A obra de Eça de Queiroz (ou Queirós, como se preferir) já deu azo a algumas adaptações cinematográficas – por exemplo, O Cerro dos Enforcados (1954) de Fernando Garcia, que será exibido por estes dias no festival MOTELx (e sobre o qual o Ricardo Vieira Lisboa escreveu), mas também dois O Crime do Padre Amaro (2002 e 2005) e um Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em que Manoel de Oliveira transpunha a trama oitocentista para a Lisboa da actualidade – e outras televisivas, tanto em Portugal como no Brasil. Aliás, a primeira adaptação referenciada d’Os Maias, uma mini-série, surgiu do outro lado do Oceano. Só agora se fez a versão nacional do romance mais emblemático do escritor português (quando mais não seja por ser de leitura obrigatória no secundário), pela mão de João Botelho, realizador acostumado a adaptações de obras importantes da Literatura Portuguesa.
As dificuldades na adaptação de um romance desta envergadura – um fresco sobre a sociedade portuguesa dos finais do século XIX, do endividamento externo, dos políticos medíocres e sabujos, dos artistas que preferem gastar a vida a conversar sobre miudezas a divulgar o seu trabalho (inexistente), dos boatos e bisbilhotices, dos tablóides e dos ataques mesquinhos (e de mesquinhez), das pequenas traições e pecadilhos menores (de óbvios paralelismos com a situação que se vive hoje), com uma teia interminável de personagens a povoar uma Lisboa provinciana com tiques de cosmopolitismo – para a duração habitual de uma longa-metragem são óbvias. Martin Scorsese conseguiu fazê-lo com sucesso, em pouco mais de duas horas, no notável The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1993), a partir do romance homónimo de Edith Warthon (de que se pode escrever que faz a Nova Iorque o que Eça fez a Lisboa). Nas mesmas duas horas e pouco, Os Maias de Botelho parece mais apressado, até por pretender abarcar toda a pré-história da narrativa principal (apresentada a preto-e-branco), e a dinâmica de grupo (grupo de personagens, grupo de actores), no que é essencialmente um filme de actores (como o próprio realizador afirma), perde por isso.
É preciso escrever que existem (ou existirão) diferentes versões d’Os Maias, sendo que João Braz é responsável pela montagem das três: a comercial de duas horas e um quarto que irá estrear-se na maioria dos cinemas; a de três horas que estará em exibição no Cinema Ideal; e uma mini-série que passará na RTP. A versão sobre a qual escrevo é a mais curta, pelo que é complicado determinar se o problema persiste nas outras. É possível que não. Nesta “edição comercial”, Ana Moreira apenas aparece num quadro [como o de A Corte do Norte (2008)?], a voz de Rui Morrison só se ouve num sonho (a sequência mais estranha do filme, que não se repete) e Eusebiozinho, tão importante no livro como contraste ao protagonista Carlos da Maia, é pouco mais do que um figurante, deixando antever que as suas personagens são exploradas nas mais longas. Por outro lado, a versão mais pequena de O Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo, outro filme recheado de personagens e situações, montado pelo mesmo João Braz, era superior ao director’s cut. Neste momento, é impossível concluir mais do que isto.
Pegue-se, então, no objecto que se conhece. Apesar da limitação temporal, João Botelho consegue dar espaço ao seu elenco – composto por actores pouco conhecidos ou raros no cinema nos papéis principais (João da Ega é interpretado pelo bailarino Pedro Inês, Graciano Dias, o Carlos da Maia, fez boa parte do seu currículo no teatro, e quem interpreta Maria Eduarda é a actriz brasileira Maria Flor); os nomes mais consagrados (João Perry, Rita Blanco, José Manuel Mendes, Catarina Wallenstein) ficaram com as personagens secundárias – para criar um “mundo” que o espectador vai (re)conhecendo aos poucos e vai aprendendo a gostar. (É importante notar que muitos dos que verão Os Maias visualizam-no há muito, o que pode originar alguma má vontade. Este espectador pode escrever que ao princípio teve dúvidas em relação à qualidade dos intérpretes mas que estas já se haviam dissipado aquando do genérico final.)
Além da duração, a outra restrição com que João Botelho teve de lidar foi financeira. Na conjuntura actual do cinema português (e provavelmente em qualquer outra) não é possível fazer uma adaptação “em condições” d’Os Maias, uma vez que não há dinheiro para mascarar as ruas de Lisboa como se fossem de outrora: o Chiado de hoje é bastante diferente do de 1888, embora se mantenham a Casa Havaneza e a Brasileira; o Passeio Público há muito deu lugar à Avenida da Liberdade. Numa decisão artística, fruto da necessidade, João Botelho deu maior destaque aos interiores e pediu a João Queiroz que lhe pintasse grandes telões para revestirem os “exteriores”. Botelho, para quem “o cinema é mentira”, preferiu acentuar a artificialidade, presente desde logo na fotografia caravaggista de João Ribeiro e, de maneira mais evidente, no prólogo em que se mostra o guarda-roupa, o argumento, fotografias dos actores e o narrador Jorge Vaz de Carvalho (que faz as vezes de Eça) a falar ao microfone.
Esta escolha traz necessariamente à memória dois dos filmes finais de Éric Rohmer – L’anglaise et le duc (A Inglesa e o Duque, 2001) e Triple agent (Agente Triplo, 2004) -, nos quais o francês usava cenários pintados (ou digitalizados), com intenções similares de vincar o artificialismo do cinema mas também de dar mais força ao texto. E, de facto, o texto é o mais importante em Os Maias: sente-se até uma reverência excessiva de João Botelho em relação ao livro, que o próprio adaptou. Embora o filme tenha a já referida subversão de se apresentar como tal (é anti-naturalista, quando o romance era realista), acaba por ser uma proposta mais ou menos académica, séria, bem feita, a que falta um rasgo maior. Numa cena das finais, em que a “verdade” é revelada a Carlos da Maia, Vilaça entra e sai da sala na qual Carlos busca algum conforto junto do seu amigo Ega inúmeras vezes, à procura do seu chapéu, para irritação dos outros. Ao resto do filme, falta este tipo de disrupção, a roçar o absurdo, para travar a veneração de Botelho. O mais curioso é que essa cena foi escrita por Eça de Queiroz no seu romance.