Filmar a estátua é um pouco como remeter à pedra a palavra que o cinema não consegue suportar. E essa palavra pertence ao imemorial. Apontada para a pedra antiga, a câmara procura aprender a falar a linguagem de uma história que não é erodida 24 vezes por segundo, que permanece e que faz dessa permanência anti-cinemática a prova de que a imagem não precisa de movimento para se fazer corpo e que não precisa de movimento para ter um movimento maior. Na realidade, a estátua mostra ao cinema como tridimensionar, como tornar volumosa e táctil, a imagem do referente. Tarkovski falava em “esculpir o tempo”, porque a matéria não se esculpe no cinema: é o feixe de luz na sala que, uma vez tocado, denuncia a ilusão do cinematógrafo. A estátua, que ilude mais o tempo que a matéria, tem esse poder de parar o filme no filme. Por vezes, parece que o transforma em fotografia, ou melhor, em imagem antiga (não tecnológica), primordial, museal, mas absolutamente tridimensional. Muitas histórias, muitos filmes impossíveis de serem realizados ela testemunhou no arco da sua muito concreta e sólida existência. É em sua homenagem que confeccionamos esta “sopa da pedra” que conta com a participação da nossa mais recente walshiana: Inês Lourenço.
Surpreendo-me a mim mesmo com esta escolha. Pensar em estátuas leva-me, imediatamente, ao cinema de Resnais, mas também aos corpos do grande cinema soviético (à cabeça, Dovzhenko) que, não sendo feitos de pedra, parecem sempre impor-se como monumentos vivos de uma revolução em curso. A minha escolha recai sobre um dos primeiros filmes de Maurice Pialat, lançado em 1960, sobre a vida na pululante área suburbana de Paris, habitada por uma depauperada – e esquecida – classe trabalhadora. Na realidade, isolo aqui o penúltimo plano do filme: o da mão do anjo que, visto de frente, parece ordenar e dirigir, mas, neste ângulo, se lança no vazio, pedindo clemência, salvação. O registo sorumbático deste retrato das banlieues diz já algo sobre a natureza convulsa e desesperada do cinema de Pialat. Há sempre uma dureza e uma frieza difíceis de encarar nos melhores filmes do cineasta francês, mas estas também são atravessadas pelo tal ângulo a partir do qual a mão se lança… como quem “pede uma mão”. A dureza quebra, rui e aí vemos o outro lado das coisas. O filme tem um título que se racha ante aquilo que seria a desperançada escalpelização das relações amorosas nas obras de Pialat dos anos 70, sobretudo Nous ne vieillirons pas ensemble (Quando o Amor Acaba, 1972): “o amor existe”.
Luís Mendonça
Ele e ela constroem teorias sobre a acção a que corresponde o gesto petrificado das duas estátuas. Ele diz que o homem está a tentar impedir a mulher de “avançar mais”, está a protegê-la de algo. Ela, numa narrativa totalmente inversa, diz que a mulher está a chamar a atenção do homem para a visão de “algo maravilhoso”. Ele (Giorgio Albertazzi) e ela (Delphine Seyrig) não nos são dados a ver neste plano, e escolhi-o assim porque em L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961) os objectos, o “silêncio de mármore”, como se diz algures no filme, tomam a mesma substancialidade dos corpos: ver estas estátuas (que afinal formam apenas uma) é mensurar uma realidade mais sólida do que a das duas personagens. Como fantasmas que se movem num determinado espaço e num tempo que apela à ideia de memória onírica, ele e ela, “A” e “X”, ao lado da estátua, não podem ser um argumento maior, daí que o seu discurso se derrame sobre ela, em busca de respostas e testemunhos marmóreos de uma recordação imprecisa. Marienbad representa-se a si mesmo: é um hotel luxuoso, uma “galeria” de ordem quase cerebral; o jardim assemelha-se (assim num efeito gestalt) a um tabuleiro de xadrez onde o jogo já vai a meio, porque as peças apresentam posições dispersas. Marienbad, esse lugar-personagem, à semelhança da estátua, é onde Resnais inscreve os caminhos tangíveis para a circulação de uma memória, de um ele e ela que apenas resistem na robustez das histórias de pedra. Godard, dois anos depois, em Le Mépris (O Desprezo, 1963), não desprezaria esta temática visual.
Inês Lourenço
Se mais nenhuns motivos existissem, a relevância deste plano d’O Gebo e a Sombra (2012) justificar-se-ia por si só pelo o que de extraordinário a direcção de fotografia de Renato Berta lhe empresta, assim se condensando, apenas num plano, todo um trabalho plástico notável. Falamos num dos raríssimos planos de exteriores – o mesmo é dizer, num dos raríssimos momentos de luz – do filme, no qual se resume um dos seus eixos, o formal, ou seja, a iluminação, o jogo dos claros e escuros, de luz e sombras. Iluminação, essa, que, passe a redundância, é tudo num filme em que a “sombra” – de Gebo, mas não só: é um país, Portugal, que vive na sombra, no escuro – é elemento melancólico e miserabilistamente omnipresente. E que melhor tradução disto mesmo do que o amarelo torrado, condoído, sarnento que, aqui como no resto do filme, confere a escassa luz aos espaços e às personagens que o habitam? Mas este eixo formal abre a porta para outro, agora substancial: iluminada, a estátua de Nossa Senhora de Fátima faz ligação directa para o Portugal da peça de Raúl Brandão, país religioso e religiosamente pobre, humilde e esconso a viver ainda nas “trevas”, como se o Iluminismo [daí a (falta de) iluminação] nunca aqui tivesse chegado. Foram poucos os que colocaram Deus em diálogo com o filme de Oliveira (tema capital, de resto, na sua obra), e, se é certo que a sua importância (ou aparente falta de) não se extraia directamente dos diálogos, talvez essa ausência – esse “Gott ist tot” – seja propositada e queira sugerir como o Todo-Poderoso dinheiro – assunto central do filme – tenha ocupado o seu lugar (se não já à data em que Brandão escreveu a peça, ao menos nos dias de hoje, que Oliveira evoca). Sofia reza à Nossa Senhora para que João, o marido, volte; porém, João, qual Super-Homem nietzscheano, qual Anticristo, só trará, com o seu regresso, o “Inferno” (há uma gargalhada sua tão cinematograficamente “diabólica”) à casa de Gebo, não só pelo roubo material, mas, e sobretudo, pelo modo como a fará implodir através do seu discurso – perfeitamente oposto ao do pai – sobre a condição moral da pobreza (a sua suposta “honradez”) e as possibilidades de emancipação social, logo, existencial também.
Francisco Noronha
Lo Sguardo di Michelangelo (2004) foi mal traduzido para “Eye to Eye”, nos Estados Unidos. De certeza para equiparar os dois Michelangelos, quando o que se passa é toda outra coisa, totalmente. Richard Fleischer, em Just Tell Me When to Cry e a propósito das re-filmagens de His Kind of Woman (Redenção, 1951), filme produzido por Howard Hughes, conta que o magnata lhe disse que não se importava quanto tempo demorasse ou quanto custasse, mas que queria que tudo ficasse perfeito. E a partir daqui é Fleischer quem conta: “(…) when is anything perfect? How do you know when you’ve achieved it? Maybe Michelangelo would know. He threw a hammer at the Pietà to mar it when it was finished because he thought he had blasphemed. He believed he had created something perfect and that that was a privilege reserved only for God. Not being Michelangelo, I was in constant danger of unwittingly committing blasphemy.” No olhar de Antonioni, também só essa reverência, também só essa certeza de “not being Michelangelo” se vê. Por isso é que dentro da basílica de San Pietro in Vincoli, no túmulo encomendado para o Papa Júlio II, as esculturas se vêm em contra-picado e Antonioni em picado as olha, imperando o silêncio. A imagem acima é do primeiro plano em que as estátuas aparecem e o que se segue são as variações possíveis sobre esse tema dominante do picado e do contra-picado. Antonioni e o seu e nosso mestre, Michelangelo, para quem se pode olhar apenas de baixo para cima e com cautela, para a beleza não nos cegar. Assim se despediu Michelangelo Antonioni, aprendiz até ao fim.
João Palhares