um dos cineastas que melhor soube figurá-los.
Resumo Europa-América do libreto: estamos na Estocolmo de 1956, pouco tempo depois de Bergman ter sido premiado pela primeira vez em Cannes, pelo seu trabalho em Sommarnattens Leende (Sorrisos Numa Noite de Verão, de 1955). Sem nada para fazer, Bergman dá por si numa sala de cinema, a ver o que descreve (em tom nauseado, e ao som do distópico sintetizador de Ron Mael) como «arte escapista da pior espécie», leia-se: «um típico filme de acção americano», cujo nome nem sequer consegue pronunciar. Já em agonia, Bergman abandona a sala, mas, ao fazê-lo, descobre que as ruas de Estocolmo cederam o seu lugar às ruas de Hollywood.
A partir daqui, ficamos entregues ao gesto de sedução que o título anuncia, com Bergman a ser ininterruptamente tentado pelos emissários do grande satã, isto é: pelos diversos funcionários de um estúdio de Hollywood, que – a troco de um punhado de dólares – pretendem convencê-lo a tornar o seu cinema «mais apelativo» (“Mr. Bergman, we’re not hicks / But we must deliver kicks / Still there is some middle ground / Hollywood can be your town”; “Smiles Of A Summer Night / Hope I got the title right / Why not a quantum leap / You still haven’t hit your peak”). Pelo meio, haverá divas histéricas, caçadores de autógrafos, uma tentativa de evasão, uma perseguição policial (com Bergman a correr ao som dos rockets disparados por um helicóptero) e, sobretudo, o hilariante relato do encontro do cineasta com aqueles que venderam a sua alma ao diabo (“Alfred Hitchcock, bless his soul / There chomping on a dinner roll / The Man Who Knew Too Much done twice / In Hollywood done twice as nice”).
Escusado será dizê-lo: estamos em presença de um texto alucinogénio que não se deixa intimidar, de modo algum, pela importância da figura que escolheu retratar, tomando Bergman como objecto de homenagem, mas também – e fundamentalmente – como o motivo de uma paródia cáustica (escute-se, por exemplo, “Oh My God”, onde o cineasta roga a Deus que se manifeste… ajudando-o a fugir de Hollywood).
É um jogo entre a reverência e o sacrilégio que, à sua maneira, a partitura fará por mimetizar, oscilando – também ela – entre o leve (“En Route To The Beverly Hills Hotel”) e o grave (“I Am Ingmar Bergman”). De resto, o álbum constitui uma espécie de súmula enciclopédica dos vários avatares dos Sparks, movendo-se com graça entre o glam de Kimono My House, o synth-pop de No. 1 In Heaven (agora em versão negra) e o electro-pop tutti frutti de Lil’Beethoven, num cadinho complementado por citações bem medidas de Kurt Weill e Stravinski.
Uma última nota: tanto quanto sei, The Seduction of Ingmar Bergman será a breve trecho adaptado ao cinema pelo canadiano Guy Maddin. Parecem-me freaks a mais na mesma capoeira, mas pode ser que esteja enganado (outra vez).