No âmbito da secção Quarto Perdido do MOTELx dedicada a encontrar os filmes portugueses que ao longo dos anos roçaram o terror e o fantástico, este ano são apresentados dois títulos que adaptam contos da “literatura negra”/”narrativa gótica”/”poesia tumular”, O Cerro dos Enforcados (1954) de Fernando Garcia adaptando Eça de Queirós, sobre o qual versa este texto, e Os Canibais (1988) de Manoel de Oliveira – ópera-bufa com mau-olhado (filme de quem não tem nada a provar e portanto um dos mais livres que o realizador já fez) – adaptando Álvaro do Carvalhal. Os filmes serão exibidos na Sala 3, respectivamente, nos dias 11 e 14 de Setembro.
Antes de partirmos para onde quer que a ponta dos dedos me ordene, creio que convém começar por esclarecer duas questões, a saber: (1) quem é Fernando Garcia; (2) que filme é – ou deseja ser – O Cerro dos Enforcados.
Garcia é um dos realizadores pertencentes à chamada “geração dos assistentes”. Como salienta Manuel Mozos, ao longo da história do cinema em Portugal só há de facto uma geração que se pode considerar filha de uma anterior e essa é esta. Ou seja, desde que o cinema em Portugal passou a estar sobre a alçada do regime e de António Ferro através do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional, que mais tarde se volve em SNI – Secretariado Nacional da Informação), um conjunto de realizadores tem como cargo levar avante o grosso da produção cinematográfica: Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Arthur Duarte, Chianca de Garcia e Jorge Brum do Canto são os nomes maiores. Nos anos 50 esse estado de coisas altera-se: António Ferro deixa a direcção do SNI e a popularidade do cinema decresce visivelmente, em parte devido ao decréscimo da produção das ditas comédias à portuguesa com os actores de revista tão queridos do público.
Tal decréscimo está relacionado com dois factores importantes. Primeiro, o conhecido ódio de Ferro em relação às ditas comédias – são “o cancro do cinema nacional” – que leva a uma mudança temática dos filmes: passam a produzir-se muito mais adaptações literárias, filmes de pendor histórico, ou religioso, ou colonialista (cinema sério que cultivasse as massas e não o escapismo da graçola de revista) – que mais tarde, nos anos 60, viria a absorver as figuras do nacional-cançonetismo. Segundo, a dita mudança de geração, onde os velhos “mestres” deixaram progressivamente de filmar e aqueles que os haviam assistido passam a tomar as rédeas da empresa: Perdigão Queiroga, Henrique Campos e Manuel Guimarães (que é um caso à parte) são os nomes mais evidentes dessa geração, a que se acrescentam Augusto Fraga e João Mendes, um pouco mais novos, e o nosso Fernando Garcia. Estes assistentes feitos realizadores pautavam-se por um estilo quase sempre omisso de planos estáticos gerais, vidrados acima de tudo numa competência de técnico.
Como o nome dava a antever, Garcia havia sido várias vezes assistente dos homens da velha geração, nomeadamente de Brum do Canto em João Ratão (1940) e de Ribeirinho em O Pátios das Cantigas (1942), mas também do maverick Oliveira em Aniki Bóbó (1942). Evidentemente comprometido com o regime, Garcia pertencia ao conjunto de autores/jornalistas e críticos de cinema que ajudavam a divulgar e promover o “Cinema Português”, daí que o seu salto de assistente a director fosse mais do que natural.
Perguntar-me-ão então que há de interessante em O Cerro dos Enforcados? Na verdade o que mais interessa no filme é aquilo que ele significa para a produção da época e a esperança que falsamente injectou na asfixiada indústria de então (esperança vazia que acabou por se demonstrar como mais um prego no caixão que vinha sendo o cinema de estúdio em Portugal); e aqui respondo à segunda interrogação. Portanto, Garcia já havia experimentado no cinema de exaltação tradicional com Heróis do Mar (1949), já havia experimentado com a comédia em O Marido Solteiro (1952) e [depois de uma tentativa infrutífera de capitalizar o sucesso da revista no cinema com Agora é que são Elas! (1953)], chegara a vez da adaptação literária e do filme histórico – o tal cinema de qualidade que tanto agradava a Ferro. Portanto chamou-se Eça de Queirós ao tampo da mesa com o conto O Defunto que nem de propósito decorria no século XV: punha-se assim em acção toda a panóplia de técnicos competentes em cabelos e maquilhagens e cenários e ainda para mais com o assegurado selo de qualidade queirosiano.
As bilheteiras não traduziram os desejos e mais, como diz José de Matos Cruz, “uma coisa que se disse na altura [sobre este filme de Fernando Garcia], entre a crítica, foi que o cinema fantástico, por um lado, não tinha uma componente possível de em termos industriais ser executado e constituir um espectáculo de sucesso e de produção em Portugal, mas, por outro lado, dizia-se ainda que não era um cinema ao gosto do António Ferro, o que é interessante, (…), mesmo nessa altura [cinco anos depois de Ferro se afastar] a sombra do António Ferro continuava a tutelar o cinema“. Ou seja, não era sério, de bom tom, nem para gente fina, um cinema que abordasse as fórmulas do fantástico. O que é curioso é perceber que tal pensamento se propagou durante várias décadas em Portugal mesmo depois da revolução – veja-se o cinema de António de Macedo. Pergunto pois se a animosidade para com o cinema de género em Portugal não se trata de uma das muitas reminiscências do Estado Novo que ainda se fazem sentir nos dias de hoje.
Mais importante que isto, o que O Cerro faz com sucesso é mesclar uma série de intenções. Nele se juntam dois intentos aparentemente distintos, o ardor do misticismo rocambolesco e até arrepiante do texto, e a filtragem religiosa desse mesmo misticismo. Ou seja, por um lado pretendia-se oferecer ao público algo próximo do cinema de género (à imagem de alguns filmes noir e de mistério), mas por outro lado esse mesmo intento foi suavizado pela moral católica e os bons costumes. É neste choque que o filme de Fernando Garcia mais se expõe, por tornar tão evidentes as guias impostas pelo sistema de produção do regime.
Mas recentre-se o texto no texto e olhe-se para O Defunto. Há nesta obra de Eça várias das características típicas da tal narrativa fantástico-gótica (coisa pouco habitual na obra de Eça): o período medieval, ambiente de mistério, as descrições arrepiantes – “era uma caveira com a pele muito colada (…). Os olhos não tinham nenhum movimento nem brilho. (…) De entre os dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua muito negra”, o sobrenatural e o insólito. Mas além disso o que o pequeno conto de Eça revela é um espírito muito cinematográfico, não só pelas descrições tanto visuais como sonoras, como pela forma como o narrador se demonstra “heterodiegético e polimorfo” – que é como quem diz, não tem corpo na narrativa e molda-se a cada uma das suas personagens (descrevendo-as e ao seu pensar como se não soubesse o que havia acontecido momentos antes a larga distância). Ou seja, sem o saber, Eça constrói O Defunto num constante exercício de montagem paralela.
Mais que isso, há no texto de Eça uma série de deliciosas oposições simbólicas: os binómios profano-sagrado – “se esse homem não era mandado pelo Demónio, bem podia ser mandado por Deus!” -, eros-thanatos – “que o encontro não era de amor, mas de morte!…”-, vida-morte – “Tu estás morto ou vivo? – perguntou. (…) Senhor, não sei… Quem sabe o que é a vida? Quem sabe o que é a morte?”. Aliás, todo o escrito se delicia nestas brincadeiras de duplicação contraditória até ao sublime momento em que também um dos personagens se desmultiplica – “D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E – oh maravilha! – era ele, D. Rui, todo ele, na figura e no modo” – só que uma versão de si é ele próprio, vivo e consciente, e a outra ainda que igual na “figura e no modo” é morta e apenas animada de movimento pelas forças superiores da Nossa Senhora do Pilar.
Talvez o mais divertido seja mesmo a graça com que Eça trata o tema jogando com as palavras que necessariamente usa para descrever as insólitas situações: “o morto que fora morto!” ou “bem me podereis reenforcar” – de novo a duplicação, agora das mortes e das culpas, “É culpado por duas culpas e merece duas mortes!”. É pois o humor negro que surge no tomo final que mais surpreende pela sua total ausência de auto-paródia e como tal ‘duplicada’ eficácia. Isso é mais do que notório no episódio em que D. Rui “reenforca” o defunto e depois de terminar a tarefa questiona, “Estais bem assim?”.
Outra leitura possível ainda é uma que se prende com uma simbologia fálica que perpassa todo o conto d’ O Defunto. Leitura essa que porventura não é procurada por Eça mas que sem esforço se torna evidente quando é de espadas e adagas (o jovem moço tem uma espada hirta, o velho senhor uma adaga curva) que versa a história. Por exemplo, quando Dona Leonor imagina a visita nocturna que D. Rui lhe fará lemos: “pobre, e doce, e inocente moço, quando ele subisse, mal seguro sobre um frágil degrau, as mãos embaraçadas, a espada a dormir na bainha…”. Noutra situação temos o caso do próprio D. Rui que não treme nem com a aparição de um morto vivo, mas no entanto, quando sente a adaga que atravessa o peito do defunto e lhe roça nas costas, todo ele se agita como varas verdes – “Todo se arrepiou o bom cavaleiro, ao sentir nas suas costas o roçar daquele corpo morto, dependurado de uma forca, atravessado por uma adaga. E não me demorarei na Nossa Senhor do Pilar”.
Ou talvez o faça, servindo-me desse pormenor para finalmente chegar ao filme. Em O Cerro do Enforcados a nossa senhora que amadrinha o cavaleiro e o seu amor por donzelas puras é a Nossa Senhora das Mercês. O que aconteceu ao pilar? Terá Garcia olhado para o texto pelas lentes fundas de um Diácono Remédios? Não havia necessidade… De qualquer forma este é apenas o primeiro de muitos tresmalhos da misteriosa adaptação ao cinema de O Defunto. A começar pelo título, que prefere dar importância ao local onde o insólito acontece em vez de preferir o original na sua duplicidade de sentidos – o enforcado como o defunto ou D. Rui como falso defunto. Passando pela total reformatação do personagem de D. Rui que “era de nobre parecer, muito pálido” no texto e no filme vira um galante à la Errol Flynn em Adventures of Don Juan (As Aventuras de D. Juan, 1948) – no texto o jovem não correspondido desiste da senhora tomada mas no filme o mariavilsmo (luso) é uma constante e ele, qual io-io, ataca a pobre moça repetidamente, ou a forma como o filme abre com uma cena construída somente para acrescentar à personagem uma aura de heroísmo totalmente ausente no conto. Chegando à desmultiplicação de personagens secundários inventados apenas e só para que os protagonistas possam passar a discurso directo aquilo que é a narração de Eça.
Esse é o grande problema da obra de Fernando Garcia: ponto por ponto destruir a fineza de construção narrativa de Eça, fundindo filigrana em matacões maniqueístas.
Se é sabido que a obra de Eça vive quase sempre na “desconstrução” das fórmulas usuais – em Os Maias o natural encerrar seria a morte do incestuoso irmão, mas Carlos da Maia vai simplesmente de viagem -, no caso deste conto, o que Eça faz é de extraordinário mérito: um história de amor sem romance (D. Rui e Dona Leonor nunca trocam sequer uma palavra), uma história de ciúme sem razão (nem Dona Leonor nem D. Rui estão muito interessados um no outro), uma história de pecado cândida (porque nem sequer em pensamentos D. Rui chega a pecar) e uma história de assassínio sem mortes (o único que morre já estava morto). No entanto Fernando Garcia rasga tudo isso, o amor torna-se evidente, o ciúme ganha razão de ser, o pecado é cometido e se é verdade que só se mata o morto também é verdade que D. Afonso de Lara falece qual Pietà à chuva… A fineza do texto transforma-se num banal romance de cordel.
Há no entanto um par de cenas e um volteio de argumento dignos de nota. A começar, todas as cenas onde Alves da Costa entra estão cheias de uma insuflação teatral deliciosa, em particular o momento em que doentiamente D. Afonso de Lara mostra o seu amor por D. Leonor – “será preciso arrancar o seu coração para que seja finalmente meu?” – ou toda a sequência que antecede o “adagar” (apunhalar com uma adaga?) do morto com os enormíssimos grandes-planos dos olhos do magnífico actor. O volteio no argumento corresponde à forma como se torna toda a sequência sobrenatural num flashback e desse modo deixa-se o espectador em suspenso até que se explique o sucedido. Mas de novo serve isso para retirar negrume ao filme e apenas adensá-lo ligeiramente de um mistério que logo se trata em esclarecer.
O Cerro dos Enforcados é pois o epíteto daquilo que os jovens do cinema novo chamavam o “cinema de barbas” (o equivalente português do cinema de papá): por se interessar mais no retrato de época e por ser de facto um filme velho, empedernido numa forma de fazer cinema que já se tinha esgotado. Vale então como objecto histórico por aquilo que tentou ser sem conseguir e por marcar seminalmente a história do cinema de género em Portugal.