Carlos Natálio (CN) e Luís Mendonça (LM) fazem o balanço da 8ª edição do MOTELx, destacando alguns dos seus melhores filmes e reflectindo sobre as causas de sucesso do festival.
Se na antevisão escrevia que este era um festival onde a tentação de falar de “os que cá não estão” era grande, agora que estão passados cinco intensos dias de horror tenho de dar o meu braço a torcer. Aliás, não podia estar num festival melhor para isso. Pese embora as críticas possíveis sobre eventuais ausências no programa ou uma certa “incoerência” na sua construção, o MOTELx 2014 acabou por oferecer uma das melhores ementas de toda a sua história. Ficam, assim, mais ou menos esquecidas as ausências dos últimos de Ti West, Jim Mickle, Joe Dante, Tobe Hooper ou Eli Roth. Esta edição teve terror em quantidade e em qualidade. A organização soube oferecer algumas das mais agradáveis – agradável é o termo? – surpresas do ano cinematográfico aos cinéfilos mais desatentos ou desconfiados e o público, esse, correspondeu em pleno à qualidade elevada da organização. Aliás, importa aqui tecer algumas considerações sobre este público que tantas sessões encheu. Sente-se – e depois constata-se – o grau de especialização e o genuíno gosto “amador” desta gente pelo cinema que vai ver. De tal maneira é assim que dois dos filmes que esgotaram por completo as suas sessões são os dois melhores títulos que vi neste MOTELx, excluindo naturalmente Os Canibais (1988) mas incluindo infelizmente o decepcionante La danza de la realidad (2013): The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) e Honeymoon (2014). Se o primeiro tinha já uma certa reputação conquistada entre a crítica que o viu em contexto de festival, o segundo destacou-se como a surpresa maior em todo o programa. Um OVNI que o público soube avistar, pelos vistos, melhor e mais rapidamente do que este redactor, sinal talvez de que todo um esforço “especializado” de antevisão e crítica da minha parte resultou, até certo ponto, ultrapassado pelo indicador de qualidade em que se tornou o comportamento festivaleiro do próprio público.
Para além disso, é difícil fugir ao facto de esses dois filmes terem sido realizados por mulheres, o que, na já longa história do cinema, é raro em quantidade e em qualidade, ressalvando Near Dark (Depois do Anoitecer, 1987) de Kathryn Bigelow e pouco mais. A australiana Jennifer Kent e a norte-americana Leigh Janiak são também estreantes no universo das longas-metragens. A sua opção pelo terror não é seguramente acidental, pelo que, prevejo, iremos ouvir falar mais destes nomes em edições futuras do festival. Para mais, as duas realizadores recorrem à gramática do terror para falarem de inquietações eminentemente femininas, seja transformando a maternidade (o horror à e o horror da mãe) numa fábula tenebrosa, seja questionando a fiabilidade e durabilidade do amor no seio do matrimónio. Nos dois filmes detecto também um tema recorrente nesta edição do MOTELx, que resumiria talvez desajeitadamente como “o problema do não reconhecimento”: não reconhecimento da mãe pelo filho ou da mulher recém-casada pelo marido. O mais inventivo e desafiante filme exibido, Coherence (2013), trata desse não reconhecimento entre um grupo de amigos e, no limite, do “eu consigo mesmo”. Claro que esta é uma inquietação antiga no cinema de terror que nos leva a clássicos dos anos 50 como It Came From Outer Space (Vieram do Espaço, 1953) ou Invasion of the Body Snatchers (A Terra em Perigo, 1956). Contudo, parece que essa forma de terror paranóico veio para ficar. Com efeito, este receio de, subitamente, se tornar estranha a pessoa que nos era tão familiar estende-se a outro dos filmes mais conseguidos do festival: The Guest (2014), mais um exercício de charme de Adam Wingard que se vê com um sorriso nos lábios. Foi com esse sorriso que saí daquele que foi, quanto a mim, o mais bem sucedido MOTELx de sempre. De braço torcido e bem torcido, dou mais uma vez os meus parabéns aos organizadores. (LM)
Há algo que cheira a morto no seio do brilho e do fulgor que os festivais de cinema exibem há mais de uma década. Esse ligeiro odor provém do facto de se perceber que pela crise da atracção cinema tout court (os sistemas de exibição comercial e alternativa regular em sala decaem lentamente) os festivais se viram obrigados a tornarem-se eventos muito bonitos com cinema lá dentro. E parece-me ser essa a luta pelo equilíbrio interno de um festival de cinema hoje: uma luta entre o cinema que se mostra e que se programa e o “fashion’s night out”, cada vez mais necessário, com que se atraem os espectadores para os fofinhos cadeirões das salas escuras. Dito isto, digo também que não há provavelmente em Portugal nenhum festival que saiba articular tão invisivelmente “o seu Jekyll e o seu Hyde” como o faz de há uns anos a esta parte o MOTELx. Dimensão média (pequena até se quiserem), com três (no máximo quatro) slots de programação a decorrer em simultâneo, concentração de espaços (S. Jorge e este ano pela primeira vez o Tivoli do lado de lá da Av. Liberdade) e muito muito público. Podíamos pensar que a questão do público se prende apenas com a horda de fãs ferrenhos que o género de terror e fantástico possui ou mesmo pela reduzida aposta noutros circuitos em programar este tipo de filmes. Não deixando tudo isto de ser verdade, o apelo do público explica-se pela verdadeira dimensão de um culto. Se o MOTELx se tornou aquilo que se pode designar por um “festival de culto” ele é-o porque além de ter percebido a máxima less is more, consegue decifrar muito bem a qualidade das respostas do seu público e crescer a partir delas, proporcionalmente. Neste sentido a “pequena” dimensão do festival permite que os seus espectadores, sem grande esforço, o sigam de início ao fim (e não sintam que foram a um hipermercado de sessões de cinema onde perdem muito tempo a escolher e onde criam expectativas muitas vezes infundadas baseadas no esforço dessa própria escolha) e tenham, quando vão para as suas casinhas, a sensação que viveram algo de fechado e do qual fizeram parte. Como quando em pequenos vamos para um campo de férias e não podemos esperar pelo ano seguinte de tão fixe que foi. Arrisco-me a dizer que é essa ligação afectiva entre um evento à escala humana e o mais comum dos mortais espectadores aquilo que cria mais e, sobretudo, melhor público.
Nessa lógica de construção de um evento do qual as pessoas se sintam que fazem parte, a tarefa de programação é chave. O CTLX – Cineclube de Terror de Lisboa, que já tem uns aninhos disto, percebeu e bem que dentro da estabilização de um formato e de uma dimensão, o importante é trabalhar sobre a noção de qualidade, ver o objecto filme como um affair seríssimo que pode determinar a glória ou o fracasso da proposta global. Só tendo isso em mente permite justificar que uma edição que, como se disse na introdução aqui no site, tinha vários nomes ausentes a gritar para virem à Avenida, tenha sido um sucesso também, ou sobretudo, pela sua programação. Pela minha parte falo, dos 16 filmes que vi nesta edição, contam-se pelos dedos de uma mão decepada aqueles que ficaram abaixo das expectativas. Ao invés as senhoras Jennifer Kent [The Babadook (O Senhor Babadook, 2014)] e Leigh Janiak [Honeymoon (2014)] e o horror “naturalizado” pelo desejo de Fabrice du Welz [Alleluia (2014)] foram aqueles que mais me convenceram. O pequeno filme de culto Starry Eyes (2014) de Kevin Kolsch e Dennis Widmye sobre como se constrói o corpo e o olhar de uma diva de Hollywood e ainda o regresso da stasis infernal de Takashi Miike, Kuime (Over Your Dead Body, 2014), completam o meu golden five deste ano. Não tendo havido grandes nomes em estreia nesta edição e mesmo ante a ausência imprevista do espanhol Aléx de la Iglesia (a quem desde já lhe agradeço “por me ter dado” a oportunidade de ver o filme de Janiak), só distraidamente se pode deixar de reparar que uma equipa que cria condições para programar para um público maioritariamente adolescente o regresso de Jodorowsky [La danza de la realidad (2013) surge 24 anos depois do seu último filme] ou Os Canibais (1988) de Manoel de Oliveira sabe o que é ir ganhar à casa do adversário, para usar uma metáfora futebolística. Quem com tudo isto fica a ganhar são as pessoas e é o género terror/fantástico que pode assim ser visto e discutido além das suas tradicionais fronteiras. O que é afinal o verdadeiro terror? Levar com um tentáculo alien pela/pelo c* acima? Amar doentiamente uma pessoa? O Fashion’s Night Out? (CN)