António-Pedro Vasconcelos diz que para fazer cinema só há verdadeiramente duas coisas fundamentais: ter uma boa ideia e arranjar dinheiro. Com estas duas tudo o resto vem por arrasto. O seu mais recente filme Os Gatos Não Têm Vertigens (2014) ou parece ser a demonstração de que a primeira não é de facto essencial – dando de barato que um filme é apenas uma sucessão de imagens -, ou então a confirmação de que um filme sem ideias não chega a ser um filme. De qualquer forma, a coisa mais evidente sobre este objecto é de facto a sua escassez de pensamento auto-crítico e de como tal resulta de uma profunda inconsciência artística.
Comecemos por este último ponto, a inconsciência artística. De tudo o que rodeia Os Gatos, e a obra recente de Vasconcelos, aquilo que mais choca é a forma como o realizador se mostra conhecedor da história do cinema e da arte (e até ensaísta sobre a mesma com resultados meritórios) e no entanto é incapaz de se aperceber da distância que separa a sua obra dessas outras que admira. Pois leiam-se algumas das frases do próprio (ou de outros sobre ele) que a campanha do filme tem produzido sem pejo: “tenho tendência a filmar em planos fixos como o Ford ou o Hawks”, “Fala de Frank Capra, Roberto Rossellini ou Vittorio De Sica para exemplificar filmes em tempos críticos ‘que têm um horizonte de esperança’ “, “está sim interessado em perceber de que histórias precisa o público a dada altura, como Dickens, Homero ou Tolstoi souberam nas suas eras – ajudando a defini-las”, “Os Gatos Não Têm Vertigens, afinal, ‘é a história de David Copperfield’ “, ou “Truffaut disse-me que não se pode fazer filmes ingratos”. Para não falar de “O cinema português precisa de um Clint Eastwood” aquando de A Bela e o Paparazzo (2010) ou a citação directa a Billy Wider e à raquete de Jack Lemmon nesse mesmo filme.
Querendo ou não, António-Pedro compara-se aos grandes, a Homero, a Dickens, a Ford e a Hawks e fá-lo sem qualquer temor, sem quaisquer pruridos de pretensiosismo ou exagerada grandeza. Nada disso. Nele existe a crença de que a sua obra está ao nível, ou pelo menos é equiparável, nas intenções e na forma. Mesmo que tal fosse verdade ficar-lhe-ia muito mal, mas pior fica por não o ser. Há pois algo que entristece: um homem que já foi crítico, que já realizou alguns dos mais importantes títulos da cinematografia nacional, que foi encarado como o Truffaut português, que fundou esperanças de um novo cinema para o público que não o trata como mentecapto, esta pessoa que foi tudo isso vive agora na ideia de o continuar a ser. Mas os seus filmes provam que assim não é. É esse absoluto alheamento que espanta pela sua candura, mas que ao mesmo tempo aflige pela sua total inconsciência.
Mas olhe-se para o filme e para aquilo que nele existe de valor. A começar pelo primeiro plano do filme, um plano-sequência de alguns minutos e de extrema complexidade onde acompanhamos Maria do Céu Guerra dançando com Nicolau Breyner num baile. A música pára. Breyner continua com outro par enquanto a mulher vai beber água, a câmara acompanha-a sempre em continuidade. Enquanto isso, no fora de campo, no salão, algo acontece: o marido morre. A câmara acompanha Do Céu Guerra de volta para o baile depois de recuperada (ela e nós ainda não temos ao certo o que se passou), mas antes de lá chegar vê num televisor o reflexo do que se passa lá dentro – a mediação do horror ou como só conseguimos consumi-lo se mediado (?) – e uma vez lá dentro, depois de um olhar onde nada se diz, a câmara fixa os sapatos de Breyner e fica-se por aí. Tudo sem cortes, tudo mostrando um cuidado trabalho sobre as escalas e sobre a distância da câmara aos seus personagens. E se este primeiro plano faz lembrar algo é porque certamente a citação é propositada a Harold and Maude (Ensina-me a Viver, 1971) e ao primeiro plano – também sequência – que termina nuns pés de enforcado. Mas não é apenas o primeiro plano, já que tudo em Os Gatos olha e copia desajeitadamente o filme de Hal Ashby: desde o episódio do cigarro que tenta repetir a cómica falsa alienação da senhora idosa – que Ruth Gordon consegue muito melhor e com muito mais graça que Maria do Céu Guerra -, ao próprio tema do choque/simbiose de gerações e da relação (também) improvável entre um jovem e uma idosa – esquecendo-se no entanto de copiar a irrisão e o humor negro desse outro filme.
Então mas não havia uma escassez de ideias no filme? Sim havia e há, a questão prende-se com o facto de os momentos mais dignos do filme aparecerem apenas a espaços e envoltos pelo mais banal das realizações televisivas em piloto automático. O maniqueísmo da história e da forma como é contada é por vezes aterrador na sua polarização absurda: a velhinha inocente, o menino reticente, a filha querida e o genro malvado, o pai alcoólico, a mãe ausente, o padrasto cruel, o amigo dedicado e o marido carinhoso. Os bons são muito bons e os maus muito maus (podia-se encarar isto pelo prisma de uma certa inocência clássica, Vasconcelos como o último resistente de um certo cinema onde o olhar pós-moderno não entra, mas isso seria um abuso de olhar). O propulsor da acção é inacreditável (nunca chegamos a crer na velhinha que acolhe o jovem gatuno em sua casa), o fio narrativo é finíssimo (transformar o rapaz num escritor em potência é no mínimo canhestro) e o retrato da cidade é absurdo (por oposição à Lisboa hip e cool de A Bela com fotógrafos, actrizes e argumentistas na Bica, esta é a Lisboa dos drogados, toxicodependentes, prostitutas, velhinhas e delinquentes na Costa do Castelo). Então o que se salva? A mão de Vasconcelos consegue por vezes trabalhar o péssimo argumento (de onde só se salvam um par de diálogos) com certo elegância, por exemplo o trabalho de encenação em profundidade destaca-se em certos raros momentos (sublinhe-se raros), assim como a presença de ecrãs, a desmultiplicação de cachecóis do Benfica, o galo na testa de um que passa para o outro em lados opostos da testa.
Talvez por acaso (certamente!), o filme parece reservar para si um mecanismo de auto-interpretação ao colocar em cena tanto o seu produtor, Tino Navarro, como o próprio realizador – como já havia feito Joaquim Leitão em A Quarta Divisão (2013). Ambos têm pequenos papeis. O interessante é que os papéis de cada um parecem representá-los: Navarro é o homem dos penhores (não valerá a pena alongar-me, parece-me auto-explicativo – note-se apenas que esfola o miúdo comprando-lhe um Rolex por uns míseros 400 euros) e Vasconcelos um editor que publica a primeira treta que lhe dão sem pensar muito no que está fazendo (se considerarmos a parceria com o seu argumentista dos últimos tempos, Tiago Santos, percebemos que Vasconcelos faz de si mesmo). Ao menos involuntariamente acaba por haver uma certa graça no filme.