Ferme tes jolis yeux cette nuit, ma petite Lise,
ferme tes jolis yeux, car la vie est un songe.
Alex canta para adormecer a sua petite Lise num doce prelúdio de abandono, tragédia menor face à de La petite Lise (1930) de Jean Grémillon, primeiro filme sonoro do cineasta francês. Uma subtil referência, esta. Com efeito, Mauvais sang (Má Raça, 1986), primeiro filme a cores de Leos Carax, insere-se igualmente numa mutação audiovisual que se operou no cinema francês dos anos 80, conferindo uma nova plataforma para as expressões artísticas – cinéma du look – , contrária ao espírito de auteur dos Cahiers (muito ligado ao realismo), e apologista, entre outros, de um certo romantismo absoluto, que não mais tem a ver com “verdade”, mas com a natureza das aparências. Carax criou então esta nova petite Lise (Julie Delpy), na linha dos seres inefáveis que pisam o chão pouco firme – e perdoem o fatal pleonasmo – da mais inefável das suas longas-metragens. Mas existe ainda outro anjo nesta história, Anna (Juliette Binoche), cuja expressão facial, os gestos, a brancura suave da pele (levemente ruborizada) e a mudez dos lábios quase esquecidos da voz (“j’aime bien tes lèvres muettes, comme celles des actrices d’autrefois”) provocam em Alex aquilo que se pode chamar de transe visual. Aliás, tal como acontece com o voyeur do bairro (Carax numa aparição à Hitchcock) e, enfim, tal como nos apanha a nós, primeira categoria do voyeurismo.
Sem ser absolutamente essencial revelar os traços de sinopse de Mauvais sang, porque não é essa a corda que nos segura na suspensão fílmica, vale a pena referir aquilo que são os motores ocultos de uma narrativa distópica, orientada pelo conceito noir: há um vírus (STPO) que está a contaminar os jovens que fazem “amor sem se amarem”; há uma fórmula desenvolvida para a cura, mas está praticamente inacessível. É aqui que Alex (Denis Lavant) entra como figura escolhida, em função da sua agilidade apurada (sobretudo das mãos), para esta missão, desertando do amor da sua petite Lise, em busca – genuinamente – do trago da liberdade, essa nota de mar a que ele tanto alude (“au bord de la mer”).
O Alex de Mauvais sang é o mesmo Alex do anterior Boy Meets Girl (Paixões Cruzadas, 1984) e de Les amants du Pont-Neuf (Os Amantes da Ponte Nova, 1991): o alter-ego de Carax confiado a Denis Lavant, actor, poder-se-á dizer, poeticamente resgatado do cinema mudo. Há nele, ao mesmo tempo, uma graça antiga e uma decadência moderna, a fusão ideal para um cinema com verdadeira consciência de forma. O “jogo” de Carax começa no próprio anagrama que é o seu nome artístico (a partir de Alexandre Oscar Dupont, onde recupera “Alex”), e perpetua-se na matriz de cada filme e no todo da sua obra. Em Holy Motors (2012), por exemplo, Alex já passou a chamar-se Oscar, e pressente-se o devir de um (Sr.) Dupont, uma espécie de nostalgia lânguida que se espraia na voz de Kylie Minogue quando canta “Who were we/When we were/Who we were/Back then?”, súplica à intensa juventude deixada lá atrás, em Mauvais sang.
Luzes a piscar, vozes ventríloquas (prática muito godariana), cenários fabulísticos, cores garridas, alternância de silêncios ternos e momentos em que a música exacerba a performance, tudo isto costurado numa intertextualidade enérgica, aforística e inocente – deixemos de parte as afinidades estéticas, não classifiquemos. O olhar que Carax parece chamar a si não é provido de etiquetas, o apelo maior dirige-se às emoções mais puras. Wong Kar-Wai procurou o mesmo nos seus primeiros filmes, Wong gok ka moon (Ao Sabor da Ambição, 1988) e Ah fei zing zyun (Days of Being Wild, 1990), pouco posteriores a este e imbuídos desse tom robusto dos instintos.
A inocência desenhada para a juventude das personagens centrais de Mauvais sang não será um estado bruto, um não “saber ver”, mas a liberdade de se escolher “como ver”. E essa escolha é sempre emocional, irracional, compulsiva e sinistramente bela: chegámos ao coração que bombeia o sangue contaminado dos amantes. Ultrapassando a teoria platónica da beleza, Eugenio Trías, nos seus escritos O Belo e o Sinistro, revisita a noção dos primeiros românticos de que a transição da beleza para o sublime comporta a dor; é, portanto, esse elemento sinistro que injecta vitalidade na beleza. Assim, e conferindo-se a aplicabilidade rigorosa deste conceito, o cinema de Carax permeia-se de uma certa oscilação, por vezes dolente por vezes veemente, entre o júbilo e a tortura. O sentimento do sublime nasce então dessa ambivalência. O momento mais paradigmático de tal impetuosidade graciosa, amplamente citado por todos aqueles que viram Mauvais sang (e mesmo os que não o viram por inteiro), é a esquizofrénica performance de Denis Lavant/Alex, ao som de Modern Love, de David Bowie, em representação máxima de uma palavra que se repercute algures na gruta da liberdade: juventude, juventude, juventude… Mas além desta curta trajectória efusiva, há outra, a derradeira, bem mais longa, no banco do carro, fazendo lembrar remotamente a condição de Delon em L’insoumis (O Indomável, 1964), de Alain Cavalier: o homem que carrega a morte numa ferida aberta (no caso de Delon, praticamente durante todo o filme). O desaparecimento de Alex surge assim como o reflexo melancólico das palavras que cantava para Lise, na despedida. “Ferme tes jolis yeux, car la vie est un songe.”
Esta segunda longa-metragem de Leos Carax e a que lhe antecede, Boys Meets Girl, serão repostas no Espaço Nimas, em versões restauradas, a partir do dia 18 e, intercaladamente, até ao dia 24. Uma oportunidade para recuar mais de 20 anos na obra do realizador francês, e descobrir ou rever os seus “smiles of speed”.