Carlos Natálio (CN), Luís Mendonça (LM) e Ricardo Vieira Lisboa (RVL) percorrem os últimos dias de MOTELx, com textos dedicados a alguns dos mais importantes filmes no festival, tais como The Raid 2, Coherence, Os Canibais, La danza de la realidad e Honeymoon.
Bad Milo! (2013) de Jacob Vaughan
Longe vão os bons velhos tempos em que os ETs vinham do espaço. Agora, solipsisticamente, já só há demónios (interiores) e eles vêm do rabo. Ter o demónio no rabo (o que não deve ser confundido com ter o diabo no corpo), parece ser uma excelente proposição filosófica, aliás já Sócrates falava do seu daemon interior embora penso que não fosse bem isto o que tivesse em mente. No filme de Jacob Vaughan a literalidade que implica ter um ser a sair do nosso ânus para morder as extremidades dos nossos “inimigos” (numa das cenas, há uma pila comida em snack pelo nosso amigo Milo) é complementada pelo lado metafórico. Duncan (Ken Marino) tem problemas de stress: o patrão explora-o e põe-no a despedir pessoas num escritório que era outrora uma WC, a esposa entra naquela fase biológica em que começa a pedir bebés e o namorado da mãe, muito mais novo insiste em explicitar os detalhes da sua vida sexual. Tudo isto dá dores de barriga a Duncan e estas são homicidas.
Quando o hipnoterapeuta de Duncan (Peter Stormare) lhe explica que tudo aquilo é uma metáfora, Duncan reage : “I have a monster up my ass / This is the furthest thing from a metaphor”. É precisamente essa distância que Vaughan consegue, ainda que sumariamente, suprir. Desta feita, Bad Milo!, espécie de versão anal do já psicanalítico It’s Alive (O Monstro Está Vivo, 1974) de Larry Cohen, joga sempre entre a série B que convoca os critters movies nos anos 80, como os Gremlins (Gremlins – O Pequeno Monstro, 1984), Critters (Critters – Seres do Espaço, 1986) e a condição de alienação dos trabalhadores explorados numa sociedade que implica a castração e a repressão dos sentimentos de vingança. Como na fase anal de Freud, também para Duncan a questão é a de controlo dos intestinos. Esta duplicidade entre o literal e a metáfora está também no rosto do analógico Milo: são os dentes que convocam o gore mais tromiano e os olhos grandes, estilo ET, que puxam o filme para um conto sobre dois melhores amigos, mesmo que o segundo seja parte do intestino do primeiro. (CN)
Stage Fright (2014) de Jerome Sable
Dez anos depois da sua mãe (Minnie Driver) ter levado com uma faquinha na garganta (numa noite de actuação de Haunting of the Opera), a sua filha Camilla (Allie MacDonald em modo beicinho traumatizado) serve de cozinheira juntamente com o irmão no Center Stage Camp for Performing Arts, um campo para nerds dos musicais cujo sonho de vida é cantar na Broadway. Jerome Sable sabe que o bacon do seu filme está em dirigir um slasher como um musical, sabe até que no seu primeiro filme é suposto emular os deuses pessoais (ai, aquele balde de sangue na trave no teatro…). Mas o que Jerome não sabe é como manter o jogo da imagem e da música. Só assim se explica que o assassino prolongue ad absurdum- pelo heavy metal adentro com a voz do vocalista dos Iron Maiden – os números musicais no próprio campo, que são, claramente o que de melhor Stage Fright tem para oferecer, conseguíssemos nós isolar os ditos e poupar-nos aos outros 45 minutos. E a sua piada está curiosamente mais nas letras e menos nas coreografias balofas, onde participa afoitamente esse loaf, o Meat Loaf, que acelera um pouco o desejo que em todos nós vai nascendo paulatinamente: o de que morram todos e o mais rapidamente possível.
Esse desejo mórbido surge pelo descuido com a narrativa que se limita a despejar clichés, reclichetizados no trajecto que vai dos anos 80 parando em Scream e continuando nos Screams da loja dos trezentos. Assim, todas as personagens são bonequinhos mais ou menos insuportáveis: desde o mau gosto discriminatório dos tiques abichanados do stage manager, passando pela caricatura da menina dos aquecimentos da voz, pela labreguice dos dentes podres do hillbilly local, ou pela ciumenta e irritantezinha arqui-inimiga da heroína. Todas estas habitam o mais provável dos cenários: a reconstituição do musical que levou aos fatídicos incidentes no passado deste vez com a filha como protagonista. Tudo muito explicadinho, menos dançado que o que devia, ilustrando as razões de ser um filme menor ao querer manter-se refém de uma boa ideia. Stage Fright tem escrito cerimónia de encerramento na testa e a desaceleração típica dos filmes que caracterizam esses fins de festival. Para os mais distraídos não esquecer que há um Stage Fright para ver na história do cinema mas ele é uns aninhos mais velho e tem Marlene Dietrich nas mãos do “maníaco” Hitchcock. (CN)
Rouge Sang (The Storm Within, 2013) de Martin Doepner
A segunda longa-metragem do canadiano Martin Doepner [com carreira sobretudo na assistência de realização em filmes como 300 (2006) ou The Day After Tomorrow (O Dia Depois de Amanhã, 2004)] é um filme de terror com pele de drama histórico. Em plena tempestade, na véspera da passagem de ano de 1800, cinco soldados ingleses invadem uma casa de uma família canadiana enquanto o marido está fora. Essa invasão despoleta a tempestade interior da jovem mãe, que tem a seu cargo três crianças pequenas, uma delas bebé, e lida com a ameaça de violação de alguns dos homens. Ambientado numa fotografia em tons de castanho e amarelo para o interior da casa, que facilmente pegaria fogo como diz um dos soldados, o chamber piece de Doepner tem como principal falta estar demasiado agarrado a uma ideia estrutural de argumento, que bebe da irascibilidade de I Spit on Your Grave (Doce Vingança, 1978) ou até Straw Dogs (Cães de Palha, 1971) de Sam Peckinpah.
Nessa cerebralização todo e qualquer twist e contra twist sai afectado, deixando apenas por perceber como poderia crescer a fúria dos micro acontecimentos (da sopa ao vinho, do jogo da moeda ao sexo) quem em espaço apertado deveriam ganhar um outro peso. Não acontecendo isso, nem sequer a queda para a backstory dos personagens, resta-nos assistir a um conjunto mais ou menos anódino de cenas funcionais tendo em vista o resultado final. (CN)
Open Windows (2014) de Nacho Vigalondo
Para quem viu a primeira longa-metragem de Nacho Vigalondo, Los cronocrímenes (Cronocrimes, 2007), sabe o prazer que o espanhol tira dos jogos paradoxais que se dão com os saltos no tempo. Esses saltos, motivados pela dissecação da linearidade do tempo, possuem múltiplas ramificações ou derivativas. Um exemplo é o desafio da “coerência narrativa e existencial” de Coherence (2013) de James Ward Byrkitt (presente nesta edição do festival e vista aqui pelo Luís). O outro é precisamente este Open Windows, primeiro filme em língua inglesa de Vigalondo, com Sacha Grey e Elijah Wood como colorido do papel de embrulho de uma produção que se quer mais internacional. Aqui o que salta, ou melhor, alterna constantemente, são as janelas e, com elas, o ponto de vista de um mapa de câmaras e perspectivas numa arquitectura da interacção e relação constante proporcionada pela internet e pelo digital. É por sobre esta premissa técnica que Vilalongo se pôs o escrever o seu argumento e isso deixa um sentimento agridoce a quem tinha gostado do primeiro filme.
Num MacGuffin que envolve um fã de uma estrela de cinema (sobre a qual criou um site onde coloca todo o tipo de informações e fotografias) num jogo de chantagem e no interior de uma rede de hackers, fica-se com a sensação de que o conteúdo serve a forma, isto é, que o cinema do dispositivo usa as peripécias para dar a ver como o cinema consegue filmar um ambiente de um cinema hibridizado pelas novas tecnologias. Nesse sentido, o filme, que lembra algumas “experiências” de Mike Figgis, produz uma tapeçaria de webcams, câmaras de vigilância, skypes, links, POV como first person shooters onde nem faltam as setas de direcção, gadgets de invasão de PCs e telemóveis, etc.,etc. Se falava de MacGuffin como pretexto junta-se a ideia de que Open Windows mostra como statement que a interacção de aparelhos parece tratar a acção física como apêndice de pouca importância. Isto porque em 90% do filme a acção consiste em olharmos sentados, numa sala escura, para um ecrã no qual uma personagem, fechada ela própria num quarto de hotel ou num carro, olha e interage com várias janelas do mesmo ecrã. Acção abstrata, acção que inverte a noção de real. Não é por acaso que o olhar pesado da personagem de Sasha Grey deseja apenas to go dark, isto é, fechar os olhos, isto é, estar offline, isto é, chegar ao fim do filme. (CN)
Honeymoon (2014) de Leigh Janiak
À saída de The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) de Jennifer Kent, o melhor filme que me passou pelos olhos nesta edição do MOTELx, os walshianos comentavam o quão raro era ver um bom filme de terror realizado por uma mulher. Ironia do destino quis que dois dias depois, outra mulher, Leigh Janiak, nos provasse totalmente errados, arrebatando o segundo lugar do meu pódio pessoal. Terror no feminino? Não. Sim. Talvez. O tema aqui pode dizer-se é menos caro ao universo feminino do que no filme de Kent. Se neste estava em causa a maternidade e os fantasmas da ausência masculina, o casamento e a lua-de-mel são um tema de dois, para dois, sendo mais difícil argumentar a quem pertence por excelência o dito universo, ou seja, quem está melhor habilitado para dele falar. Seja como for, o importante é que Honeymoon é um bom filme aparte as questões de género, precisamente porque faz esse trajecto da experiência particular à experiência universal, do terror físico ao “terror interior” das relações.
Se o casamento parece vir, enquanto instituição, com um atrelado de eternidade agarrado (“Till death do us part”), como coordenar isso com o facto dos entes, que dele vão fazer parte, serem seres em constante mutação? Mais do que querer construir um filme sobre as causas da mudança (sejam elas psicológicas, vampiros vindos do espaço ou gravidezes, isto não são spoilers, são exemplos da cartola) Leigh Janiak, quando coloca os seus recém casados numa cabana em lua-de-mel (cenários de mortos vivos e outros que tais, como sabemos), quer sobretudo falar em como se produz essa mudança. Mais, como muda o corpo, a alma e como o outro reconhece essa mudança. Tu és tu mas já não és tu. Duplamente hábil é o facto do filme abrir com vídeos de apresentação do casal e das circunstâncias do seu casamento. Começamos, como espectadores, por vê-los de baixo para cima, um pouco afectados pela sua extrema perfeição (felicidade, beleza, juventude, tudo lá, em formato redondinho). Também em nós à medida que as mudanças no ecrã se produzem experimentamos a nossa própria mudança. Olhar o casal de cima para baixo, com superioridade (“We’re not like them”, diz Paul sobre o casal que encontram no restaurante, dizemos nós). Até que terminamos a olhá-los de igual para igual, reconhecendo o verdadeiro romantismo inerente em querer a todo o custo aquilo que nos fez amar, mesmo quando tudo já mudou. Nesse trajecto, Rose Leslie é espantosa nessa metamorfose, o filme perdendo a pele de terror e ganhando a textura de um filme romântico, fantástico, sobre o qual me pus a desejar que Night Shyamalan pudesse criar as imagens que se seguem ao “the end”. (CN)
Alleluia (2014) de Fabrice du Welz
Fabrice du Weltz sente que existe uma proximidade entre a intensidade passional e o êxtase religioso. Não por acaso Calvaire (Calvário, 2004) tem como continuação na sua obra o Aleluia e a preservação do deus que encabeça o desejo e a adoração. Inspirado em factos verídicos – e já adaptados ao cinema em The Honeymoon Killers (Lua de Mel de Assassinos, 1969), o filme que Scorsese ia filmar mas não filmou porque se recusava a rodar planos aproximados – , o segundo tomo da trilogia do belga sobre relações disfuncionais segue de perto a história de Gloria, uma enfermeira divorciada na casa dos cinquenta (a espanhola Lola Dueñas), que se apaixona por Michel, um gigolô (Laurent Lucas). Ela permite-lhe que ele viva de seduzir e extorquir outras mulheres a troco do seu amor. Escrevia segue de perto porque, ao contrário de Scorsese, Weltz percebe que o perto é a escala do desejo. Nesse sentido Alleluia inscreve-se formal e tematicamente num realismo extremo das relações sociais (o filme podia ser uma obra dos irmãos Dardenne em que o terror também fosse gráfico, ou antes, mais gráfico) filmado em constante câmara à mão, oscilando o grão do dia e do exterior, com as cores garridas da noite e dos desvarios da carne.
Seja porque isto tudo aconteceu mesmo (acontece mesmo, diariamente), seja pelo registo cru com que é filmado passa-me pela cabeça que todos os demais filmes de aliens e monstros e vírus parecem sair de alguém que resolveu brincar ao terror, por comparação a Alleluia, the real deal. Isso talvez só explique que o verdadeiro horror é aquele que provém do género drama e que no respectivo género de terror se estilize sempre, se embeleze, aquilo que choca. Deambulações à parte, diga-se que a relação com o verídico e a partição em actos trazem Alleluia para um regime de maior previsibilidade, ainda que sempre colmatada com soluções envolventes. Por exemplo, o chiller do plano aberto em que Gloria canta uma canção com Weltz a inaugurar o terror “oficial”, a explosão sonora da dança do casal na fogueira à noite ou a discussão entre a filha e a última das conquistas de Michel. Filme sobre mortos e vivos; sobre trazer à vida aqueles que estão mortos para o amor (quando Gloria sobe a escada para ir buscar o dinheiro a Michel é a ascensão ao promontório) e trazer para a morte aqueles cuja vida impede o amor (quando Gloria desce à cave para a primeira crise de “ciúmes”). Entre a vida e morte, a subida e a descida, o mesmo desejo, a mesma vontade de preservar à custa de qualquer destruição. Aleluia. (CN)
Starry Eyes (2014) de Dennis Widmyer e Kevin Kolsch
Se há filmes que só podem ser vistos depois da meia-noite este parece ser um deles. É apenas pela noite dentro, já meio consumidos pelo cansaço próprio do final de um festival, que abraçamos uma história que procura um sentimento old school como esta. Do hand lettering do poster (lembra uma mistura de One From the Heart com Rumble Fish), ao genérico anos 80, aos efeitos especiais totalmente analógicos, aos sintetizadores de Jonathan Snipes (este ano toda a gente decidiu imitar The Thing do Carpenter) tudo convida a uma viagem no tempo. Gore controlado, tempo suficiente para conhecer a protagonista Sarah, que, aos 25 anos, vive um dilema “mefistófiliano” em versão Hollywood – a sua carreira precisa de arrancar e são necessários sacrifícios – e o terror, que bebe no Polanski anos 80, ajudam a construir o culto que se adivinha em torno desta pequena pérola condenada instantaneamente ao esquecimento institucional.
Tendo começado como uma curta na plataforma Kickstarter, Starry Eyes parece ter inscrito o problema que apresenta. A própria actriz Alex Essoe, pela primeira vez leading lady numa longa metragem, ou seja, cuja carreira precisa de descolar, desempenha precisamente o papel de alguém que tem que escolher entre vender-se fisicamente pelo seu sonho ou vender-se profissionalmente pela sua subsistência diária. Entre ser uma das milhares de raparigas que vão fazer castings todos os dias e que trabalham num restaurante de fast food para se manterem e ser the one, uma das estrelas de cinema com olhos mágicos que a olham desde a parede do seu quarto. A metáfora interessante de Starry Eyes está na forma como a construção de uma estrela implica a mudança de um olhar e, mais amplamente, um renascimento de todo um outro corpo. Porque ser especial implica matar em si o ordinário. Entre o empreendedorismo e a inutilidade dos I vitelloni (1953) de Fellini, o filme de Dennis Widmyer e Kevin Kolsch quer colocar as suas farpas à competitividade norte-americana, no fundo, “the stuff from which stars are made of”. (CN)
All Cheerleaders Die (2013) de Lucky McKee e Chris Sivertson
O filme começa com a caricatura já habitual da fauna de um high school norte-americano. De um lado, as miúdas cheerleaders. Do outro lado, os atletas corpulentos, mais conhecidos por dogs. Nos dois lados, há mais “presença” do que substância e o filme não é mais do que demonstrativo, no começo, das belas formas das primeiras contra a presença viril dos segundos. Como é que Lucky McKee foge desta divisão mais do que vista e mais do que dinamitada pelo cinema norte-americano? Encontra um lugar intermédio: aquele que é ocupado por Leena, a bruxa lésbica que irá fazer de tudo para não perder o seu amor Maddy para o grupo das cheerleaders. Quando Maddy troca Leena por uma das boazonas desse grupo, adivinhava-se que All Cheerleaders Die virasse um filme de vingança entre lésbicas motivada por uma satânica. Mas… Lucky McKee não gosta de soluções lineares e aqui, para desatar o nó da banalidade do já-visto, aplica o “chapa 4” das suas mais loucas bizarrias e prefere o “filme de mortos-vivos” ao invés de dar sequência à intriga de vingança.
Próximo do mais descabelado nonsense, McKee assina um filme sem a definição dos seus melhores trabalhos, como The Woman (2011) ou May (2002), e perde-se no seu próprio enredo feito de magia negra onde “vale tudo” a qualquer altura. Percebe-se que o lado “experimental” deste filme é propositado, há nele qualquer coisa da “aleatoriedade” narrativa de um Detention (2011), por exemplo. Mas o exercício acaba devorado por si mesmo, descontrolado como a magia que Leena usa para fazer regressar à vida o seu amor, Maddy. Talvez só pela originalidade deste romance lésbico grotesco All Cheerleaders Die não seja o filme mais falhado de McKee. Pelo menos não é terrivelmente insosso como era The Woods (O Bosque Maldito, 2006). (LM)
The Guest (2014) de Adam Wingard
Chega-se aos últimos minutos com um cinema plenamente identificado: este é o mesmo cineasta que nos trouxe no ano passado o filme festivaleiro por excelência, You’re Next (2011), que misturava acção e terror com as mesmas good vibes. Wingard já não é um convidado estranho na nossa cinefilia, o seu toque é reconhecível agora num filme que navega por outros mares, não os do terror slasher mas, desta feira, os da comédia de acção com espírito eighties, algures entre Walter Hill e Steven Seagal. Um soldado bate à porta. Diz que conhece o filho querido que desapareceu na guerra, que foi seu companheiro na frente de combate e que jurou proteger a sua família mal regressasse a casa. Pois bem, a família suburbana de classe média recebe-o de braços abertos. E o estrangeiro torna-se familiar ou mais até: um anjo protector. De quem? Da mãe, do pai, da filha e do filho adolescentes. Contudo, ele, o homem robótico que tira o fôlego à rapariga e que se torna num herói paternal para o miúdo, guarda um segredo que irá pôr a simpática família no centro de um furacão envolvendo serviços secretos e a polícia militar.
Identifica-se o mesmo género de vitalidade que viramos no filme anterior, na medida em que é extraída de uma trama simples, quase básica, que nos vai conquistando através das personagens e de situações postas em cena com estilo e sentido de humor. A agileza de Wingard está na combinação quase perfeita entre a acção pura e dura e uma cuidada construção dramática das personagens, que, mesmo rodeadas por “clichés de género”, vão para lá da “pose fílmica”. Por exemplo, a relação entre o visitante e o rapaz da família, que parece ter qualquer coisa de um Terminator 2: Judgement Day (Exterminador Implacável 2: O Dia do Julgamento, 1991) mas com o feel de um Starman (Starman – O Homem das Estrelas, 1984), chega a comover pela sua inocência. Também há uma afeição da câmara pela personagem da irmã, que se faz notar desde logo pelo facto de esta “compor” a banda sonora de boa parte do filme. A perseguição final irá juntar este trio num cenário digno do melhor slasher dos anos 80, com cor, luz, música e fumo a levarem ao ecrã um Halloween antes do tempo, uma precipitação formal tão rigorosa quanto a constatação de que The Guest também é um filme sempre de visita e de charmosa passagem por géneros e por referências. Wingard conquista-me de novo. (LM)
Ju-on Owari no hajimari (Ju-on: The Beginning of the End, 2014) de Masayuki Ochial
O cinema de terror leva voltas, ao ponto de este ter sido o único verdadeiro chiller que vi nesta edição do MOTELx. A básica função do terror está, deste modo, à beira da extinção? Chego a esta sétima variação da história do clássico do J-horror realizado por Takashi Shimizu com a sensação de que as fórmulas de um certo terror primitivo, básico, estão gastas. A escolha de Ochial, que realizou antes, por exemplo, o eficaz Shutter (Obturador Fatal, 2008), prometia algumas peles de galinha e uns quantos saltos na cadeira. É na aferição quase puramente corpórea, do susto como choque eléctrico, que devemos situar o sucesso ou insucesso de um filme que bate na mesma porta pela sétima vez e, 12 anos volvidos sobre o primeiro tomo, se deixa contaminar pela maldição-vírus como se fosse pela primeira vez. O que me interessava neste filme, como em toda a saga, é precisamente o teste à abstracção no horror e é aí que Ochial podia trazer algo de novo. Se não chega propriamente a revolucionar o conceito Ju-on, e portanto talvez a ambição de o relançar saia gorada, este “começo do fim” consegue reunir uma colecção apreciável de quadros de horror e susto.
Shimizu havia sido mais hábil no jogo com os foras de campo, das mãos que ficam sem corpo, dos gestos que acabam incompletos quando de um plano aproximado passamos para um plano geral. O découpage é uma questão decisiva, o horror está nas passagens ou no corte entre imagens. Desse gesto de montagem e mise en scène depende a atmosfera destes filmes desde as suas duas primeiras empreitadas. É na falta de ligação entre um plano de visibilidade máxima (o detalhe de uma mão, de um olho, etc.) e um de visibilidade genérica (a pessoa sozinha no espaço) que se constrói o primeiro choque de Ju-on. As soluções são velhas, mas também é aqui que “a forma do medo” se quer primitiva, básica. O chiller serve para devolver o cinema à sua forma edisoniana de “truque de feira” e, nesse departamento, Ochial era a escolha certa. Este Ju-on não acrescenta nada aos filmes de Shimizu, mas em contexto de festival tem o mérito de devolver a mais que digerida gramática do susto a quem de direito. Só assim se compreende a sua inclusão no programa. (LM)
Os Canibais (1988) de Manoel de Oliveira
Transformando em ópera um conto de terror de Álvaro Carvalhal, escritor oitocentista a quem a vida se precipitou no seu fim tinha ele apenas 25 anos, Manoel de Oliveira opera uma das sátiras sociais mais excêntricas e jocosas. Em Benilde ou a Virgem Mãe (1975) Oliveira já mostrara interesse pela linguagem da literatura gótica, entre Poe e Lovecraft, mas este era um filme destituído de, por exemplo, as distintas aferroadas sociais que fazem de O Passado e o Presente (1972) um dos melhores filmes que Luis Buñuel não realizou. O charme discreto da alta sociedade portuguesa é o primeiro ingrediente de um teatro macabro onde se cantam vários ridículos: o do amor desmedido de dois homens por uma mulher e o das histórias fantasiosas de um deles, aquele que ela ama de verdade, a propósito da sua condição especial de homem com coração e mente humanas mas corpo “inanimado”. Estes são os preparativos para um banquete final que irá devorar a alta delicadeza aristocrática como que virando do avesso o famoso gag de Charles Chaplin em The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925). Lembra-se? O pobre faminto, de mente turvada, substituía a visão do amigo pela imagem de um frango suculento. Se a fome turva a mente, o que dizer da ganância das classes ricas? Na companhia de Buñuel, Chaplin e também Franju, Oliveira transforma a ópera pomposa numa sátira do – ou mergulhada em… – absurdo macabro, que tem tanto de fantástica como de incisiva.
Os ricos cantam as suas desgraças, os pobres estão condenados a falar como… nós, espectadores. A distância (a desarmonia!) de registos ou de tons é a forma mais violenta de canibalização que Oliveira desvela aqui e é por ela que brilha intensamente o génio dessa ideia de transformar um conto de terror numa ópera de estilhaçamento social. Mas não precisamos de chegar até ao desenlace para percebermos o alcance da provocação. Oliveira abre o filme com uma sequência de apresentação das personagens “em tapete vermelho”, que prepara o espectador para o que vai ver. Um a um, os insignes convidados entram no faustoso palacete. Por trás de umas grades, a populaça, não daquele tempo, mas do tempo contemporâneo – de uma ideia de contemporâneo que, no limite, choca com o “lugar do espectador” – saúda a entrada dos ilustre. A maneira como Oliveira vai minando a pompa e circunstância deste encontro é digna dos maiores mestres, via uma preciosa mise en scène que é agitada por dentro por uma força mais ou menos anárquica (mais ou menos chapliniana ou, talvez melhor!, renoiriana) que estilhaça, pelo riso, o ritual das classes empedernidas. Um ritual, aliás, que se vai transformar, no fim, numa dança jocosa dos mortos. Em certo sentido – e perdoem-me a comparação, que isto é uma obra-prima -, Os Canibais tem aquilo que falta a Society (A Sociedade dos Amigos do Diabo, 1989), filme de Brian Yuzna exibido também no MOTELx: sabe, desde os primeiros instantes, como teatralizar um certo “ridículo de classe” que canta, alto e bom som, a vida dos mais poderosos, apresentados aqui como “aqueles que têm sempre fome de mais poder”. Ora, se a fome é imoral nos pobres, o que dizer nos ricos? Até a ópera se bufa. (LM)
Dod sno 2 (Dead Snow 2, 2014) de Tommy Wirkola
E o filme festivaleiro deste ano de MOTELx foi, para minha surpresa, esta sequela de Dod sno (Dead Snow, 2009), o filme de culto realizado pelo norueguês Tommy Wirkola que tinha pouco mais a oferecer que uma ideia boa: descongelar a memória da ocupação nazi na Noruega e transformar a ameaça passada numa ameaça presente. Se esperava mais do mesmo na segunda parte, pois então pode renovar as expectativas, porque Dod sno 2 é, como o seu realizador tinha anunciado, o dobro da comédia e o dobro do gore. Num dos upgrades mais assinaláveis da história recente do cinema de terror, esta sequela vira-se mais para Edgar Wright e menos para Romero – era demasiada areia, perdão, neve para a camioneta de Wirkola. O amadorismo do primeiro tomo funciona como uma espécie de ensaio tosco para isto: um filme de acção com zombies nazis – e não só… – que reencena um capítulo decisivo da história da Segunda Guerra Mundial e isto à custa de um “transplante cruzado” de braços, um deles o que o próprio protagonista do primeiro Dod sno arrancou de si mesmo com uma moto-serra. A ideia simples, a que se junta a entrada em cena de uma insólida Zombie Squad composta por geeks norte-americanos, reformula quase por completo a orientação do primeiro filme, o que se aplaude.
Se “o trauma” no primeiro filme era desengonçadamente posto em cena por Tommy Wirkola, nesta sequela atinge o zénite, em pathos e delírio macabro, nos instantes finais, que são o paradigma do que melhor se pode fazer no âmbito da mais pura rawmantic comedy. Ao som de Bonnie Tyler, o trauma desfaz-se num escaldante reencontro para lá da tumba: “Once upon a time there was light in my life/ Now there is only love in the dark”. Minutos de épico romantismo onde menos se esperava e que, naturalmente, conquistaram o público que encheu, como foi norma neste MOTELx, a sala Manoel de Oliveira. Com o devido pedido de desculpas aos mais susceptíveis, quase apeteceu exclamar: sublime! (LM)
La danza de la realidad (2013) de Alejandro Jodorowsky
O regresso de Jorowsky após uma pausa de mais de vinte anos traria sempre um gosto a despedida, mas La danza de la realidad vai ainda mais longe do que seria de esperar. Vai mais longe, porque nunca Jodorowsky esteve tão perto de Jodorowsky, das suas memórias de infância, da criança que ele (não) esqueceu e do seu Chile sob a ditadura de Ibáñez. Por nunca ter estado tão próximo de si, no coração das memórias da criança que foi, o realizador chileno perde a agudeza, o descaramento e o enleio ou a violência audio-visual que o seu cinema nos habituo, para ganhar uma solenidade discursiva, um lacrimejo auto-indulgente e, pior que tudo, uma luminosidade que cala o negrume que tanto e tão bem pontuava as suas visões do mundo, as suas visões de mundos. A introspecção sentimental, que alguns dirão fruto do seu amadurecimento ou da sua vontade testamental de rever e dar a ver a sua vida, é má conselheira num cineasta que, no ano de lançamento do seu Santa sangre (1989), se afirmava anti-religioso, misógino e orgulhosamente violento: “I love violence”.
É muito complicado pôr numa cápsula deste tamanho o impacto que o cinema – e a postura por trás do cinema… – de Jodorowsky teve nos anos 70, nomeadamente na cena hippie norte-americana, muito graças ao sucesso do western alucinogénico El topo (1970). Apesar deste fenómeno de popularidade tão localizado no tempo, o cineasta chileno nunca se deixou “datar” pelo contexto histórico. Os seus filmes são densas alegorias sobre a religião, o sexo e a violência. O mago Jodorowsky – tarólogo de profissão – desfez o nexus narrativo do cinema, impregnando-o da sua persona vibrátil e misteriosa, fundamentalmente “sem tempo”. Todavia, a dimensão autobiográfica no cinema de Jodorowsky sempre esteve presente ou não teria este vivido a infância num circo onde o pai era um dos mais originais performers, suspendendo-se em altura pelos cabelos. O citado Santa sangre abriu o caminho desta auto-hipnose, de Jodorowsky por Jodorowsky, mas aí a fábula delirante apresentava um corpo diferente. O medium cinema era, nessa altura, eminentemente visual e a hipnose resultava ao ponto de ganhar fluência aquilo que pertencia por inteiro ao domínio do absurdo. Em La danza de la realidad, Jodorowsky, o manipulador de mentes, manipula-se a si mesmo, como o filho emprestava os braços à mãe que ficara sem eles em Santa sangre. Ele faz a realidade dançar a sua música, mas esta não soa ao mesmo. A realidade não dança livre, está presa aqui a “mensagens de despedida” ou lacrimejantes revisitações do “eu”. Visualmente, este é um filme onde o grotesco não é absorvido pela realidade, onde Jodorowsky se presta a um somatório indolente de elementos no quadro por de mais luminoso (ai o digital…) para transmitir a noção de bizarria, ao invés de os lançar ao espectador numa linguagem fluida para a qual não há bizarrias, mas crepitações do espírito. Aqui, a (sur)realidade, de pés chatos, não dança como dançava – ó, e como dançava ela! (LM)
Las brujas de Zugarramurdi (Witching and Bitching, 2013) de Álex de la Iglesia
Muitas gargalhadas garantidas logo nos primeiros minutos deste filme de Álex de la Iglesia. No genérico vemos desfilar imagens aparentemente antigas de figuras medievais, no que parece ser uma galeria dedicada a uma espécie de grande história das bruxas e bruxedos ao longo dos tempos. De repente, reconhecemos uma das mulheres na imagem: Angela Merkel. O público aplaude efusivamente. Depois Thatcher e Frida Kahlo. Não houve aplausos. Mas as gargalhadas, muitas, vinham a seguir durante um assalto a uma loja de ouro protagonizado por Jesus Cristo, um soldado de chumbo, a Minnie e Spongebob Squarepants. São homens mascarados das personagens mais inofensivas. Depois percebemos que um deles, Jesus Cristo por sinal, levou o filho para o local do crime. Ele queixa-se dos termos de separação fixados pelo tribunal; que não o deixam ver o filho pequeno as vezes que queria. Um assalto não o impedirá de passar um bom bocado com o filhote. Os trabalhos de casa e o lanchinho ficam para depois. Nessa sequência, Álex da La Iglesia rouba mais um gargalhada sonante quando um dos cidadãos deitados no chão de mãos estendidas se mostra solidário com o ladrão (mascarado de) Jesus Cristo. A justiça favorece-as sempre, diz ele. São “elas” as que saem sempre por cima, com generosas pensões alimentares que os desgraçados dos pais têm de arranjar forma de pagar.
Todo o filme irá fisicamente na direcção de uma “comédia de bruxas”, mas nada o demove deste “pôr em desabafo” das frustrações de um pai (que podia ser qualquer pai) em disputa com “a bruxa” da mãe (que podia ser qualquer mãe) pela custódia do filho (idem). Acima de tudo, esta “comédia de bruxas” esconde um amarguíssimo statement contra as mulheres. Todas sem excepção. Os homens lamentam a sua existência, temem a sua presença e solidarizam-se para as combaterem. Combaterem elas, as mulheres, isto é, as bruxas. Álex de la Iglesia assina aqui uma comédia cativante, muito bem escrita, com velocidade e punch. O público feminino fica à porta, mas mesmo “elas” se riram na sala Manoel de Oliveira. Sinal de comiseração ou de arrogante confiança? (LM)
Coherence (2013) de James Ward Byrkit
Vivemos tempos virtualizados e, por isso, não espanta o fascínio reinante por realidades especulares ou duplicações inquietantes do “eu”. O Duplo de Dostoiévski e O Homem Duplicado de Saramago mereceram adaptações ao cinema, sendo que em Portugal tivemos ainda a ocasião de nos re-situarmos no “hoje” com a reposição de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), outro filme onde a realidade se cinde em dois e onde dimensões à partida inconciliáveis se entrecruzam: vida e morte. A mulher mais velha no jantar de amigos em Coherence diz que se visse o seu “outro eu” seria como fitar nos olhos a própria morte, imagem que já Dreyer em Vampyr (Vampiro, 1932) tão poderosamente invocara. Tudo nesse jantar, nesse filme, é gerado na duplicação de realidades à partida mutuamente exclusivas. Mesmo antes do “acontecimento”, os amigos falam entre si dessa exclusividade mútua: a personagem principal queixa-se que foi substituída num espectáculo de dança que produzira; que outra bailarina” tomou conta do projecto, e, vai daí, os amigos fazem um brinde “à vida que vivemos”. Mais um exemplo: uma das personagens não reconhece entre os que estão à mesa o actor de uma das suas séries favoritas, Roswell. Deve haver um desfasamento entre a vida tal como ela é e a vida tal como ela nos é dada a ver no pequeno ecrã, explica-se. Pois bem, nada está no seu devido lugar neste filme ironicamente intitulado Coherence.
Realidades divergentes cruzam-se, produzindo um paradoxo que ocupará a mente do espectador do primeiro ao último minuto, como se James Ward Byrkit tivesse transformado um cubo Rubik disfarçado de filme num problema de física quântica. À semelhança de filmes como Los Cronocríminenes (Cronocrimes, 2007) e Triangle (Triângulo, 2009), o conceito tempo desregula o conceito espaço. Tudo “regressa”, tudo se “separa”, tudo se “duplica”. Regressando, separando, duplicando, os amigos deixam de (se) reconhecer. Subitamente, um banal jantar entre amigos dá lugar a uma deambulação metafísica sobre o socrático “conhece-te a ti mesmo”. Coherence é um pedaço de ultra-minimal staged cinema onde a improvisação, as hesitações…, dos actores canaliza o desnorte das personagens que, subitamente, não sabem onde estão e quem são. Ou melhor, não conseguem apanhar “o sentido” do que se está a passar. Porque verdadeiramente não há “sentido”, há “sentidos”, vários, rotativos. As realidades desmultiplicam-se, cada decisão e cada não-decisão geram jantares possíveis. As personagens no filme vivem todo este quebra-cabeças com uma certa angústia, que é partilhada intensamente pelo espectador: o filme que estamos a ver é fruto de decisões que excluem o que foi excluído, mas no filme ensaia-se a possibilidade de pôr em cena as possibilidades infinitas de um banal e desinteressante jantar. Aliás, nenhum espectador verdadeiramente quer assistir àquele jantar, com aquelas pessoas. Então para quê um filme sobre isso? Pois bem, faça-se um filme sobre a possibilidade de se fazer todos os outros filmes que este não é. Não estaremos sempre a pensar nisso, na nossa vida: poder ver ou viver o que decidimos não viver? Questões de uma complexidade infinita são levantadas, e postas “em abismo”, num dos filmes mais simples (baratos e minimais) do festival. O maior efeito especial é a inteligência da mente e as possibilidades do cosmos. (LM)
The Raid 2: Berandal (2014) de Gareth Evans
A certa altura um personagem em The Raid 2: Berandal (2014) tem um diálogo onde diz algo como “a única coisa que nos separa é uma palavra apenas, legado”, quando se refere ao facto de o filho de um mestre mafioso ter que suportar com o peso da herança familiar ao passo que ele vivia livre dessa maleita. Há pois algo de profundamente sintomático neste segundo tomo de The Raid: o síndroma da sequela. Isto é, como viver com o impacto de o primeiro filme, tentando não repetir mas também não fugir demasiado à formula de sucesso? A resposta que Evans apresenta é uma que se prende com a escala. Não só se quer maior (também em duração), como mais intrincado, mais expansivo e mais épico.
Esta necessidade de aumentar a escala leva portanto a um problema de base, a saber: uma das coisas que tornava The Raid um grande filme era o facto de se concentrar num espaço único e fechado. Permitindo essa concentração espacial um igual concentração narrativa. No segundo tomo o que se faz é expandir espacialmente o filme mas também narrativamente [é um filme de máfia como infinitas personagens e suas querelas antigas, filme de polícias corruptos e infiltrados – certamente Evans terá gostado da forma como José Padilha resolveu o mesmo dilema com Tropa de Elite 2 (2007) já que a estratégia é exactamente a mesma]. Essa dispersão afecta o filme ao tornar aquilo que é a sua essência – as cenas de luta – em sequências soltas quase sempre desmembradas do conjunto. E desse modo passa-se a sentir de forma talvez demasiado evidente um certo esquematismo de vídeo-jogo onde um nível se sucede a outro. Fica no entanto a sensação de que Evans continua sendo o melhor realizador do momento a filmar o corpo masculino em movimento na sua máxima dignidade; e talvez por isso está aqui o filme mais queer do MOTELx. (RVL)
Killers (2013) dos Mo Brothers
Não se pode negar que Killers tenha umas poucas de ideias interessantes: o assassino-realizador (corta!), o snuff film como vídeo viral e como cinecorrespondência, a desmaterialização provocada pelas tecnologias da comunicação como atenuantes do horror (o assistir por skype a uma matança), a mediação do terror como forma do o compreender (toda a gente saca do telemóvel para filmar mais um macabro acontecimento). E formalmente também há momentos dignos de atenção nomeadamente a fuga do hotel onde um indivíduo atabalhoadamente consegue escapar a dezenas de guardas costas.
Os problemas são no entanto tantos e tão chamativos que não dá como lhes passar por cima: o recurso abusivo de câmaras lentas ao som de música clássica como que a tentar injectar solenidade em momentos simplesmente canhestros, construção de personagens em arquétipos vulgares (mauzão e bonzão), simbolismos fáceis e construções psicológicas dignas de primeira classe (o serial killer que tenta encontrar em todo o mundo pessoas como ele). Mas além de tudo isso o que mais incomoda é o quão pastelona é a realização a quatro mãos, que se perde em infinitos sub plots (o mafioso, a menina das flores, a prostituta eo seu chulo…) que nada mais fazem que distrair-nos (e aos realizadores). (RVL)
Aux yeux des vivants (Among the Living, 2014) de Julien Maury e Alexandre Bustillo
A intenção por trás de Aux yeux des vivants parece mais ou menos evidente, uma espécie de regresso a terras conhecidas. O duo gaulês havia feito chapinhar a água com À l’intérieur (2007) num festim de gore que deixou muitas almas a penar desde então. Na sua segunda incursão na longa os realizadores decidiram um caminho diferente e o que saiu foi uma história de fantasmas atmosférica de nome Livide (2011) o que não deixou muito boas memórias. Ao quererem mostrar que eram capazes de outras coisas o dueto acabou por comprovar aquilo que se podia já esparar: é o gore que melhor lhes fica e é melhor não fugir muito dele.
Com isso em mente não é com grande surpresa que o filme que agora se mostrou aos espectadores lisboetas comece com um aborto auto-induzido por uma faca de cozinha, aliás, não se esperava outra coisa. O interessante é no entanto perceber como na verdade Maury e Bustillo, querendo permanecer na superviolência, optaram por contar uma história de brincadeiras e aventuras de Verão entre pré-adolescentes. Ou seja, e para que fique claro, este filme é o resultado do acasalamento entre The Goonies (Os Goonies, 1985) e uma pistola de pregos. E todo o horror se origina num antigo estúdio de cinema! Estou em crer portanto que o filme tinha tudo para se tornar num exemplo maior de culto, se isso não acontece deve-se forçosamente a um certo esquematismo da última metade e do final mal amanhado. Mas convenhamos, um filme com um assassínio perpetrado com o dedão grande do pé é melhor que um filme onde isso não acontece. (RVL)